Texto redigido em parceria com Lucas Sargentelli Icó e publicado de forma anônima pela Agência Transitiva. Lê-se como o autorretrato crítico de um grupo de jovens artistas cariocas, cujo interesse em arte e ativismo político, referenciado em experiências dissidentes de grupos europeus e estadunidenses, se vê subitamente confrontado pela concretude, singularidade e complexidade de sua própria realidade nas — ainda hoje disputadas — "Jornadas de junho de 2013".

Fonte > Publicação independente Agência Transitiva Ano 1, 2013 (português/inglês)




                Cabe apreciar ao menos o que pode haver de insólito nessa situação:

13 indivíduos reunidos no dia 31 de julho de 2013 em um apartamento da rua Pereira da Silva, no bairro das Laranjeiras, para discutir a identidade do que vinha sendo chamado até então de Agência Transitiva. Não era a primeira vez; e suponhamos aqui, também não a última. Após três horas de conversa, estão todos espalhados pela sala, em cadeiras e sofás, cansados, porém atentos, ouvindo a gravação de sua última ‘ação’, executada dias antes na Matilha Cultural, em São Paulo.

                Por ocasião de um debate sobre a ‘Estética da manifestação’, no qual pesquisadores e artistas foram convidados a expor suas impressões sobre a recente onda de agitação que tomou o país, a Agência fez-se ouvir, mas não ver, por uma diminuta plateia, através de um toca-discos portátil. Aos risos e expressões de surpresa dos presentes, com aquelas vinhetas populistas do Banco Safra de mais de duas décadas atrás, respondeu uma única frase, lançada ao final da gravação, por um jovem da plateia: “Mano, se eu ouvisse isso naquela época, eu tacava fogo nesse banco!”

                Não foi muito diferente do que de fato aconteceu, apenas alguns dias mais tarde, no eixo financeiro dessa mesma cidade, e sem que nenhum membro da Agência estivesse presente: em uma manifestação especialmente violenta, foram sistematicamente depredadas todas as agências bancárias da Avenida Paulista. Não é dizer que esta mesma Agência apoiasse a onda de destruição ou, ainda, que o faria caso estivesse por lá. Certamente, alguns o fariam, outros não. É dizer sobretudo que, neste momento, ninguém vê mais longe do que qualquer outro. Nem os tais pesquisadores, nem os artistas, nem a polícia, nem os banqueiros, nem os manifestantes da Paulista. Meteorologistas não predizem o dia de amanhã, nem astrólogos o mais além.

                O que dizer então dos 13 da Pereira da Silva, senão que estão, de volta ao Rio, tentando não apenas compreender o quê ou como fazer, mas antes, por que estão ali. Questão esta que não tardaria a aparecer – inevitável – após alguns poucos meses de atividades, as quais consistiram, no mais das vezes, em simples partilha de dúvidas, informações e desejos entre o próprio grupo.

                Agência significa, entre muitas outras coisas, a ‘capacidade de intervir no mundo’; e transitivo, por sua vez, diz ‘aquilo que vai para além de’. Este nome composto, escolhido por votação em encontros anteriores, lhes pareceu a princípio mais adequado pelo que parecia negar do que afirmar: a saber, uma certa resistência às ideias de estagnação e permanência. Em oposição à organização de um ‘coletivo artístico’, as atividades da Agência deveriam trabalhar um outro registro de grupo. Nada de nomes, sem espaço para auto-promoção.

                Possibilidade de trabalho anônimo que parecia ecoar o sentido de sua ‘ação’ mais significativa até então: a tradução e publicação independente do “Guia para exigir o impossível” (texto de Gavin Grindon e John Jordan e produção do Labofii, Laboratory of Insurrectionary Imagination). Foi a grande difusão desse livreto, tão inesperada, aliás, como qualquer um dos eventos daqueles dias incomuns, que rendeu à Agência os primeiros convites para participar de encontros e debates, como aquele em São Paulo. E, ao mesmo tempo, seus primeiros diferendos internos. Pois pareceu-lhes ser preciso acertar as agulhas do relógio num mesmo quadrante para que o alarme pudesse tocar na hora certa, e não ficar girando em vão em torno de seu próprio eixo. Ora, nada menos certo para os 13 da Pereira da Silva do que a precisão impessoal do meridiano de Greenwich.

                Mas esta não foi a única dificuldade tradutória na qual eles esbarrariam. Era também necessário verter ao português a odiosa palavra inglesa ‘artivism’, a qual os autores faziam alusão, movidos por um genuíno desejo de pensar a produção de obras para além de simples bens de consumo. E o que fazer ainda desse tal de ‘impossível’, palavra tão carregada de idealismo pós-democrático europeu, em um contexto onde nem mesmo coisas radicalmente ‘possíveis’ se fazem por vezes presentes? E eram, por acaso, da mesma ordem as manifestações nas periferias de Londres ontem e estas que mobilizaram milhões por aqui hoje?

