Tradução para o português do ensaio "O que é um curador?"
da crítica da arte e teórica inglesa Claire Bishop.
da crítica da arte e teórica inglesa Claire Bishop.
Fonte > Concinnitas, publicação do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Ano 16, volume 02, número 27, dezembro de 2015
O que é um curador ? A ascensão (e queda?) do curador auteur(1)
Os anos entre 1968 e 1972 testemunharam a ascensão de um novo tipo de autoria: o curador independente. Que essa figura surja simultaneamente à ascensão da arte de instalação e da crítica institucional é significativo, pois, ainda que sejam superficialmente similares, há importantes diferenças entre eles. Em um ensaio publicado em 2006, o crítico de arte e filósofo russo Boris Groys argumenta não haver distinção entre exposições e arte de instalação. Ele escreve:
Ao menos desde os anos 1960, artistas criaram instalações a fim de demonstrar suas práticas pessoais de seleção. Essas instalações, contudo, não foram outra coisa senão exposições curadas por artistas, nas quais objetos de outros podem ser — e são — representados, assim como objetos do próprio artista [...]. Em resumo, uma vez que a identificação entre criação e seleção foi estabelecida, os papéis do artista e o do curador tornam-se também idênticos. Uma distinção entre a exposição (curada) e a instalação (artística) ainda é feita comumente, mas é essencialmente obsoleta(2).
Hoje, Groys segue afirmando: “não podemos mais falar da autonomia autoral do artista porque ele ou ela está, desde o princípio, envolvido em uma prática colaborativa, coletiva, institucionalizada, produtiva”. Para Groys, os papéis do curador e do artista são um só: posto que criação e seleção convergem no readymade duchampiano, a autoria de hoje é necessariamente uma “autoria múltipla”, mais semelhante à de um filme, uma produção teatral ou um concerto. Para mim, Groys passa ao largo da questão. Há uma importante distinção entre a autoria curatorial e autoria artística, e é imprudente — e até mesmo perigoso — confundi-las.
Isso não quer dizer que as histórias da arte de instalação e da curadoria não estejam entrelaçadas. Em seu livro The Power of Display: a History of Exhibition Installations at the Museum of Modern Art (1998), Mary Staniszewski apresenta a instalação de exposições como precursora das instalações de artistas. Por “arte de instalação”, Staniszewski refere-se a obras de arte criadas no local [on-site] para uma exposição, ao invés de uma seleção de obras pré-existentes reunidas pelo curador. Para ela, as exposições-chave que marcam essa transição no MoMA são Information, de Kynaston McShine, uma apresentação experimental de arte conceitual e arte processual em 1970, e Spaces(1969-70) de Jennifer Licht, uma exposição de seis ambientes distintos de artistas, entre os quais figuravam Michael Asher, Larry Bell, Robert Morris e Dan Flavin. Para Staniszewski, a transição para a arte de instalação é completamente realizada em 1971, com a inauguração dos Project Rooms no MoMA. Ela argumenta que a primeira instalação dessa série, de Keith Sonnier, “transferiu as dimensões criativas e ideológicas do desenho expositivo [exhibition design] para um indivíduo; a exposição foi inscrita de forma aberta na dimensão da ‘assinatura’ do artista”(3). Essas instalações tiveram um efeito imediato sobre o papel do curador, pois não havia para ele ou ela qualquer ‘objeto’ a instalar, senão um conjunto de funções técnicas e administrativas a cumprir. Como nota Staniszewski em relação à exposição Spaces, de Licht, essa nova função curatorial incluía assegurar o patrocínio privado na forma de tapetes, iluminação, etc.
Essa convergência do desenho expositivo e da arte de instalação também acontece simultaneamente na Europa; ela pode ser vista tanto numa tradição pós-minimalista des-autorada [de-authored] ( (p. ex. Richard Long na Konrad Fischer em setembro de 1968, Daniel Buren na Prospect 68) quanto numa forma iterada de autoria mais subjetiva, como a instalação de sete salas de Joseph Beuys da coleção Ströher, a Beuys Block (Hessisches Landesmuseum, Darmstadt, 1970) ou ainda as instalações produzidas coletivamente e cambiantes de Paul Thek (1971-3)(4). O papel do curador ajusta-se de acordo com a ascensão desse tipo de trabalho. O artista de instalação instala ele próprio a sua obra, relegando o papel curatorial ao de facilitar a sua produção, interpretação e promoção. Ao invés da proposta, por um curador, de um tópico temático, histórico, geracional ou geográfico, que una múltiplos sentidos produzidos por indivíduos-autores, a instalação e seu autor tornam-se o locus único do sentido.
A exposição onde essa tensão se mostra de forma mais notável é a Documenta 5, em 1972 — a primeira exposição na qual um número significativo de artistas trabalhou com instalação, cada um ocupando uma sala para mostrar uma obra: Michael Asher, Richard Serra, Bruce Nauman, Paul Thek, Art And Language, Joseph Beuys, Vito Aconcci, Marcel Broodthaers e muitos outros. A exposição foi dirigida pelo curador suíço Harald Szeemann, frequentemente creditado como o primeiro curador independente, após sua demissão da Kunsthalle de Berna, em 1969, por conta da reação hostil da cidade a When Attitudes Become Form(5). Celebrada hoje como uma exposição de referência, When Attitudes Become Form reuniu uma geração de artistas da América do Norte e da Europa com sensibilidades similares, traçando conexões entre a arte processual, a anti-forma e a arte povera. Ela apresentou uma polêmica sobre a arte que exibia na própria forma de sua apresentação — transformando as galerias expositivas em espaço de estúdio, no qual muitas das obras foram feitas ou refeitas, ao invés de serem enviadas para a Kunsthalle de outro lugar.
Na Documenta 5, ao contrário, ao invés de fornecer à obra um contexto que ajudasse na elaboração de seu sentido, Szeemann foi acusado de não compreender a especificidade de certas práticas artísticas. Organizada sob o título geral de Questions of Reality: The Image-World Today, a exposição foi dividida em 15 seções distintas. De forma significativa, a realidade não foi apenas apresentada através de obras de arte, mas através do campo mais amplo da cultura visual: obras de doentes mentais, imagens de ficção científica, propaganda politica, títulos de banco suíços, e “realismo trivial” (objetos kitsch incluindo suvenires do Papa, insígnias militares, pôsteres do Che Guevara e Jimi Hendrix, broches e gnomos de jardim). Ao lado dessas pequenas mostras havia ainda três panoramas temáticos de arte contemporânea, a mais controversa das quais sendo Mitologias Individuais(6). Esta destacava mais de 70 artistas trabalhando com performance, instalação e arte processual. Por meio dessa seção, Szeemann postulava que toda ação artística, mesmo em suas formas mais políticas e críticas, diz respeito à formação de uma mitologia interior(7). A Documenta 5 como um todo refletiu, portanto, o interesse de longa data de Szeemann pela criatividade em seu sentido mais amplo, e não apenas o trabalho legitimado pelas instituições da grande arte [high art](8).
Não é, talvez, surpreendente que sua proposta tenha recebido uma resposta hostil de artistas cujo trabalho buscava se opor aos valores de mitologia, interioridade e expressão. Escrevendo para Artforum, Carter Ratcliff disse pensar que apenas três obras na exposição conseguiram resistir às prepotentes atribuições curatoriais de Szeemann, afirmando os próprios termos de sua participação, e é revelador que todas as três sejam instalações (Nauman, Asher e Serra). Dez dos artistas enviaram uma carta ao Frankfurter Allgemeine Zeitung queixando-se da visão curatorial de Szeemann, enquanto outros dois publicaram ensaios inflamados como contribuição pessoal para o catálogo(9). O primeiro entre eles, Daniel Buren, expondo na seção Ideia, acusou Szeemann de expor a exposição como obra de arte, argumentando que ‘as obras apresentadas são toques de cores — cuidadosamente escolhidos — do quadro que compõe cada seção (sala) como um todo”(10). Dá-se conta, assim, que essa estratégia seria aceitável se os toques de cor tivessem sido escolhidos pelo artista, porque não haveria outro modelo de autoria competitivo. Com Szeemann, contudo, o museu se torna um quadro “cujo autor é ninguém menos que o organizador da exposição”. Em outras palavras, a autoria secundária do curador acaba por deslocar as autorias primárias dos artistas individuais. No centro da queixa de Buren está o fato de que o curador-como-auteur tende a levar a uma eliminação da autonomia artística: a ideia curatorial se torna o foco central(11).
Em uma linha de pensamento similar, o ensaio “Cultural Confinement” de Robert Smithson começa com uma invectiva contra o ‘fazedor de exposição’ como aprisionador de sentido cultural. Smithson vitupera conta a galeria cubo branco que separa a arte do mundo exterior, assim como a imposição de uma metafísica curatorial. Em sua opinião, ambos conspiram na direção do consumo: a obra de arte “neutralizada, sem efeitos, abstraída, segura e politicamente lobotomizada” se torna “apta a ser consumida pela sociedade. Tudo é reduzido à traste visual e mercadoria transportável”(12). A implicação é que a boa curadoria não tomará como dadas as convenções institucionais (como a galeria), e deverá ser tão dialética quanto a obra de arte que procura mostrar.
