Neste breve ensaio volto ao meu primeiro caderno preto de capa dura da marca Moleskine, no qual anotei as inquietações que viriam a dar origem à minha produção artística, muitos anos depois. Ali encontro uma entrada em especial que serviria, a uma só vez, como uma resolução, um método e um programa de trabalho para o futuro.
Fonte > Jornal Nossa Voz #1018 - Edição Futuros Possíveis, dezembro 2017
Nos estertores de 2007, ganhei de aniversário um caderno preto de capa dura da
marca Moleskine. No semestre final da minha graduação em filosofia, pareceu
natural destiná-lo aos fichamentos das leituras que fazia em vistas da
monografia. Rapidamente, no entanto, o conteúdo daquelas páginas começou a se
diversificar. A resenha de um livro de Paul Valéry, que levei comigo em uma
viagem à Patagônia, ganhou esta curiosa introdução: “Olho o lago, as coníferas
e um resto de neve no topo das montanhas circundantes. Absolutamente azul,
absolutamente verde.” Logo após, uma nota em que me lamento pelo atraso na
leitura, seguida de uma citação do livro em questão e um comentário crítico. No
outro dia, encontra-se o rascunho de uma longa carta que escrevi à minha namorada
da época. Havíamos nos separado há pouco e eu lhe dizia (me dizia) que ainda a
amava, mas que era preciso esperar para ver o que nos aguardava pela frente. Já
mais algumas páginas à frente, tomando distância em relação àquelas palavras
escritas na vertigem de uma madrugada, sentenciava: "É uma palavra
perigosa esta — amor; releio agora: está tudo definitivamente mal escrito […]”.
Para logo depois ponderar: “De qualquer forma, o caderno está aí para isso:
aprender na escrita, num longo ano, menos ou mais, o quanto durar o fôlego de
estudante da palavra.” E terminava essa entrada por um diálogo imaginário: “‘Isso
leva tempo’, dirão; ‘isso leva em conta o tempo’, direi. Uma questão de tempo —
frase favorita, mil e tantas vezes repetidas, aqui e ali.”
Esse tipo de interferência se tornaria cada vez mais frequente ao longo de um 2008 em que me separaria ainda outra vez, seria o pivô de uma briga que rompeu um círculo de amigos próximos, terminaria a universidade aos trancos e barrancos e mudaria de país para seguir com os estudos. Mas não tardaria muito a compreender que o próprio caderno poderia funcionar como um meio de unificar aqueles fragmentos tão díspares de experiência: "É a ideia de um relato", escrevi ainda no Brasil, "a partir desse caderno, sobre a monografia, os relacionamentos, a espera infinita pela carta [de aceitação na universidade], a mudança de vida que ainda vem.” Se tal relato já não se limitava a um mero conjunto de notas de leitura, tampouco respondia às exigências de um diário tradicional. Mesclando passagens acadêmicas, descritivas e confessionais, não poderia simplesmente pressupor o transcorrer dos dias, mas, pelo contrário, tomar o próprio tempo por objeto, como um enigma por decifrar: "Haverá então a porra do tempo”, anotei ali em algum momento, com o seguinte adendo: ”mas é preciso querer, e a isso chamo de trabalho." Era a intuição de um certo uso da escrita — parte documentário, parte terapia, parte futurologia — que pudesse dar um sentido positivo àquelas mudanças, transportando o autor daquelas linhas para o lugar do personagem que delas resultaria. Se a coisa passava por uma expectativa quase eufórica de um tempo ainda por vir, com suas promessas e surpresas, corria também por ali uma neurose em relação ao tempo perdido, sentida a cada despertar atrasado, a cada compromisso perdido, a cada página não escrita. Escrever ali significava "trabalhar para tirar o atraso, para reencontrar-se junto aos outros, junto ao mundo, junto a si próprio no tempo, este ‘si’ refletido, evasivo, tão raramente encontrado”.
Recém-chegado em outra cidade, em outro continente, passei naturalmente muito tempo em meu quarto ao fim daquele ano. Com alguns centímetros de neve cobrindo o terraço que dava para minha janela e novas leituras e trabalhos por fazer, o tempo surgia mais do que nunca para mim como essa metáfora do sujeito fora de casa, fora de si, imagem inesgotável do "eu" fora de “mim”. Recordo ter visto por aqueles dias uma série de cartazes no metrô alertando sobre o perigo real que era a solidão nas grandes cidades, e andava refletindo sobre o que podia significar estar só. Se era possível, pensei, sentir-se ilhado dentro de um trem repleto de corpos que se espremem uns contra os outros, ou caminhando na rua ao lado de milhões de outros habitantes, o verdadeiro isolamento deveria ser de outra ordem. Inversamente, deveria ser também concebível a experiência de sentir-se intimamente ligado ao restante do mundo estando, entretanto, absolutamente sozinho. Naquelas primeiras semanas de reclusão circunstancial, apareceria a seguinte anotação no caderno, que se lê quase como a máxima de um moralista: "A solidão é o atraso em relação ao tempo, que é sempre o tempo dos outros.”
