O presente texto pode ser lido como o diário de uma residência artística no Lugar a Dudas, em Santiago de Cali, Colômbia, no início de 2016. Meu projeto era ler em apenas quatro semanas o essencial da literatura de ficção escrita por autores locais, tendo a cidade como cenário. A pesquisa resultaria, posteriormente, em um ensaio visual publicado na Revista Serrote #25 (Instituto Moreira Salles), intitulado Todos os pontos de interesse literário na cidade de Santiago de Cali, Colômbia, segundo livros de ficção de autores locais.

Fonte > Revista Ao Largo, RJ, ano 2018-2 - Número 7
+ Outros > Todos os pontos (Cali), 2017







Palavras-chave Turismo, residência, cidade, trabalho, ficção, romantismo


I

                Na sala de desembarque do pequeno porém surpreendentemente moderno aeroporto de Santiago de Cali, nos espera Andrés. Enquanto deixamos aquela derradeira zona de ar refrigerado na cidade, tento explicar a Camila, em voz baixa, a alegria de ver meu nome naquele letreiro tosco de papel-cartão: nunca antes havia sido recebido por alguém. Ela limita-se a rir. Pudera, penso em seguida, viajando sempre a cargo de uma grande instituição cultural, ela provavelmente nunca conheceria a sensação de profundo abandono daquele que sabe que procura em vão um olhar familiar na saída do aeroporto. O fato é que artistas muitas vezes partem em viagem de trabalho, são convidados a fazer coisas insondáveis em outros lugares, mas, no fundo, é como se nunca chegassem a seus destinos finais, pois é raro que haja alguém lá à sua espera. Assim, pegam suas coisas na esteira como qualquer outro turista e seguem porta afora como se estivessem de férias. 

                Foi diferente dessa vez, em que fui passar cinco semanas em um centro de referência para a arte contemporânea na América Latina, o Lugar a Dudas, concebido pelo artista colombiano Oscar Muñoz e dirigido junto à sua esposa, Sally Mizrachi. Eu havia sido selecionado em uma chamada para professores da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, recebido uma passagem paga e um cheque assinado por um mecenas, e, como resultado, dois meses depois, lá estava Andrés com o letreiro no dia acordado. Faço um sinal com o braço; ele nos dá as boas-vindas e insiste em nos ajudar a pôr as malas no carro. Amistoso, pergunta se é a primeira vez na Colômbia (sim), se estamos com calor e queremos abrir as janelas (sim e sim), se não nos parece bonita a luz vista do estacionamento (não, mas dizemos sim) e começa uma pequena introdução à cidade dizendo que Cali é mundialmente conhecida como “a sucursal do céu”. A despeito da naturalidade de sua fala e do carinho que expressa por sua cidade natal, tenho a nítida impressão de estar diante de um roteiro, que imagino repetido, palavra por palavra, a cada nova recepção naquele mesmo aeroporto. Pergunto-lhe então, talvez para testar os limites da conversa, se ele conhece a origem daquela alcunha. Ele responde que não, que é algo que se diz por aí, mas que Cali de fato oferece uma boa qualidade de vida a seus habitantes. E, com um sorriso discreto, acrescenta: sobretudo em comparação a outras cidades, pois “Cartagena é turística demais; Medellín é cara demais; Bogotá é fria demais”.

                Quando as primeiras edificações suburbanas começam a surgir na autoestrada, substituindo um longuíssimo corredor de cana-de-açúcar, ele me pergunta sobre o projeto que vim desenvolver ali. Tento esconder minha surpresa (Andrés sabe que artistas têm “projetos" além de "obras") e digo que quero estudar a literatura local, que me interesso pelas relações entre ficção e território, e que na semana anterior havia corrido com minha companheira grande parte dos sebos de Bogotá atrás de livros de autores “calenhos”, isto é, naturais de Cali. Ele me pergunta quais — por educação, imagino em um primeiro momento — mas, após ouvir o primeiro título de minha lista, responde prontamente: “María é um clássico, muito bonito”.  Minha surpresa denuncia também, desta vez, minha ignorância: “Ah, é?”. “Sim, é muito conhecido, tivemos que ler na escola.” Tentando abrir caminho por meu espanhol canhestro, tento explicar-lhe que, apesar de haver feito toda uma pesquisa preliminar acerca de livros escritos ali entre os séculos 18 e 20, eu ainda não havia lido sequer uma página. “E vai ler tudo isso em quarenta dias?”, pergunta. “Vou tentar”, digo. “É uma ideia que vim testar aqui: conhecer uma cidade através da literatura, tomando por guia as descrições das paisagens, o deslocamento dos personagens... Quero ficar esse tempo aqui em Cali no meu quarto, lendo livros que se passam em Cali, e só depois ir atrás desses lugares”. Ao fim do diálogo, noto que estamos em pleno perímetro urbano, parados em um sinal. Um aleijado se aproxima do carro, pedindo esmola; a cena é absolutamente familiar. Andrés, olhando para um grupo de homens trabalhando na construção de um corredor expresso de ônibus à esquerda, comenta: “Melhor não passar por aqui a pé, estamos em Calima”. “Nem de dia?”, pergunto. “Não se preocupe, esses livros não devem se passar por aqui mesmo”, ele conclui.