A carta de saída de Robert Morris da Documenta 5, de 6 de maio de 1972, diz respeito mais diretamente às expectativas da autoria curatorial. Morris opõe-se a ter seu trabalho utilizado para ilustrar “princípios sociológicos equivocados ou categorias datadas da história de arte”; ele parece estar se referindo à premissa curatorial de Mitologias Individuais, cujo marco não poderia estar mais distante dos próprios objetos despersonalizados e anti-expressivos de Morris. Em segundo lugar, ele queixa-se que Szeemann não o consultou em relação a que trabalho seria mostrado, mas indicou claramente qual ele desejava incluir. Como curadores em atividade devem saber, isso pode ter dois lados: artistas sempre querem mostrar uma obra nova, e Szeemann está perfeitamente em seu direito ao expressar interesse por uma peça em particular; por outro lado, podemos supor que a carta de Szeemann tivesse um tom consideravelmente assertivo (Morris: “ditou”), indicando assim um desejo de conformidade a um conceito. Em terceiro lugar, Morris lamenta que Szeemann não tenha entrado em contato com ele após o artista expressar o desejo de ser representado por uma obra diferente daquela requerida. Isso é importante, pois desenvolve um tema que emerge quanto mais longe levarmos a comparação dos papéis do artista e do curador: este último tem uma obrigação éticaque é significativamente distinta da estéticada apresentação artística do primeiro. Está aqui em jogo a ideia de que curadores devem respeitar os desejos dos artistas, comunicar claramente, e estar disponíveis para negociação(13).
Em suma, o ponto de Morris demonstra claramente suas expectativas de que o curador seja o mediador e árbitro justo, trabalhando à serviço do interesse dos artistas, ao invés de um simples auteur. Não pode haver uma articulação mais clara dessas expectativas do que imaginar as queixas de Morris (ou as de Buren e Smithson) aplicadas a uma instalação curada por um artista sob a forma de exposição [artist-curated installation as exhibition] — como o Musée d’Art Moderne, Section des Figures (1972) de Marcel Broodthaers. Embora ambos digam respeito à seleção, o locus do sentido se dá em muitos níveis diferentes: a seleção curatorial é sempre uma negociação ética de autorias pré-existentes, ao invés da criação de sentido sui generis.
Como a primeira instância de um artista borrando a linha entre exposição e arte de instalação (ao invés da mise-en-scènedo trabalho de seus contemporâneos, p.ex. Duchamp, 1938), O Musée d’Art Moderne de Marcel Broodthaers é crucial para uma consideração da autoria curatorial. Ele não pode ser visto fora do contexto mais amplo da luta pela autonomia e autodeterminação que teve seu clímax nos protestos de 1968. O Musée d’Art Moderne foi fundado, escreve Broodthaers, “sob a pressão do período político de seu tempo”; ele “partilhava um caráter ligado aos eventos de 1968, isso é, a um tipo de evento político experimentado por todos os países”(14). Broodthaers havia participado da ocupação do Palais des Beaux-Arts em maio de 1968, e a instalação de um Musée d’Art Moderne em sua própria casa quatro meses mais tarde é indissociável das motivações que o levaram àquela ocupação: um desejo de exercer controle sobre a cultura, e de conduzir ao invés de ser conduzido pela autoridade. Em uma carta aberta escrita ao fim da ocupação, do 7 de junho de 1968, Broodthaers expressou esses sentimentos de uma forma elíptica bastante caraterística: “O que é cultura? Eu escrevo. Eu tomei o andar. Eu sou um negociador por uma hora ou duas. Eu digo eu. Eu retomo [resume] minha atitude pessoal. Eu temo o anonimato. (Eu gostaria de controlar o sentido [sens](15) da cultura)”.
A primeira instalação do museu ficcional, a Section XIXème Siècle, incluía uma série de quartos na casa de Broodthaers nos quais a parafernália da montagem de exposição [exhibition installation] era ela própria encenada: contêineres de mudanças, escadas, sinalização e assim por diante. Era uma instalação criada a partir da encenação do aparato da instalação [installation] da arte. Como tem sido bem documentado, o uso por parte de Broodthaers de cartas abertas, cabeçalhos, anúncios, placas e textos invocam o aparato da autoridade institucional como um conjunto de gestos performativos. Ele invoca mais especificamente as convenções do museu do século XIX, pois é nesse período que o museu público substitui a coleção privada de arte. O século XIX também assistiu ao surgimento de uma vanguarda não acadêmica bem como do paradigma romântico do gênio do artista individual, e provê, portanto, um modelo ambivalente à Broodthaers: um ponto tanto de rejeição quanto de recuperação. Essa ambivalência se torna ainda mais clara, após o encerramento da Section XIXème Siècleem setembro de 1969, através de subsequentes iterações do museu.(16)
A maior e mais ambiciosa seção abriu suas portas em maio de 1972 na Düsseldorf Kunsthalle: a Section des Figures, uma exposição com mais de 300 objetos emprestados de mais de 40 museus e coleções privadas, cada qual levando a imagem de uma águia. Com o subtítulo “A águia do Oligoceno ao Presente”, a exposição mostrou objetos com o tema da águia instalados de forma convencional nas paredes e em vitrines. Cada objeto estava acompanhado de uma etiqueta afirmando, em inglês, francês ou alemão, “Isso não é uma obra de arte”: uma contração de Traição das Imagens(1928) de Magritte, com a lógica do readymade de Duchamp. Os títulos das pinturas de Magritte, escreveu Broodthaers, “simplesmente selam a incompreensão do espectador e deslocam a obra a um domínio intelectual onde ela é tornada completamente indisponível a qualquer interpretação comum”(17). Em outras palavras, a obra é indecidível — não apenas no sentido do ofuscamento místico, mas como um excedente que ultrapassa a explicação racional. O dêitico “Isso é...” das etiquetas da exposição de Broodthaers funcionam, assim, em muitos níveis: ‘isso’ pode fazer referência à palavra na frase, à própria etiqueta, ao objeto individual ao lado do qual ela repousa, ao grupo de objetos numa vitrine, à exposição em si, ou ao ato de olhá-la.
Aqui, as muitas camadas de rejeição e negação fazem eco a uma passagem do ensaio de Michel Foucault sobre René Magritte, Isso não é um cachimbo (1968), o qual Broodthaers recomenda aos leitores em seu catálogo para a exposição de Düsseldorf. Concentrando-se em uma versão tardia da pintura de Magritte intitulada Les Deux Mystères (1966), Foucault observa que:
Não é difícil transpor a voz do professor, tentando estabilizar o sentido, para a do curador: ambos encarnam uma autoridade institucional que faz a mediação entre a obra de arte e seus alunos / espectadores. Está aqui em jogo o lugar do sentido e a impossibilidade de ‘mostrar’ esse sentido em uma palavra ou um objeto, porque ele sempre escapa. Foucault acaba seu capítulo com a visão de um cachimbo elevando-se sobre o quadro negro / cavalete e as crianças rindo — pois nem mesmo esse cachimbo é um cachimbo, senão mais um desenho de um cachimbo, exatamente como aquele no quadro (ou no quadro no interior do quadro). Foucault contempla um colapso do sentido: o cavalete quebra, a pintura cai ao chão, as palavras se espalham: “O lugar-comum — obra banal ou lição cotidiana — desapareceu”(19). A pintura de Magritte funciona, para ele, como uma perturbação particular do sentido a que ele se refere como heterotópica:
Permanecer unidas: palavras em uma frase, e obras de arte em um espaço. O Musée d’Art Moderne, Département des Aigles, Section des Figures, de Marcel Broodthaers parece procurar precisamente essa forma de ruptura com a sintaxe e o sentido ortodoxos: uma ruptura que reivindica o papel da interpretação a fim de alavancar sua abertura. Ao fazer de si mesmo o diretor do museu, Broodthaers assegura que não se poderá falar por ele, substituindo a interpretabilidade curatorial [curatorial interpretability] por uma dupla autoria — seleção, criação e mediação(21). É adequado que o avatar final do Musée d’Art Moderne tenha sido na Documenta 5 em 1972, como a Section Publicité (na Neue Galerie) e na Section d’Art Moderne (na seção Museus de Artistas). A última incluía uma placa no chão envolta por mourões, mostrando o slogan “Propriedade Privada” em três línguas — uma inscrição que Broodthaers trocou para o último mês da exposição. Ele descreveu essa inscrição como sendo não apenas uma sátira com a identificação da arte com a propriedade privada, mas com:
As palavras da segunda inscrição são uma série poética de verbos terminando em “pouvoir”, ter a capacidade de, mas que também funcionam como um substantivo, “poder”: a última linha da inscrição, “faire informer pouvoir”, opera assim como uma série de verbos mas também como a frase ‘fazer o poder informar’. A ambiguidade dessa frase implica que, como Broodthaers indica, um dos papeis da arte é revelar os mecanismos de autoridade que constroem sentido para nós. O Musée d’Art Moderne leva a cabo assim uma luta pelo controle do sentido e da interpretação — dirigido, em seu encerramento, contra a pessoa agora considerada o fundador da curadoria contemporânea.