Em uma palavra, estar em dia comigo mesmo foi a forma que encontrei de estar sozinho, mas não solitário. De sentir-me presente no presente. E na medida em que começava de fato a avançar no relato do passado, preenchendo com uma letra linear aquelas páginas pautadas, também o arco da escrita passou a orientar-se para o futuro, em direção a coisas que ainda não havia feito, vivido ou sequer pensado. Foi então que, novamente alguns dias antes do fim do ano, cheguei a uma das poucas ideias que ainda hoje me parecem interessantes, para além do afeto (e de certo fetiche) que tenho em relação ao meu passado. Era, a uma só vez, uma resolução, um método e um programa. Sentado em uma biblioteca escura, com outros livros abertos sobre a mesa, eu relatava ali uma série de conversas que havia tido recentemente com amigos, novos e velhos. Seu único tema, sempre repetido, era “essa vontade de levar as ideias a sério, isto é, de levá-las a cabo, ao limite de sua tensão, para ver no que dão, para ver até aonde vão, para além da minha vontade ou gosto.” Aquela, eu intuía, era uma forma de pensar que exigia uma sistemática, respondendo a "uma necessidade exterior a mim”, mas que de uma forma paradoxal, “pudesse me dizer sobre mim muito mais do que eu seria capaz". E completava, como que explicando a mim mesmo o significado daquela epifania: "Levar as ideias a sério significa fazer, fazer tudo e qualquer coisa. Fazer essa colcha de 'quaisquer coisas' que me atravessam a cabeça convergir numa coisa só. Enfim, trata-se de significar o presente pela modulação do tempo, forçando passagens, construindo ponteiros inexistentes”.
Aquele caderno não era um diário, era um relógio. Ao conformar-me à sua lógica imperiosa, fui aos poucos me afastando do escritor que almejava e me aproximando do operador de ideias que ainda hoje aspiro ser. O fato de que algo pudesse estar bem ou mal escrito naquele caderno, e nos tantos que se seguiram a ele, tornar-se-ia cada vez menos relevante. A própria ideia de um estilo literário importaria cada vez menos diante do puro ato da escrita, do fato de que algo foi escrito, em algum lugar, em algum momento, superando a inércia das limitações pessoais, às quais podemos dar alternativamente os nomes de medo, gosto ou autocrítica. Este não é um elogio à incontinência verbal juvenil, mas uma crítica à expectativa adulta, muitas vezes estagnante, de um suposto controle da qualidade do que fazemos. Há certamente algo de pretensioso em pensar em nós mesmos em termos historiográficos, como se tudo o que produzíssemos estivesse destinado a historiadores do futuro. Mas há, talvez, soberba ainda maior em acreditar em nossa autonomia para julgar o que realizamos no presente, como se nada disso estivesse sujeito ao crivo do tempo, a uma eventual consideração pela posteridade. Nada impede (e é, inclusive, o caso mais provável) que sejamos nós mesmos a nos reler no futuro e a julgar o valor daquilo que fomos e pensamos. Aliás, é o que acontece nesse texto, que volta para um caderno preto de capa dura da marca Moleskine, apenas para encontrar um recado que deixei para mim mesmo há quase dez anos atrás: "Dizer tudo, escrever tudo. Registrar, reter e retornar depois para saber por que.”
Esse tipo de interferência se tornaria cada vez mais frequente ao longo de um 2008 em que me separaria ainda outra vez, seria o pivô de uma briga que rompeu um círculo de amigos próximos, terminaria a universidade aos trancos e barrancos e mudaria de país para seguir com os estudos. Mas não tardaria muito a compreender que o próprio caderno poderia funcionar como um meio de unificar aqueles fragmentos tão díspares de experiência: "É a ideia de um relato", escrevi ainda no Brasil, "a partir desse caderno, sobre a monografia, os relacionamentos, a espera infinita pela carta [de aceitação na universidade], a mudança de vida que ainda vem.” Se tal relato já não se limitava a um mero conjunto de notas de leitura, tampouco respondia às exigências de um diário tradicional. Mesclando passagens acadêmicas, descritivas e confessionais, não poderia simplesmente pressupor o transcorrer dos dias, mas, pelo contrário, tomar o próprio tempo por objeto, como um enigma por decifrar: "Haverá então a porra do tempo”, anotei ali em algum momento, com o seguinte adendo: ”mas é preciso querer, e a isso chamo de trabalho." Era a intuição de um certo uso da escrita — parte documentário, parte terapia, parte futurologia — que pudesse dar um sentido positivo àquelas mudanças, transportando o autor daquelas linhas para o lugar do personagem que delas resultaria. Se a coisa passava por uma expectativa quase eufórica de um tempo ainda por vir, com suas promessas e surpresas, corria também por ali uma neurose em relação ao tempo perdido, sentida a cada despertar atrasado, a cada compromisso perdido, a cada página não escrita. Escrever ali significava "trabalhar para tirar o atraso, para reencontrar-se junto aos outros, junto ao mundo, junto a si próprio no tempo, este ‘si’ refletido, evasivo, tão raramente encontrado”.
