Resenha crítica, em colaboração com Júlio Martins, da apresentação do artista libanês Walid Raad, no contexto do workshop curatorial da 31ª Bienal de São Paulo.

Fonte > blog da 31ª Bienal de São Paulo, 2014




                Aquela manhã de sexta-feira, 31 de janeiro, parecia começar como a segunda-feira que abriu os trabalhos do primeiro encontro do workshop "Ferramentas para organização cultural" da 31ª Bienal de São Paulo. Isto é, com uma apresentação de portfólio e/ou projetos realizados. Um homem senta-se à mesa, toma um gole d’água, verifica o funcionamento do computador, abre sua apresentação de slides e começa a falar de forma compenetrada. Seu nome é Walid Raad, ele nos diz, artista nascido e crescido no Líbano, vive em Nova York, razão pela qual pratica um inglês impecável, e já teve seu trabalho exposto em algumas das mais importantes instituições do mundo. No ano anterior, por exemplo, expusera na prestigiosa dOCUMENTA(13) de Kassel, na Alemanha – e, no entanto, a impressão era de que a maioria daqueles jovens críticos, curadores e artistas sentados à sua frente, não o conhecia. Ele começa do início, perguntando se todos ali conhecem The Atlas Group e se poderia seguir adiante com seu trabalho mais recente – ao que a negativa de grande parte do público presente acaba por confirmar a primeira hipótese: trata-se de um ilustre desconhecido.

                The Atlas Group, diz ele, não é uma obra, nem um conjunto de obras, mas um conjunto de pessoas e instituições que, entre 1989 e 2004, coletaram, arquivaram e expuseram uma série de documentos (vídeos, imagens, cadernos, entre outros) deixados por um grupo de importantes historiadores do Líbano. Estes documentos, que Raad chama, não de ‘históricos’, senão de ‘histéricos’, tratam da relação dos libaneses com a traumática guerra civil que devastou o país, sucessivas vezes, entre 1975 e 1990. E no momento em que cada um de nós parecia procurar o tom sóbrio com o qual cabe tratar uma obra documental, especialmente como essa, tratando dos horrores da guerra e das desilusões da política no Oriente Médio, o artista acrescenta:

"Esses documentos, eu digo, simultaneamente, que os recebi dos historiadores e que os produzi eu mesmo. O grupo de intérpretes Atlas, eu afirmo tanto que existe como que é invenção minha. E ainda hoje, quando produzo alguma coisa que sinto pertencer a essa obra de alguma maneira, eu a dato entre 1989 e 2004".

                E o enfado que acompanha invariavelmente as tais apresentações de portfólios – forma altamente codificada de autopromoção no meio da arte – é aqui violentamente substituído por uma perplexidade diante do que caberia chamar de uma verdadeira “construção histórica”. Pois, para falar de seu próprio trabalho, Walid Raad põe-se a falar de um grupo de indivíduos debruçado sobre um outro grupo de indivíduos, os quais se debruçaram, por sua vez, sobre a história mais ou menos recente do seu país. A sua “obra” parece consistir justamente no espelhamento narrativo de si nestes nomes, lugares, datas, fragmentos, ruínas; enfim, em tudo o que há de mais coletivo nas memórias e apontamentos individuais – seus, ou de seus personagens, reais ou imaginários. E antes que se possa falar aqui em mera “ficção”, é preciso pesar o que há de resistente a essa ideia, na realidade mesma do que é um “documento”. Pois, longe da desenvoltura fantasiosa da narração ficcional, estes ‘documentos histéricos’ guardam a sua função historiográfica clássica, de provar, dar corpo, dar realidade, ao que se diz. Mesmo que criados pelo artista, estes funcionam aqui como escoras, ancorando seu discurso ao real. Diante do trabalho de Raad, portanto, não é apenas necessário deixar-se levar pela narrativa, pois tudo pode ser perfeitamente real. E é este condicional (nem perfeitamente ficcional, nem um matter of fact) que instala o espectador em um constante estado de suspensão, frustrando repetidas vezes o gosto de sua fantasia pessoal, e pedindo não obstante, logo em seguida, e diante do mais improvável, que retome a sua posição de fé: pois é preciso crer no que enuncia esse narrador. É talvez este estado que um de nós, interrompendo bruscamente o artista, tenha tentado descrever como a sensação de "estar sob o efeito de drogas".

                Raad continuou sua narração elíptica pelo resto da tarde, apresentando-nos novos projetos, imaginários ou não, os quais continham novos personagens, artistas, galeristas, críticos e instituições, inventados ou não, orbitando ao redor de obras suas, realizadas ou não, em mídias diversas. Uma obra seguia-se à outra, sempre ligada à história mais geral, a qual passou, entre muitas outras coisas, por análises de grupos de investimentos, a construção de novos museus nos Emirados Árabes, um fundo de pensão internacional para artistas, a redescoberta da história da arte no Oriente Médio por meio de ligações mediúnicas com espíritos do passado, e até mesmo um ensaio sobre a perda da noção de tradição através do prisma do vampirismo.

                Tudo isso, através de um discurso engenhoso, alternando momentos de análise conceitual e política e passagens de relativa descontração, beirando a anedota. Movimento calcado, por sua vez, em uma apresentação de slides que parecia não respeitar qualquer distinção convencional entre a apresentação de suas “obras” e as infinitas conexões entre elas e a narrativa mais geral. Ao fim de sua apresentação, interrompida pelo horário de encerramento de nosso encontro, Raad respondeu de modo oblíquo algumas perguntas sobre o quê fizera ali aquela tarde. Disse-nos que, tendo estudado em um ambiente acadêmico de ponta, percebeu que havia um certo ritual das apresentações em colóquios e conferências – sentar-se à frente do público, tomar um gole d’água, verificar o funcionamento do computador, abrir uma apresentação de slides – e que decidira tomar aquilo como uma espécie de médium artístico a ser explorado. Desde então, ele apresenta seu trabalho, não apenas, mas frequentemente, na forma de apresentações como essa. Acabáramos de presenciar, portanto, não uma apresentação de seu trabalho, ou de seu portifólio, mas seu trabalho ele mesmo, em sua forma mais pura: a de linguagem. Particularmente interessados em questões narrativas, os que agora escrevem este relato perguntaram-lhes ainda, mais tarde, qual poderia então ser a função das "obras" propriamente ditas – aqueles vídeos, fotografias, instalações, etc. Ao que ele nos responde: "como no teatro, elas funcionam como simples adereços de palco". A palavra inglesa prop, utilizada por ele, confirma o que já havíamos intuído; seus outros sentidos são, como se sabe: "apoio, acessório de cena, escora".