Em seu ensaio de 1989 “From Museum curator to Exhibition Auteur”, os sociólogos franceses Nathalie Heinich e Michael Pollak argumentam que, no intervalo de uma geração, o papel do curador mudou de uma profissão despersonalizada, orientada em torno da tarefa quadripartida de “assegurar a herança, enriquecer coleções, pesquisar e exibir”, para uma posição de singularidade em uma área particular: a apresentação de obras ao público(22). Em sua visão, essa mudança se deu como resultado de um aumento no número de exposições em museus (tanto em coleções permanentes como exposições temporárias), de uma diversificação de disciplinas que podem ser exibidas (de história natural a feiras comerciais de arte), e de um crescimento de exposições realizadas por instituições culturais (monográficas, temáticas, geográficas, históricas, etc.). Essa última, em particular, requer novas funções, as quais eles descrevem como “um papel administrativo ampliado, determinando um marco de trabalho conceitual, selecionando colaboradores especializados de várias disciplinas, dirigindo equipes de trabalho, consultando um arquiteto, assumindo uma posição formal em termos de apresentação, organizando a publicação de um catálogo enciclopédico, etc.”. É significativo que todos esses papéis sejam também uma questão de competição e marketing: há mais exposições porque há mais locais de exposição para arte contemporânea, o que, por sua vez, desempenha um papel importante na regeneração de cidades através do turismo; e por sua vez, torna o papel do curador cada vez mais promocional.
Nesse ponto, Boris Groys está certo em argumentar que hoje em dia a autoria de exposições é múltipla — como em um filme ou uma produção teatral — mesmo quando o ato da seleção é “soberano”, “privado, individual e subjetivo”. Heinich e Pollak produzem uma analogia semelhante: a recentemente singularizada posição do curador como criador é comparável ao auteur na teoria do cinema. Eles apoiam essa afirmação com o argumento de que o orçamento de uma exposição de grande escala e a de um filme são aproximadamente equivalentes; os dois inserem-se na economia de produtos culturais temporários para distribuição de massa; e os dois requerem uma equipe que trabalhe sob a égide de um diretor cuja identidade passa por variações consideráveis (produtor, roteirista, diretor, curador, criador, etc.). Os dois, nós poderíamos acrescentar, tendem a ser empreitadas comerciais. Mas considerando esse papel expandido, é revelador que Heinich e Pollak não mencionem as mudanças na produção artística em torno de 1968 como tendo levado a tais mudanças: esse papel de produção e direção já havia aparecido na esfera da produção artística, em relação ao papel do artista de instalação, e especialmente desses artistas que — como Broodthaers — estavam envolvidos em práticas curatoriais da crítica institucional.
Em uma época em que a megaexposição proliferou de maneira exponencial, em sincronia com o crescimento de programas de formação de curadores, podemos ver que o “curador-auteur” emergiu simultaneamente com a arte de instalação e a crítica institucional. Os anos 1968-72 — os anos do Musée d’Art Modernede Broodthaers — são aqueles de uma luta de poder, não simplesmente pelo controle de um espaço, mas pelo controle de um sentido (e no caso de Broodthaers, a afirmação de um sentido profundamente ambíguo). Hoje, quando a influência do crítico independente foi suplantada por um curador não-tão-independente como árbitro do gosto, parece necessário reavaliar a autonomia autoral que é evacuada na afirmação de Groys segunda a qual os papeis do artista e do curador convergiram. O curador freelance já não é mais uma figura independente, senão uma celebridade perseguida tanto por artistas quanto por galerias, e que age como corretor de influencias entre colecionadores, o mercado e agências de financiamento. Que essa figura exerça uma atração substancial para uma geração mais jovem é um sinal dúbio, posto que a competitividade para ascensão na carreira curatorial, exige cada vez mais estilos de assinaturas e artifícios [gimmicks]. E pela promessa de associação com essas figuras globe-trotters, artistas parecem demasiado felizes em preencher os pedidos curatoriais mais vazios.
Concluirei com uma pequena anedota. Recentemente, vimos em Londres uma exposição de alto padrão na abandonada Central Elétrica de Battersea, uma exposição de vídeo-arte contemporânea chinesa que nem mesmo pretendia mostrar obras de arte como “toques de cor em um quadro”. Os espectadores foram guiados como um rebanho pelo prédio dramaticamente destruído e lhes foram concedidos escassos minutos para assistir a uma média de 10 vídeos por andar. Como algumas obras tinham 20 minutos de duração, havia pouca chance de se fazer justiça ao trabalho dos artistas — uma situação tornada ainda mais difícil pela falta de informação contextual sobre os artistas. Tornou-se evidente que estávamos em uma Central Elétrica para ver o prédio (realçado pela exposição) e não para ver arte. Isso não tinha nada a ver com cultura e tudo a ver com marketing: promovendo a galeria que havia organizado a exposição como um rival implícito à outro museu realizado a partir de uma central elétrica rio abaixo (Tate Modern), lubrificando as rodas do investimento empresarial (depois da exposição, o prédio se tornará um shopping center), e utilizando a arte chinesa como um flagrante ponto de acesso ao mercado chinês (a companhia que financiou a exposição é dirigida pela mulher do investidor chinês). O celebrado curador responsável pela exposição não mostrou qualquer resistência a essa instrumentalização da cultura, nem qualquer responsabilidade legível em relação à arte, posto que falhou na mediação de sua recepção pelo público. Corretor de influências [power-broker] e nome de marca, o curador como auteur nunca esteve tão distante do artista-curador.
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I
Os anos entre 1968 e 1972 testemunharam a ascensão de um novo tipo de autoria: o curador independente. Que essa figura surja simultaneamente à ascensão da arte de instalação e da crítica institucional é significativo, pois, ainda que sejam superficialmente similares, há importantes diferenças entre eles. Em um ensaio publicado em 2006, o crítico de arte e filósofo russo Boris Groys argumenta não haver distinção entre exposições e arte de instalação. Ele escreve:
Ao menos desde os anos 1960, artistas criaram instalações a fim de demonstrar suas práticas pessoais de seleção. Essas instalações, contudo, não foram outra coisa senão exposições curadas por artistas, nas quais objetos de outros podem ser — e são — representados, assim como objetos do próprio artista [...]. Em resumo, uma vez que a identificação entre criação e seleção foi estabelecida, os papéis do artista e o do curador tornam-se também idênticos. Uma distinção entre a exposição (curada) e a instalação (artística) ainda é feita comumente, mas é essencialmente obsoleta(2).
Hoje, Groys segue afirmando: “não podemos mais falar da autonomia autoral do artista porque ele ou ela está, desde o princípio, envolvido em uma prática colaborativa, coletiva, institucionalizada, produtiva”. Para Groys, os papéis do curador e do artista são um só: posto que criação e seleção convergem no readymade duchampiano, a autoria de hoje é necessariamente uma “autoria múltipla”, mais semelhante à de um filme, uma produção teatral ou um concerto. Para mim, Groys passa ao largo da questão. Há uma importante distinção entre a autoria curatorial e autoria artística, e é imprudente — e até mesmo perigoso — confundi-las.
Isso não quer dizer que as histórias da arte de instalação e da curadoria não estejam entrelaçadas. Em seu livro The Power of Display: a History of Exhibition Installations at the Museum of Modern Art (1998), Mary Staniszewski apresenta a instalação de exposições como precursora das instalações de artistas. Por “arte de instalação”, Staniszewski refere-se a obras de arte criadas no local [on-site] para uma exposição, ao invés de uma seleção de obras pré-existentes reunidas pelo curador. Para ela, as exposições-chave que marcam essa transição no MoMA são Information, de Kynaston McShine, uma apresentação experimental de arte conceitual e arte processual em 1970, e Spaces(1969-70) de Jennifer Licht, uma exposição de seis ambientes distintos de artistas, entre os quais figuravam Michael Asher, Larry Bell, Robert Morris e Dan Flavin. Para Staniszewski, a transição para a arte de instalação é completamente realizada em 1971, com a inauguração dos Project Rooms no MoMA. Ela argumenta que a primeira instalação dessa série, de Keith Sonnier, “transferiu as dimensões criativas e ideológicas do desenho expositivo [exhibition design] para um indivíduo; a exposição foi inscrita de forma aberta na dimensão da ‘assinatura’ do artista”(3). Essas instalações tiveram um efeito imediato sobre o papel do curador, pois não havia para ele ou ela qualquer ‘objeto’ a instalar, senão um conjunto de funções técnicas e administrativas a cumprir. Como nota Staniszewski em relação à exposição Spaces, de Licht, essa nova função curatorial incluía assegurar o patrocínio privado na forma de tapetes, iluminação, etc.