                O “Guia” está aí, a resposta não. Razão pela qual caberia talvez dizer que, nesse momento, nada saberia guiar quem quer fosse para lugar algum.

                Sem direção, voltam todos à Pereira da Silva, para o que seria uma reunião de crise. Do meio da mais densa cortina de fumaça, os 13 decidem lançar mão do que cabe apreciar, agora sim, como o mais insólito dos recursos para um grupo de artistas: uma oficina de planejamento estratégico, destinada a dar resposta a um conjunto de questões, simples em aparência: o que querem? Por que querem o que querem? E como planejam, afinal, realizá-lo?

                Mas seria preciso, antes de qualquer julgamento, ver neste gesto espontâneo da dita Agência uma ‘abertura operacional’ bem diferente do que se viu obrigada a fazer, sob a pressão dos mesmos protestos, por exemplo, uma empresa como a Fiat. Esta teve de rever, ponto por ponto, sua estratégia de comunicação e marketing, após sua ‘música-tema’ - vem pra rua, vem - ser incorporada pela multidão em um sentido inteiramente imprevisto. Afinal, todas as crises não são a mesma crise. E nem todos os toca-discos tocam a mesma música.

                Os manuais de gestão dizem: 
                Visão + Missão + Valores = Proposta de valor

                Por ora, a questão que dirige este movimento reflexivo da Agência consiste em justapor aquele seu primeiro ‘por que?’ a um eloquente: ‘e por que não?’ 


                Visão uma frase-proposta do que a organização deseja ser a médio e longo prazo e, ainda, de como ela espera que seja o mundo em que atua. É uma visão de longo prazo e concentra-se no futuro. Pode ser emotivo como uma fonte de inspiração. Por exemplo, uma instituição de caridade que trabalha com os pobres pode ter uma declaração de visão onde se lê “um mundo sem pobreza”.

Por uma coletividade de sujeitos autocríticos * Para que o oficio de viver seja o ser e não o fazer * Por uma vida possível no Rio de Janeiro * Se situar na faca de corte entre práticas políticas e estéticas * Viabilizar os fazeres dos agentes, emancipar * Deserção



                Missão define o propósito fundamental de uma organização ou de uma empresa, de forma sucinta, descrevendo por que ela existe e o que ele faz para alcançar a sua visão. Por exemplo, a caridade acima pode ter uma declaração de missão como “criar empregos para os desabrigados e desempregados”. 

Promover pontos de vista diversos a partir de inserções subversivas na cidade * Compartilhar recursos e multiplicar conhecimento * Viabilizar formas outras de circulação cultural e política na cidade através de encontros, itinerários, partilha de informação e intervenções micropolíticas * Promover ações que gerem reflexões/choques dentro de um contexto específico (ex. Jornada Mundial da Juventude, especulação imobiliária, etc) * Inventar e pôr em prática nossas ideias. Produzir pensamento, experiências, crítica, eventos, etc * Desenvolver novas formas de lidar com dinheiro para financiar os projetos * Conseguir espaços diversos de visibilidade, inserção e produção * Oferta de serviços dissidentes não convencionais



                Valores crenças compartilhadas entre as partes interessadas de uma organização. Valores conduzem a cultura de uma organização como uma diretriz ou ética compartilhada que ajuda a estabelecer prioridades e tomar decisões. Por exemplo, “conhecimentos e habilidades são as chaves para o sucesso” ou “dar um pão a um homem é alimentá-lo por um dia, mas ensina-lo a plantar é alimentá-lo por  toda vida”. Estes exemplos máximos podem definir as prioridades da organização.

Desinformar uma sociedade saturada de informações, buscar autonomia crítica, enfatizar processos construtivos, o prazer e a convivência de diferenças * O trabalho deve ser divertido e bem pago, as ações simples e sérias * Diálogo sempre horizontal entre os membros; ações públicas estritamente voluntárias e de cunho não-doutrinário e/ou autopromocional e/ou remunerativo * Utilizar os conhecimentos que os agentes possuem para realizar serviços, ações e provocações que reverberem em diferentes espaços (sempre além dos espaços da arte contemporânea) e que possam ser remunerados * Cooperação, parcerias, desautoria, diversão, fazer simples e bem feito, com ética * Confundir, criar, distribuir, viralizar, desatuar



                Desse exercício, que circulou por suas caixas de e-mail sob o singelo nome de ‘economia afetiva’, restam apenas os fragmentos, inconclusivos, que reproduzimos aqui inalterados, como emblemas de uma sã cegueira que se abateu sobre o bairro das Laranjeiras, a apenas algumas quadras de distância do palácio da Guanabara. Eles parecem dizer, à sua maneira indireta, em sua deriva: nós somos a Agência Transitiva e não sabemos quem somos. 

                Tanto melhor, ninguém sabe mesmo.

Agência Transitiva, Rio de Janeiro, Agosto de 2013