Recém-chegado em outra cidade, em outro continente, passei naturalmente muito tempo em meu quarto ao fim daquele ano. Com alguns centímetros de neve cobrindo o terraço que dava para minha janela e novas leituras e trabalhos por fazer, o tempo surgia mais do que nunca para mim como essa metáfora do sujeito fora de casa, fora de si, imagem inesgotável do "eu" fora de “mim”. Recordo ter visto por aqueles dias uma série de cartazes no metrô alertando sobre o perigo real que era a solidão nas grandes cidades, e andava refletindo sobre o que podia significar estar só. Se era possível, pensei, sentir-se ilhado dentro de um trem repleto de corpos que se espremem uns contra os outros, ou caminhando na rua ao lado de milhões de outros habitantes, o verdadeiro isolamento deveria ser de outra ordem. Inversamente, deveria ser também concebível a experiência de sentir-se intimamente ligado ao restante do mundo estando, entretanto, absolutamente sozinho. Naquelas primeiras semanas de reclusão circunstancial, apareceria a seguinte anotação no caderno, que se lê quase como a máxima de um moralista: "A solidão é o atraso em relação ao tempo, que é sempre o tempo dos outros.”
Em uma palavra, estar em dia comigo mesmo foi a forma que encontrei de estar sozinho, mas não solitário. De sentir-me presente no presente. E na medida em que começava de fato a avançar no relato do passado, preenchendo com uma letra linear aquelas páginas pautadas, também o arco da escrita passou a orientar-se para o futuro, em direção a coisas que ainda não havia feito, vivido ou sequer pensado. Foi então que, novamente alguns dias antes do fim do ano, cheguei a uma das poucas ideias que ainda hoje me parecem interessantes, para além do afeto (e de certo fetiche) que tenho em relação ao meu passado. Era, a uma só vez, uma resolução, um método e um programa. Sentado em uma biblioteca escura, com outros livros abertos sobre a mesa, eu relatava ali uma série de conversas que havia tido recentemente com amigos, novos e velhos. Seu único tema, sempre repetido, era “essa vontade de levar as ideias a sério, isto é, de levá-las a cabo, ao limite de sua tensão, para ver no que dão, para ver até aonde vão, para além da minha vontade ou gosto.” Aquela, eu intuía, era uma forma de pensar que exigia uma sistemática, respondendo a "uma necessidade exterior a mim”, mas que de uma forma paradoxal, “pudesse me dizer sobre mim muito mais do que eu seria capaz". E completava, como que explicando a mim mesmo o significado daquela epifania: "Levar as ideias a sério significa fazer, fazer tudo e qualquer coisa. Fazer essa colcha de 'quaisquer coisas' que me atravessam a cabeça convergir numa coisa só. Enfim, trata-se de significar o presente pela modulação do tempo, forçando passagens, construindo ponteiros inexistentes”.
Aquele caderno não era um diário, era um relógio. Ao conformar-me à sua lógica imperiosa, fui aos poucos me afastando do escritor que almejava e me aproximando do operador de ideias que ainda hoje aspiro ser. O fato de que algo pudesse estar bem ou mal escrito naquele caderno, e nos tantos que se seguiram a ele, tornar-se-ia cada vez menos relevante. A própria ideia de um estilo literário importaria cada vez menos diante do puro ato da escrita, do fato de que algo foi escrito, em algum lugar, em algum momento, superando a inércia das limitações pessoais, às quais podemos dar alternativamente os nomes de medo, gosto ou autocrítica. Este não é um elogio à incontinência verbal juvenil, mas uma crítica à expectativa adulta, muitas vezes estagnante, de um suposto controle da qualidade do que fazemos. Há certamente algo de pretensioso em pensar em nós mesmos em termos historiográficos, como se tudo o que produzíssemos estivesse destinado a historiadores do futuro. Mas há, talvez, soberba ainda maior em acreditar em nossa autonomia para julgar o que realizamos no presente, como se nada disso estivesse sujeito ao crivo do tempo, a uma eventual consideração pela posteridade. Nada impede (e é, inclusive, o caso mais provável) que sejamos nós mesmos a nos reler no futuro e a julgar o valor daquilo que fomos e pensamos. Aliás, é o que acontece nesse texto, que volta para um caderno preto de capa dura da marca Moleskine, apenas para encontrar um recado que deixei para mim mesmo há quase dez anos atrás: "Dizer tudo, escrever tudo. Registrar, reter e retornar depois para saber por que.”