Essa convergência do desenho expositivo e da arte de instalação também acontece simultaneamente na Europa; ela pode ser vista tanto numa tradição pós-minimalista des-autorada [de-authored] ( (p. ex. Richard Long na Konrad Fischer em setembro de 1968, Daniel Buren na Prospect 68) quanto numa forma iterada de autoria mais subjetiva, como a instalação de sete salas de Joseph Beuys da coleção Ströher, a Beuys Block (Hessisches Landesmuseum, Darmstadt, 1970) ou ainda as instalações produzidas coletivamente e cambiantes de Paul Thek (1971-3)(4). O papel do curador ajusta-se de acordo com a ascensão desse tipo de trabalho. O artista de instalação instala ele próprio a sua obra, relegando o papel curatorial ao de facilitar a sua produção, interpretação e promoção. Ao invés da proposta, por um curador, de um tópico temático, histórico, geracional ou geográfico, que una múltiplos sentidos produzidos por indivíduos-autores, a instalação e seu autor tornam-se o locus único do sentido.
II
A exposição onde essa tensão se mostra de forma mais notável é a Documenta 5, em 1972 — a primeira exposição na qual um número significativo de artistas trabalhou com instalação, cada um ocupando uma sala para mostrar uma obra: Michael Asher, Richard Serra, Bruce Nauman, Paul Thek, Art And Language, Joseph Beuys, Vito Aconcci, Marcel Broodthaers e muitos outros. A exposição foi dirigida pelo curador suíço Harald Szeemann, frequentemente creditado como o primeiro curador independente, após sua demissão da Kunsthalle de Berna, em 1969, por conta da reação hostil da cidade a When Attitudes Become Form(5). Celebrada hoje como uma exposição de referência, When Attitudes Become Form reuniu uma geração de artistas da América do Norte e da Europa com sensibilidades similares, traçando conexões entre a arte processual, a anti-forma e a arte povera. Ela apresentou uma polêmica sobre a arte que exibia na própria forma de sua apresentação — transformando as galerias expositivas em espaço de estúdio, no qual muitas das obras foram feitas ou refeitas, ao invés de serem enviadas para a Kunsthalle de outro lugar.
Na Documenta 5, ao contrário, ao invés de fornecer à obra um contexto que ajudasse na elaboração de seu sentido, Szeemann foi acusado de não compreender a especificidade de certas práticas artísticas. Organizada sob o título geral de Questions of Reality: The Image-World Today, a exposição foi dividida em 15 seções distintas. De forma significativa, a realidade não foi apenas apresentada através de obras de arte, mas através do campo mais amplo da cultura visual: obras de doentes mentais, imagens de ficção científica, propaganda politica, títulos de banco suíços, e “realismo trivial” (objetos kitsch incluindo suvenires do Papa, insígnias militares, pôsteres do Che Guevara e Jimi Hendrix, broches e gnomos de jardim). Ao lado dessas pequenas mostras havia ainda três panoramas temáticos de arte contemporânea, a mais controversa das quais sendo Mitologias Individuais(6). Esta destacava mais de 70 artistas trabalhando com performance, instalação e arte processual. Por meio dessa seção, Szeemann postulava que toda ação artística, mesmo em suas formas mais políticas e críticas, diz respeito à formação de uma mitologia interior(7). A Documenta 5 como um todo refletiu, portanto, o interesse de longa data de Szeemann pela criatividade em seu sentido mais amplo, e não apenas o trabalho legitimado pelas instituições da grande arte [high art](8).
Não é, talvez, surpreendente que sua proposta tenha recebido uma resposta hostil de artistas cujo trabalho buscava se opor aos valores de mitologia, interioridade e expressão. Escrevendo para Artforum, Carter Ratcliff disse pensar que apenas três obras na exposição conseguiram resistir às prepotentes atribuições curatoriais de Szeemann, afirmando os próprios termos de sua participação, e é revelador que todas as três sejam instalações (Nauman, Asher e Serra). Dez dos artistas enviaram uma carta ao Frankfurter Allgemeine Zeitung queixando-se da visão curatorial de Szeemann, enquanto outros dois publicaram ensaios inflamados como contribuição pessoal para o catálogo(9). O primeiro entre eles, Daniel Buren, expondo na seção Ideia, acusou Szeemann de expor a exposição como obra de arte, argumentando que ‘as obras apresentadas são toques de cores — cuidadosamente escolhidos — do quadro que compõe cada seção (sala) como um todo”(10). Dá-se conta, assim, que essa estratégia seria aceitável se os toques de cor tivessem sido escolhidos pelo artista, porque não haveria outro modelo de autoria competitivo. Com Szeemann, contudo, o museu se torna um quadro “cujo autor é ninguém menos que o organizador da exposição”. Em outras palavras, a autoria secundária do curador acaba por deslocar as autorias primárias dos artistas individuais. No centro da queixa de Buren está o fato de que o curador-como-auteur tende a levar a uma eliminação da autonomia artística: a ideia curatorial se torna o foco central(11).
Em uma linha de pensamento similar, o ensaio “Cultural Confinement” de Robert Smithson começa com uma invectiva contra o ‘fazedor de exposição’ como aprisionador de sentido cultural. Smithson vitupera conta a galeria cubo branco que separa a arte do mundo exterior, assim como a imposição de uma metafísica curatorial. Em sua opinião, ambos conspiram na direção do consumo: a obra de arte “neutralizada, sem efeitos, abstraída, segura e politicamente lobotomizada” se torna “apta a ser consumida pela sociedade. Tudo é reduzido à traste visual e mercadoria transportável”(12). A implicação é que a boa curadoria não tomará como dadas as convenções institucionais (como a galeria), e deverá ser tão dialética quanto a obra de arte que procura mostrar.
A carta de saída de Robert Morris da Documenta 5, de 6 de maio de 1972, diz respeito mais diretamente às expectativas da autoria curatorial. Morris opõe-se a ter seu trabalho utilizado para ilustrar “princípios sociológicos equivocados ou categorias datadas da história de arte”; ele parece estar se referindo à premissa curatorial de Mitologias Individuais, cujo marco não poderia estar mais distante dos próprios objetos despersonalizados e anti-expressivos de Morris. Em segundo lugar, ele queixa-se que Szeemann não o consultou em relação a que trabalho seria mostrado, mas indicou claramente qual ele desejava incluir. Como curadores em atividade devem saber, isso pode ter dois lados: artistas sempre querem mostrar uma obra nova, e Szeemann está perfeitamente em seu direito ao expressar interesse por uma peça em particular; por outro lado, podemos supor que a carta de Szeemann tivesse um tom consideravelmente assertivo (Morris: “ditou”), indicando assim um desejo de conformidade a um conceito. Em terceiro lugar, Morris lamenta que Szeemann não tenha entrado em contato com ele após o artista expressar o desejo de ser representado por uma obra diferente daquela requerida. Isso é importante, pois desenvolve um tema que emerge quanto mais longe levarmos a comparação dos papéis do artista e do curador: este último tem uma obrigação éticaque é significativamente distinta da estéticada apresentação artística do primeiro. Está aqui em jogo a ideia de que curadores devem respeitar os desejos dos artistas, comunicar claramente, e estar disponíveis para negociação(13).
Em suma, o ponto de Morris demonstra claramente suas expectativas de que o curador seja o mediador e árbitro justo, trabalhando à serviço do interesse dos artistas, ao invés de um simples auteur. Não pode haver uma articulação mais clara dessas expectativas do que imaginar as queixas de Morris (ou as de Buren e Smithson) aplicadas a uma instalação curada por um artista sob a forma de exposição [artist-curated installation as exhibition] — como o Musée d’Art Moderne, Section des Figures (1972) de Marcel Broodthaers. Embora ambos digam respeito à seleção, o locus do sentido se dá em muitos níveis diferentes: a seleção curatorial é sempre uma negociação ética de autorias pré-existentes, ao invés da criação de sentido sui generis.
III
Como a primeira instância de um artista borrando a linha entre exposição e arte de instalação (ao invés da mise-en-scènedo trabalho de seus contemporâneos, p.ex. Duchamp, 1938), O Musée d’Art Moderne de Marcel Broodthaers é crucial para uma consideração da autoria curatorial. Ele não pode ser visto fora do contexto mais amplo da luta pela autonomia e autodeterminação que teve seu clímax nos protestos de 1968. O Musée d’Art Moderne foi fundado, escreve Broodthaers, “sob a pressão do período político de seu tempo”; ele “partilhava um caráter ligado aos eventos de 1968, isso é, a um tipo de evento político experimentado por todos os países”(14). Broodthaers havia participado da ocupação do Palais des Beaux-Arts em maio de 1968, e a instalação de um Musée d’Art Moderne em sua própria casa quatro meses mais tarde é indissociável das motivações que o levaram àquela ocupação: um desejo de exercer controle sobre a cultura, e de conduzir ao invés de ser conduzido pela autoridade. Em uma carta aberta escrita ao fim da ocupação, do 7 de junho de 1968, Broodthaers expressou esses sentimentos de uma forma elíptica bastante caraterística: “O que é cultura? Eu escrevo. Eu tomei o andar. Eu sou um negociador por uma hora ou duas. Eu digo eu. Eu retomo [resume] minha atitude pessoal. Eu temo o anonimato. (Eu gostaria de controlar o sentido [sens](15) da cultura)”.
A primeira instalação do museu ficcional, a Section XIXème Siècle, incluía uma série de quartos na casa de Broodthaers nos quais a parafernália da montagem de exposição [exhibition installation] era ela própria encenada: contêineres de mudanças, escadas, sinalização e assim por diante. Era uma instalação criada a partir da encenação do aparato da instalação [installation] da arte. Como tem sido bem documentado, o uso por parte de Broodthaers de cartas abertas, cabeçalhos, anúncios, placas e textos invocam o aparato da autoridade institucional como um conjunto de gestos performativos. Ele invoca mais especificamente as convenções do museu do século XIX, pois é nesse período que o museu público substitui a coleção privada de arte. O século XIX também assistiu ao surgimento de uma vanguarda não acadêmica bem como do paradigma romântico do gênio do artista individual, e provê, portanto, um modelo ambivalente à Broodthaers: um ponto tanto de rejeição quanto de recuperação. Essa ambivalência se torna ainda mais clara, após o encerramento da Section XIXème Siècleem setembro de 1969, através de subsequentes iterações do museu.(16)
A maior e mais ambiciosa seção abriu suas portas em maio de 1972 na Düsseldorf Kunsthalle: a Section des Figures, uma exposição com mais de 300 objetos emprestados de mais de 40 museus e coleções privadas, cada qual levando a imagem de uma águia. Com o subtítulo “A águia do Oligoceno ao Presente”, a exposição mostrou objetos com o tema da águia instalados de forma convencional nas paredes e em vitrines. Cada objeto estava acompanhado de uma etiqueta afirmando, em inglês, francês ou alemão, “Isso não é uma obra de arte”: uma contração de Traição das Imagens(1928) de Magritte, com a lógica do readymade de Duchamp. Os títulos das pinturas de Magritte, escreveu Broodthaers, “simplesmente selam a incompreensão do espectador e deslocam a obra a um domínio intelectual onde ela é tornada completamente indisponível a qualquer interpretação comum”(17). Em outras palavras, a obra é indecidível — não apenas no sentido do ofuscamento místico, mas como um excedente que ultrapassa a explicação racional. O dêitico “Isso é...” das etiquetas da exposição de Broodthaers funcionam, assim, em muitos níveis: ‘isso’ pode fazer referência à palavra na frase, à própria etiqueta, ao objeto individual ao lado do qual ela repousa, ao grupo de objetos numa vitrine, à exposição em si, ou ao ato de olhá-la.
Aqui, as muitas camadas de rejeição e negação fazem eco a uma passagem do ensaio de Michel Foucault sobre René Magritte, Isso não é um cachimbo (1968), o qual Broodthaers recomenda aos leitores em seu catálogo para a exposição de Düsseldorf. Concentrando-se em uma versão tardia da pintura de Magritte intitulada Les Deux Mystères (1966), Foucault observa que:
Tudo está solidamente amarrado no interior de um espaço escolar: um quadro "mostra" um desenho que "mostra" a forma de um cachimbo; e um texto escrito por um zeloso professor primário mostra que é bem de um cachimbo que se trata. Não vemos o dedo indicador do mestre, mas ele reina em todos os lugares, assim como sua voz, que está articulando claramente: "isto é um cachimbo". Do quadro à imagem, da imagem ao texto, do texto à voz, uma espécie de dedo indicador geral aponta, mostra, fixa, assinala, impõe um sistema de reenvios, tenta estabilizar um espaço único. Mas por que introduzir ainda a voz do mestre? porque mal ela disse "isto é um cachimbo", e já foi obrigada a retomar e balbuciar: "isto não é um cachimbo, mas o desenho de um cachimbo", "isto não é um cachimbo, mas uma frase dizendo que é um cachimbo", "a frase: 'isto não é um cachimbo', não é um cachimbo"; "na frase: 'isto não é um cachimbo', isto não é um cachimbo: este quadro, esta frase escrita, este desenho de um cachimbo, tudo isto não é um cachimbo"(18)
Não é difícil transpor a voz do professor, tentando estabilizar o sentido, para a do curador: ambos encarnam uma autoridade institucional que faz a mediação entre a obra de arte e seus alunos / espectadores. Está aqui em jogo o lugar do sentido e a impossibilidade de ‘mostrar’ esse sentido em uma palavra ou um objeto, porque ele sempre escapa. Foucault acaba seu capítulo com a visão de um cachimbo elevando-se sobre o quadro negro / cavalete e as crianças rindo — pois nem mesmo esse cachimbo é um cachimbo, senão mais um desenho de um cachimbo, exatamente como aquele no quadro (ou no quadro no interior do quadro). Foucault contempla um colapso do sentido: o cavalete quebra, a pintura cai ao chão, as palavras se espalham: “O lugar-comum — obra banal ou lição cotidiana — desapareceu”(19). A pintura de Magritte funciona, para ele, como uma perturbação particular do sentido a que ele se refere como heterotópica:
[...] porque elas permitem solapar a linguagem, porque elas fazem com que seja impossível nomear isso ou aquilo, porque destroçam ou embaralham nomes comuns, porque elas destroem a sintaxe de entrada, e não apenas a sintaxe com a qual construímos frases como também aquela sintaxe menos aparente que faz que palavras e coisas (próximas à, mas também opostas umas às outras) ‘permaneçam unidas’(20).
Permanecer unidas: palavras em uma frase, e obras de arte em um espaço. O Musée d’Art Moderne, Département des Aigles, Section des Figures, de Marcel Broodthaers parece procurar precisamente essa forma de ruptura com a sintaxe e o sentido ortodoxos: uma ruptura que reivindica o papel da interpretação a fim de alavancar sua abertura. Ao fazer de si mesmo o diretor do museu, Broodthaers assegura que não se poderá falar por ele, substituindo a interpretabilidade curatorial [curatorial interpretability] por uma dupla autoria — seleção, criação e mediação(21). É adequado que o avatar final do Musée d’Art Moderne tenha sido na Documenta 5 em 1972, como a Section Publicité (na Neue Galerie) e na Section d’Art Moderne (na seção Museus de Artistas). A última incluía uma placa no chão envolta por mourões, mostrando o slogan “Propriedade Privada” em três línguas — uma inscrição que Broodthaers trocou para o último mês da exposição. Ele descreveu essa inscrição como sendo não apenas uma sátira com a identificação da arte com a propriedade privada, mas com:
...a expressão de meu poder artístico tal qual está destinado a substituir aquele do organizador — Szeemann da documenta 5 [...]. O segundo objetivo me parecia, finalmente, não ter sido atingido e, ao contrário, a inscrição reforçava a estrutura aí instituída. Daí a mudança, pois um dos papeis do artista é, pelo menos, tentar realizar uma subversão do esquema organizacional de uma exposição.
As palavras da segunda inscrição são uma série poética de verbos terminando em “pouvoir”, ter a capacidade de, mas que também funcionam como um substantivo, “poder”: a última linha da inscrição, “faire informer pouvoir”, opera assim como uma série de verbos mas também como a frase ‘fazer o poder informar’. A ambiguidade dessa frase implica que, como Broodthaers indica, um dos papeis da arte é revelar os mecanismos de autoridade que constroem sentido para nós. O Musée d’Art Moderne leva a cabo assim uma luta pelo controle do sentido e da interpretação — dirigido, em seu encerramento, contra a pessoa agora considerada o fundador da curadoria contemporânea.
IV
Em seu ensaio de 1989 “From Museum curator to Exhibition Auteur”, os sociólogos franceses Nathalie Heinich e Michael Pollak argumentam que, no intervalo de uma geração, o papel do curador mudou de uma profissão despersonalizada, orientada em torno da tarefa quadripartida de “assegurar a herança, enriquecer coleções, pesquisar e exibir”, para uma posição de singularidade em uma área particular: a apresentação de obras ao público(22). Em sua visão, essa mudança se deu como resultado de um aumento no número de exposições em museus (tanto em coleções permanentes como exposições temporárias), de uma diversificação de disciplinas que podem ser exibidas (de história natural a feiras comerciais de arte), e de um crescimento de exposições realizadas por instituições culturais (monográficas, temáticas, geográficas, históricas, etc.). Essa última, em particular, requer novas funções, as quais eles descrevem como “um papel administrativo ampliado, determinando um marco de trabalho conceitual, selecionando colaboradores especializados de várias disciplinas, dirigindo equipes de trabalho, consultando um arquiteto, assumindo uma posição formal em termos de apresentação, organizando a publicação de um catálogo enciclopédico, etc.”. É significativo que todos esses papéis sejam também uma questão de competição e marketing: há mais exposições porque há mais locais de exposição para arte contemporânea, o que, por sua vez, desempenha um papel importante na regeneração de cidades através do turismo; e por sua vez, torna o papel do curador cada vez mais promocional.
Nesse ponto, Boris Groys está certo em argumentar que hoje em dia a autoria de exposições é múltipla — como em um filme ou uma produção teatral — mesmo quando o ato da seleção é “soberano”, “privado, individual e subjetivo”. Heinich e Pollak produzem uma analogia semelhante: a recentemente singularizada posição do curador como criador é comparável ao auteur na teoria do cinema. Eles apoiam essa afirmação com o argumento de que o orçamento de uma exposição de grande escala e a de um filme são aproximadamente equivalentes; os dois inserem-se na economia de produtos culturais temporários para distribuição de massa; e os dois requerem uma equipe que trabalhe sob a égide de um diretor cuja identidade passa por variações consideráveis (produtor, roteirista, diretor, curador, criador, etc.). Os dois, nós poderíamos acrescentar, tendem a ser empreitadas comerciais. Mas considerando esse papel expandido, é revelador que Heinich e Pollak não mencionem as mudanças na produção artística em torno de 1968 como tendo levado a tais mudanças: esse papel de produção e direção já havia aparecido na esfera da produção artística, em relação ao papel do artista de instalação, e especialmente desses artistas que — como Broodthaers — estavam envolvidos em práticas curatoriais da crítica institucional.
Em uma época em que a megaexposição proliferou de maneira exponencial, em sincronia com o crescimento de programas de formação de curadores, podemos ver que o “curador-auteur” emergiu simultaneamente com a arte de instalação e a crítica institucional. Os anos 1968-72 — os anos do Musée d’Art Modernede Broodthaers — são aqueles de uma luta de poder, não simplesmente pelo controle de um espaço, mas pelo controle de um sentido (e no caso de Broodthaers, a afirmação de um sentido profundamente ambíguo). Hoje, quando a influência do crítico independente foi suplantada por um curador não-tão-independente como árbitro do gosto, parece necessário reavaliar a autonomia autoral que é evacuada na afirmação de Groys segunda a qual os papeis do artista e do curador convergiram. O curador freelance já não é mais uma figura independente, senão uma celebridade perseguida tanto por artistas quanto por galerias, e que age como corretor de influencias entre colecionadores, o mercado e agências de financiamento. Que essa figura exerça uma atração substancial para uma geração mais jovem é um sinal dúbio, posto que a competitividade para ascensão na carreira curatorial, exige cada vez mais estilos de assinaturas e artifícios [gimmicks]. E pela promessa de associação com essas figuras globe-trotters, artistas parecem demasiado felizes em preencher os pedidos curatoriais mais vazios.
Concluirei com uma pequena anedota. Recentemente, vimos em Londres uma exposição de alto padrão na abandonada Central Elétrica de Battersea, uma exposição de vídeo-arte contemporânea chinesa que nem mesmo pretendia mostrar obras de arte como “toques de cor em um quadro”. Os espectadores foram guiados como um rebanho pelo prédio dramaticamente destruído e lhes foram concedidos escassos minutos para assistir a uma média de 10 vídeos por andar. Como algumas obras tinham 20 minutos de duração, havia pouca chance de se fazer justiça ao trabalho dos artistas — uma situação tornada ainda mais difícil pela falta de informação contextual sobre os artistas. Tornou-se evidente que estávamos em uma Central Elétrica para ver o prédio (realçado pela exposição) e não para ver arte. Isso não tinha nada a ver com cultura e tudo a ver com marketing: promovendo a galeria que havia organizado a exposição como um rival implícito à outro museu realizado a partir de uma central elétrica rio abaixo (Tate Modern), lubrificando as rodas do investimento empresarial (depois da exposição, o prédio se tornará um shopping center), e utilizando a arte chinesa como um flagrante ponto de acesso ao mercado chinês (a companhia que financiou a exposição é dirigida pela mulher do investidor chinês). O celebrado curador responsável pela exposição não mostrou qualquer resistência a essa instrumentalização da cultura, nem qualquer responsabilidade legível em relação à arte, posto que falhou na mediação de sua recepção pelo público. Corretor de influências [power-broker] e nome de marca, o curador como auteur nunca esteve tão distante do artista-curador.
•••
1 Optou-se por manter a grafia francesa do termo ‘autor’ sempre que este
aparece em francês no texto original. O termo ‘auteur’ faz referência a seu uso
comum no contexto cultural francês, sobretudo a partir dos anos 1960, como na
expressão “cinema de autor”, cunhada em oposição ao “cinema de entretenimento”;
ver também a famosa controvérsia sobre “A morte do Autor” levantada por Roland
Barthes em 1967-8 em seu ensaio homônimo, e retomada em 1969 por Michel
Foucault em conferência intitulada “O que é um autor?” (Nota do tradutor)
2 Boris Groys, ‘Multiple Authorship’, in Barbara Vanderlinden and Elena
Filipovic (eds.) The Manifesta Decade:
Debates on Contemporary Exhibitions and Biennials, MIT Press, 2006, pp.
93-99. Fui convidada a responder a esse ensaio em 150
palavras; uma tarefa impossível. O presente artigo segue na direção de uma
resposta completa.
3 Mary Staniszewski, The Power of
Display: A History of Exhibition Installations ate the Museum of Modern Art,
MIT Press, 1998, p. 286.
4 Variações em Pyramid/ A Work in
Porgress, exibido no Moderna Museet em 1971-2, foram apresentadas como A Station of the Cross (Galerie M.E.
Thelen, Essen, 1972), Ark, Pyramid(Documenta 5, 1972), Ark, Pyramid —
Easter (Kunstmuseum Lucern, 1973) e Ark,
Pyramid — Christmas (Wilhelm Lehmbruck Museum, Duisberg, 1973).
5 O termo ‘curador independente’ faz referência a um organizador de
exposição dedicado à apresentação temporária de obras de seus ou suas contemporâneo(a)s, ao invés da aquisição e pesquisa de arte para a coleção de um museu. O reconhecimento generalizado do curador independente como uma posição distinta foi indicada em 1975 pela formação do Independent Curators
International. Para uma discussão de When
Attitudes Become Form e a sua recepção crítica, ver Bruce Altshuler, The Avant-garde in Exhibition, New York:
Harry N. Abrams Inc, 1994. Embora Szeemann seja creditado com o papel de ser o primeiro curador independente, Seth Siegelaub e Lucy Lippard curaram um númeroconsiderável de exposições de arte conceitual em Nova York e Seattle em 1969;
de forma significativa, eles se referiam a si próprios não como curadores mas como negociantes e críticos de arte.
6 As outras duas grandes seções da exposição foram Realismus (exibindo a moda dos anos 70 do fotorrealismo em pintura
e escultura); Idea + Idea / Light(obras conceituais de artistas como Art and Language, Berndt e Hilla Becher e
Hanne Darboven).
7 O título, Mitologias Individuais,
deveria incialmente ser Xamanismo e
Misticismo, em homenagem a Joseph Beuys. Szeemann sabiamente trocou isso
para aludir ao pouco conhecido artista francês Etienne Martin, o qual descrevia
suas próprias esculturas como ‘mitologias pessoais’. Ver Harald Szeemann, ‘Documenta 5’, em Ecrire les Expositions,
Brussels: La Lettre Volée, 1996, ppp.27-33.
8 Essa posição já havia sido manifestada em sua programação da Kunsthalle
de Berna (para a qual ele foi nomeado diretor em 1961): exposições de arte outsider e de doentes mentais (Bildnerei der Geisteskranken —Art
Brut—Insignia pingens, 1963), arte folk (Ex-Voto, 1964), produtos comerciais e de cultura popular (Science Fiction, 1967), assim como
figuras excêntricas que não se encaixam em narrativas canônicas ou estilos
oficiais (como Etienne Martin, 1964).
9 Carta ao Frankfurter
Allgemeine Zeitung, de 12 de maio de 1972,
assinada por Carl Andre, Hans Haacke, Donald Judd, Bary Le Va, Sol Lewitt,
Robert Morris, Dorothea Rockburne, Fred Sandback, Richard Serra e Robert
Smithson.
10 “Essas seções (castrações) “toque de cor —
cuidadosamente escolhidas — do quadro que compõe a exposição na sua totalidade
e por seu próprio principio, aparecem sob a proteção do organizador, aquele que
re-unifica a arte, nivelando-a toda na joia/tela (écrin-écran) que constrói”. Daniel Buren, “Exposition d’une exposition”, Documenta 5, 1972, seção
17, p.29, tradução em inglês tirada do website The Next Documenta Should be Curated by an Artist. [Em português: Daniel Buren, Exposição de uma
exposição, in Paulo Sergio Duarte (ed.), Daniel
Buren: Textos e entrevistas
escolhidas 1967-2000, Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2001].
11 É talvez intrigante que Buren — um artista cujo trabalho tomou o
caminho de uma radical de-subjetivação das formas expressivas como a pintura, e
uma critica da autonomia da arte através do desenvolvimento de intervenções site-specific — lamente agora a falta de
autonomia da arte. Voltando a esse texto trinta anos depois, Buren admite que
essa situação não havia mudado: “Isso não quer dizer que exposições não
necessitem de um organizador — elas claramente necessitam — a diferença é entre
um organizador-intérprete e um organizador-autor. Com o último, o que é exibido
é o curador ao invés de obras de
arte”. Daniel Buren, contribuição ao website The Next Documenta Should be Curated by an
Artist.
12 Smithson argumenta que não há qualquer liberdade a ser encontrada na
exploração do “processo” no interior do espaço predeterminado da galeria
neutra; ao invés, ele defende a “dialética que busca um mundo fora do
confinamento cultural”, i.e. arriscando a engajar-se com o espaço
extra-artístico. Processo era uma das
subdivisões de Mitologias Individuais.
13 Finalmente — e desenvolvendo esse tema ético um passo mais adiante — Morris expressa sua reprovação ao fato de Szeemann ter pego emprestado uma de
suas obras de um colecionador, sem ter antes lhe consultado.
14 Marcel Broodthaers, carta aberta à ocasião da
Documenta 5, 1972, e entrevista com Jürgen Harten e Katharina Schmidt,
distribuída como um comunicado de imprensa por ocasião de sua exposição na
Kunsthalle de Dusseldorf em 1972; ambos são citados em Douglas Crimp, ‘This is
Not a Museum of Art’, Marcel Broodthaers,
Minneapolis: Walker Art Centre, e Nova Iorque: Rizzoli, 1989, p. 75.
15 A palavra francesa “sens”apresenta a mesma polissemia que o termo “sentido” em português: pode tanto
querer dizer “significado” quanto “direção”. (Nota do tradutor)
16 Incluindo a Section VIIème Siècle(Amsterdam, 1969), a Section Cinéma(Dusseldorf, 1971) e a Section Financière(cologne Art Fair, 1971).
17 Broodthaers, ‘Imaginary Interview with René Magritte’, in Magritte, Écrits Complets, Paris, Flammarion,
1971, pp. 728-9.
18 Michel Foucault, This is not a
Pipe, University of California Press, 1983, pp. 29-30. Itálicos da autora. [Em português: FOUCAULT,
M., Isto não é um cachimbo. Trad. Jorge Coli. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1988, p. 35].
19 Por “lugar-comum, Foucault entende tanto o fundo comum
partilhado da linguagem e das ideias, como o ‘lugar-comum’ ordinário; em seu
lugar está o que ele chama de um ‘não-lugar’ de mistério e de enigma — um excedente que é instável, sem obrigação para com convenções, ‘traduções sem
pontos de partida ou suporte’ (p.52). Foucault se refere à emergência de um
‘não-lugar’ na pintura misteriosa Perspective:
Mme Récamier (1958), na qual o sujeito vivo do retrato de David é substituído por um caixão colocado na vertical (p.41). Ele também se refere ao ‘não-lugar da linguagem’ no prefácio à Ordem
das Coisas, p. xvii.
20 A Ordem das
Coisas, p. 48 aparentemente — mas não pude encontrar. Citado
na Introdução do Tradutor, Foucault, This
is not a Pipe, p. 4
21 “E no lugar do artista como autor nós encontramos o artista como
diretor de seu Museu de Arte Moderna; e que no lugar da tradicional, o que quer
dizer também moderna, instituição museológica, nós encontremos o museu
imaginário [museum-without-walls], isso é, o regime enunciativo atual de tudo o
que a modernidade chama de arte”. Thierry de Duve, ‘Critique of Pure
Modernism’, October no. 70, Autumn 1994, p. 93. Ainda assim, o “sentido”
oficial que se desprende do Museu de Arte Moderna é agora bem conhecido dos
historiadores da crítica institucional; um paralelo traçado entre a mitologia
da águia e a mitologia do museu como discurso. Mas o que se deixa fora dessa
explicação é a opacidade de inspiração surrealista da instalação de
Broodthaers.
22 Os autores citam o curador francês Gérard Régnier comparando sua
experiência de organizar uma exposição de Bonnard na Orangerie, Paris, em 1966,
e no Centre Pompidou em 1986. Na primeira ele teve de escolher obras, assegurar
empréstimos, expor as obras cronologicamente, e produzir um catálogo enxuto,
com a ajuda de uma pequena equipe; para a última, ele produziu uma imensa
monografia, apresentou um argumento (a modernidade de Bonnard), dirigiu uma
grande equipe, e sensibilizou o público ao que as obras não podiam elas
próprias revelar. Nathalie Heinich e Michael Pollak, “From Museum
curator to Exhibition Auteur: Inventing a singular Position”, in Sandy Nairne,
Ressa Greenberg, et al, Thinking About
Exhibitions, London: Routledge, 1996, pp. 236-7.
Tradução para o português do ensaio "O que é crítica institucional?"
da artista estadunidense Andrea Fraser.
da artista estadunidense Andrea Fraser.
Fonte > Concinnitas, publicação do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Ano 15, volume 02, número 24, dezembro de 2014
O que é Crítica Institucional?
O que é Crítica Institucional?(23) Como ela deve distinguir-se de outros legados das vanguardas históricas; de outros discursos e disciplinas que refletem sobre as ‘instituições’ da arte, incluindo agora não apenas arte, história da arte e arquitetura, mas também antropologia e sociologia, políticas culturais e estudos curatoriais, entre outros? A Crítica Institucional é geralmente definida por um objeto, “instituições”: a “instituição da arte” ou, de forma mais estrita, determinada forma de arte apresentando organizações. Como o panfleto para esse simpósio diz, a Crítica Institucional é a arte que expõe “as estruturas e lógicas de museus e galerias de arte”.
Gostaria de sugerir que a Crítica Institucional, enquanto prática, não pode ser definida por um objeto, nem por uma “instituição”, não importa o quão amplamente concebida, e nem mesmo como arte sobre arte. Os papéis listrados que Buren afixou nas estações de metrô de Paris no fim dos anos 1960 não são arte sobre arte. Nem tampouco o são as fotografias de favelas americanas produzidas por Asher para a Bienal de São Paulo de 1998. Nem o trabalho sobre as operações da British Leyland na África do Sul que Haacke mostrou em Oxford em 1978, ou sobre os investimentos da Alcan na África do Sul, que ele mostrou em Montreal em 1983. No entanto, a Leyland tinha uma grande fábrica em Oxford, e a Alcan tinha sua sede em Montreal.
O que esses e muitos outros exemplos sugerem é que a Crítica Institucional só pode ser definida por sua metodologia de especificidade do site criticamente reflexiva(24)[‘critically reflexive site-specificity’]. Enquanto tal, ela pode distinguir-se em primeiro lugar de práticas site-specific que lidam basicamente com o aspecto físico, formal ou arquitetônico de lugares e espaços. A Crítica Institucional ocupa-se de sites acima de tudo como sites sociais, conjuntos estruturados de relações que são fundamentalmente relações sociais. Dizer que são relações sociais não significa opô-las à relações intersubjetivas ou mesmo intrasubjetivas, mas dizer que um siteé um campo social dessas relações.
Dizer que a Crítica Institucional ocupa-se de tais sites de forma reflexiva é especificar que, entre as relações que definem qualquer siteestão tanto nossas relações ao site quanto as condições sociais dessas relações. Dizer que esse engajamento reflexivo é crítico é dizer que ele não visa afirmar, expandir ou reforçar o site ou nossa relação com este, mas problematizá-lo e mudá-lo. Na medida em que um site é compreendido como um conjunto de relações, a Crítica Institucional visa transformar não apenas as manifestações substantivas, visíveis dessas relações, mas sua estrutura, e em particular o que é hierárquico nessa estrutura e as formas de poder e dominação, de violência simbólica e material, produzidas por essas hierarquias. Isso é o que distingue a Crítica Institucional de práticas contra-hegemônicas que visam representar ou criar novos espaços para posições excluídas ou subalternas. É também o que distingue a Crítica Institucional de práticas site-specific que propõem criar novas relações sem engajar-se numa crítica específica e explicita das relações existentes nesses sites.
Dizer que busca-se essa crítica de forma site-specific e reflexiva é sugerir que, como prática política, as intenções transformadoras da Crítica Institucional visam, sobretudo, formas de dominação operando em seu campo de trabalho imediato. Isso é o que distingue a Crítica Institucional da arte política ou de um ativismo cultural que trabalha sobre condições ou relações afastadas do campo primário da própria prática. Entretanto, isso não significa que a Crítica Institucional seja apenas arte sobre arte. As relações que constituem qualquer site artístico incluem sempre relações entre o campo artístico e outros campos, relações examinadas não somente em termos de intrusão [encroachment] ou instrumentalização (p.ex. patrocínio corporativo), mas também em termos de homologias de estrutura e interesse (p.ex. a corporativização de museus, galerias e até mesmo estúdios).
Assim como muitas outras práticas radicais dos anos 1960, a Crítica Institucional surgiu com a tomada de consciência por parte dos artistas de que todas as obras de arte, não importa o quão esteticamente autônomas, podem ser exploradas para lucro econômico e simbólico — e frequentemente, não apesar de, mas em razão de sua autonomia, uma autonomia que determina sua existência não apenas como objetos ou ideias, mas como commoditiesmateriais ou até mesmo imateriais. Reconhecendo o caráter parcial e ideológico da autonomia artística, a Crítica Institucional desenvolveu-se não como mais um ataque a essa autonomia mas, antes, como uma defesa da arte (e das instituições da arte) contra tal exploração, seja através da reflexão sobre os mecanismos discursivos e sistêmicos de reificação e instrumentalização, como na obra de Broodthaers ou Haacke, ou através do desenvolvimento de práticas pós-estúdio rigorosamente transitórias que resistiram diretamente à comoditização, como na obra de Asher ou Buren.
No interior dessas políticas culturais, a metodologia da especificidade do site criticamente reflexiva pode ter surgido inicialmente como um princípio prático. Se você quer mudar alguma coisa, uma relação, e em particular uma relação de poder, a melhor, senão a única forma de realizar tal mudança é intervindo na manifestação [enactment] dessa relação. De modo similar à Psicanálise, como Freud a entende, intervenções artísticas só podem funcionar com efetividade em relações tornadas “atuais e manifestas” em uma dada situação: afinal de contas, “quando tudo está dito e feito, ninguém pode ser destruído in absentia ou in effligie”(25). E é o que faz da Crítica Institucional, assim como da Psicanálise, algo tão profundamente difícil, pois intervir em relações em suas manifestações sempre significa também que você mesmo participe em sua manifestação, no entanto, de forma consciente.
E essa é também a base da ambivalência da Crítica Institucional, pois enquanto essas relações podem parecer fundamentalmente sociais, elas nunca estão “lá fora”, em sitese situações, muito menos em “instituições”, que sejam distintos e separáveis de nós mesmos. Nós somos a instituição da arte: o objeto de nossas críticas, de nossos ataques, está sempre também dentro de nós.
E essa é, finalmente, a razão pela qual a Crítica Institucional tem a estrutura da melancolia. Ela existe como uma manifestação da separação que produziu a instituição da arte tal como a conhecemos: a separação do campo da cultura entre a produção especializada e vernacular e o consumo sem o qual uma arte relativamente autônoma não existiria; a separação da instituição da arte entre sujeito e objeto de investigação artística que foi trazida a tona pela autocrítica das vanguardas históricas. A Crítica Institucional incorpora essa separação, a qual nós também internalizamos, e contém sua irredutibilidade, recusando as projeções (o “fora”, o “cotidiano”) e idealizações (mitos de radicalidade artística e onipotência criativa) com os quais nós poderíamos talvez repudiar o fracasso que é a nossa herança artística e nos cegar à tragédia de nossa atualidade artística.
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O que é Crítica Institucional?(23) Como ela deve distinguir-se de outros legados das vanguardas históricas; de outros discursos e disciplinas que refletem sobre as ‘instituições’ da arte, incluindo agora não apenas arte, história da arte e arquitetura, mas também antropologia e sociologia, políticas culturais e estudos curatoriais, entre outros? A Crítica Institucional é geralmente definida por um objeto, “instituições”: a “instituição da arte” ou, de forma mais estrita, determinada forma de arte apresentando organizações. Como o panfleto para esse simpósio diz, a Crítica Institucional é a arte que expõe “as estruturas e lógicas de museus e galerias de arte”.
Gostaria de sugerir que a Crítica Institucional, enquanto prática, não pode ser definida por um objeto, nem por uma “instituição”, não importa o quão amplamente concebida, e nem mesmo como arte sobre arte. Os papéis listrados que Buren afixou nas estações de metrô de Paris no fim dos anos 1960 não são arte sobre arte. Nem tampouco o são as fotografias de favelas americanas produzidas por Asher para a Bienal de São Paulo de 1998. Nem o trabalho sobre as operações da British Leyland na África do Sul que Haacke mostrou em Oxford em 1978, ou sobre os investimentos da Alcan na África do Sul, que ele mostrou em Montreal em 1983. No entanto, a Leyland tinha uma grande fábrica em Oxford, e a Alcan tinha sua sede em Montreal.
O que esses e muitos outros exemplos sugerem é que a Crítica Institucional só pode ser definida por sua metodologia de especificidade do site criticamente reflexiva(24)[‘critically reflexive site-specificity’]. Enquanto tal, ela pode distinguir-se em primeiro lugar de práticas site-specific que lidam basicamente com o aspecto físico, formal ou arquitetônico de lugares e espaços. A Crítica Institucional ocupa-se de sites acima de tudo como sites sociais, conjuntos estruturados de relações que são fundamentalmente relações sociais. Dizer que são relações sociais não significa opô-las à relações intersubjetivas ou mesmo intrasubjetivas, mas dizer que um siteé um campo social dessas relações.
Dizer que a Crítica Institucional ocupa-se de tais sites de forma reflexiva é especificar que, entre as relações que definem qualquer siteestão tanto nossas relações ao site quanto as condições sociais dessas relações. Dizer que esse engajamento reflexivo é crítico é dizer que ele não visa afirmar, expandir ou reforçar o site ou nossa relação com este, mas problematizá-lo e mudá-lo. Na medida em que um site é compreendido como um conjunto de relações, a Crítica Institucional visa transformar não apenas as manifestações substantivas, visíveis dessas relações, mas sua estrutura, e em particular o que é hierárquico nessa estrutura e as formas de poder e dominação, de violência simbólica e material, produzidas por essas hierarquias. Isso é o que distingue a Crítica Institucional de práticas contra-hegemônicas que visam representar ou criar novos espaços para posições excluídas ou subalternas. É também o que distingue a Crítica Institucional de práticas site-specific que propõem criar novas relações sem engajar-se numa crítica específica e explicita das relações existentes nesses sites.
Dizer que busca-se essa crítica de forma site-specific e reflexiva é sugerir que, como prática política, as intenções transformadoras da Crítica Institucional visam, sobretudo, formas de dominação operando em seu campo de trabalho imediato. Isso é o que distingue a Crítica Institucional da arte política ou de um ativismo cultural que trabalha sobre condições ou relações afastadas do campo primário da própria prática. Entretanto, isso não significa que a Crítica Institucional seja apenas arte sobre arte. As relações que constituem qualquer site artístico incluem sempre relações entre o campo artístico e outros campos, relações examinadas não somente em termos de intrusão [encroachment] ou instrumentalização (p.ex. patrocínio corporativo), mas também em termos de homologias de estrutura e interesse (p.ex. a corporativização de museus, galerias e até mesmo estúdios).
Assim como muitas outras práticas radicais dos anos 1960, a Crítica Institucional surgiu com a tomada de consciência por parte dos artistas de que todas as obras de arte, não importa o quão esteticamente autônomas, podem ser exploradas para lucro econômico e simbólico — e frequentemente, não apesar de, mas em razão de sua autonomia, uma autonomia que determina sua existência não apenas como objetos ou ideias, mas como commoditiesmateriais ou até mesmo imateriais. Reconhecendo o caráter parcial e ideológico da autonomia artística, a Crítica Institucional desenvolveu-se não como mais um ataque a essa autonomia mas, antes, como uma defesa da arte (e das instituições da arte) contra tal exploração, seja através da reflexão sobre os mecanismos discursivos e sistêmicos de reificação e instrumentalização, como na obra de Broodthaers ou Haacke, ou através do desenvolvimento de práticas pós-estúdio rigorosamente transitórias que resistiram diretamente à comoditização, como na obra de Asher ou Buren.
No interior dessas políticas culturais, a metodologia da especificidade do site criticamente reflexiva pode ter surgido inicialmente como um princípio prático. Se você quer mudar alguma coisa, uma relação, e em particular uma relação de poder, a melhor, senão a única forma de realizar tal mudança é intervindo na manifestação [enactment] dessa relação. De modo similar à Psicanálise, como Freud a entende, intervenções artísticas só podem funcionar com efetividade em relações tornadas “atuais e manifestas” em uma dada situação: afinal de contas, “quando tudo está dito e feito, ninguém pode ser destruído in absentia ou in effligie”(25). E é o que faz da Crítica Institucional, assim como da Psicanálise, algo tão profundamente difícil, pois intervir em relações em suas manifestações sempre significa também que você mesmo participe em sua manifestação, no entanto, de forma consciente.
E essa é também a base da ambivalência da Crítica Institucional, pois enquanto essas relações podem parecer fundamentalmente sociais, elas nunca estão “lá fora”, em sitese situações, muito menos em “instituições”, que sejam distintos e separáveis de nós mesmos. Nós somos a instituição da arte: o objeto de nossas críticas, de nossos ataques, está sempre também dentro de nós.
E essa é, finalmente, a razão pela qual a Crítica Institucional tem a estrutura da melancolia. Ela existe como uma manifestação da separação que produziu a instituição da arte tal como a conhecemos: a separação do campo da cultura entre a produção especializada e vernacular e o consumo sem o qual uma arte relativamente autônoma não existiria; a separação da instituição da arte entre sujeito e objeto de investigação artística que foi trazida a tona pela autocrítica das vanguardas históricas. A Crítica Institucional incorpora essa separação, a qual nós também internalizamos, e contém sua irredutibilidade, recusando as projeções (o “fora”, o “cotidiano”) e idealizações (mitos de radicalidade artística e onipotência criativa) com os quais nós poderíamos talvez repudiar o fracasso que é a nossa herança artística e nos cegar à tragédia de nossa atualidade artística.