                Calima fica a uma distância negligenciável em termos urbanos — meros cinco quilômetros seguindo pela Carrera 1 — de onde está localizada a residência, no aprazível San Antonio. Aos pés da igrejinha de mesmo nome, o bairro compreende um quadrilátero de pequenas ladeiras ocupadas por casas antigas de apenas um andar, muitas delas transformadas em hospedarias, bares e restaurantes. Ainda que modestas para os padrões brasileiros atuais, elas dão conta do razoável número de turistas (e artistas) que aflui à cidade, principalmente nos fins de semana. San Antonio é também famoso por ter sido o local predileto de encontros de um grupo de jovens intelectuais que agitou (e notabilizou) a vida cultural de Cali nas décadas de 1960 e 70 (entre eles, Andrés Caicedo, autor de Viva a música!, de 1977, um dos títulos que leria por ali). Foi onde nos despedimos, não antes sem combinar um valor equivalente pelo retorno de Camila ao aeroporto, pois ela ficaria apenas poucos dias na cidade. O que nenhum de nós suspeitava naquela primeira despedida é queMaría, de Jorge Isaacs, nos traria de volta àquele carro muito antes do esperado. Após ler algumas poucas dezenas de páginas estava claro que era preciso retornar à estrada que leva ao aeroporto e seguir mais adiante, desta vez para fora dos limites do município. Pois o romance tampouco mencionava o moderno reduto da boemia que era San Antonio; como boa parte de Cali, o bairro sequer existia como tal em 1867.

                De resto, Andrés tinha razão: María é um livro muito bonito, e parte dessa beleza deve-se à aparente simplicidade do enredo, uma idílica história de amor entre dois jovens. Em poucas palavras: ele, Efraín, é o filho primogênito de uma família de propriedades, bem-educado, generoso e sensível que retorna ao lar após seus primeiros anos de instrução em Bogotá; ela, María, é uma órfã adotada anos atrás por essa mesma família, bela, discreta e gentil, e que, nesse ínterim, torna-se mulher aos olhos de seu “primo”. Perdidamente apaixonados, eles trocam juras de um amor perfeito que, sabemos desde o primeiro parágrafo do livro, terminará em tragédia. Lançando mão do imperativo da formação de seu filho no exterior (Efraín deverá estudar Medicina em Londres), o patriarca — sempre tão compreensivo com os assuntos da família e dos empregados — termina, desta vez, por postergar indefinidamente a união dos jovens amantes. Efraín, sem ousar enfrentá-lo de modo a impedir sua partida, será então chamado às pressas da Europa alguns anos depois. Mas já seria tarde demais; uma doença misteriosa tomaria a vida de María nesse meio-tempo. Como resume um certo Gustavo Mejía em seu prólogo ao livro: “A história de María e Efraín, em seu elemento mais anedótico, é simplesmente a história de dois adolescentes submetidos a um destino que lhes é contrário, e que, minuto após minuto, os leva, por caminhos que eles não podem prever, ao encontro com a separação final na morte de María(1)”.

                Pode-se supor que o êxito imediato que o romance conhece quando de sua publicação se deva à presença desse elemento anedótico. O que se sabe com segurança é que os 800 exemplares da primeira tiragem custeada pelo próprio Jorge Isaacs esgotam-se rapidamente, fazendo se seguirem inúmeras outras edições, dentro e fora do país. Fenômeno editorial sui generispara a época, sobretudo considerando a trajetória do autor. Tendo escrito apenas um único livro de poemas, o qual havia passado relativamente despercebido, Isaacs adquire com María súbita fama e prestígio continentais, o que lhe permitiria dedicar-se ao jornalismo político e, mais tarde, ao exercício de variados cargos diplomáticos, administrativos e também científicos. Entretanto, até os últimos dias de sua vida tentaria, sem sucesso, regressar à literatura, deixando rascunhos de poemas épicos e romances históricos que deveriam ser sua “obra-prima”. Morre em Ibagué, no departamento de Tolima, longe dos credores e agiotas que buscavam por ele em sua cidade natal, tendo publicado apenas mais um livro de história, La revolución radical en Antioquia, e um ensaio etnográfico intitulado Estudios sobre las tribus indígenas del Estado del Magdalena, antes província de Santa Marta.

                O que terá valido a Isaacs sua consagração crítica como um dos mais destacados escritores da literatura hispano-americana do século 19 é também um feito improvável, mas de outra ordem: a bem-sucedida transposição do imaginário do Romantismo europeu para as paisagens selvagens do Vale do Cauca, a região de Cali. Pois a história dessa relação casta e pura, desprovida de qualquer traço de sensualidade ou erotismo, oferece a um leitor ainda sem rosto na América espanhola um espelho de corpo inteiro. Neste, ele pode não apenas confirmar suas instituições sociais reais (o casamento, a propriedade, a família) como também projetar suas aspirações morais idealizadas (o amor, o respeito, o luto). A despeito dos evidentes paralelismos da história de Efraín e María com outros livros que lhe servem de modelo (Atala, de Chateaubriand, é citado nominalmente no texto), Isaacs logra dar novo impulso à novela sentimental francesa do fim do século 18 e início do século 19, ao confrontá-la com elementos da literatura costumbrista local (descrições de festas populares, cenas de caça, eventos folclóricos etc.), prenunciando, desta forma, a narrativa regionalista que floresceria nas décadas seguintes. Assim como na narrativa romântica europeia, as variações do estado de espírito dos protagonistas encontram seu análogo perfeito na natureza circundante. Os rios, montanhas, árvores e aves selvagens que parecem aqui expressar-se em resposta a seus anseios e frustrações já não denotam exotismo, senão familiaridade. A alegria de Efraín ainda no início do livro, ao regressar ao lar pela primeira vez, é literalmente a de voltar a pôr os pés em sua terra natal:

Pasados seis años, los últimos días de un lujoso agosto me recibieron al regresar al nativo valle. Mi corazón rebosaba de amor patrio. Era ya la última jornada del viaje y yo gozaba de la más perfumada mañana del verano. El cielo tenía un tinte azul pálido: hacia el oriente y sobre las crestas altísimas de las montañas, medio enlutadas aún, vagaban algunas nubecillas de oro, como las gasas del turbante de una bailarina esparcidas por un aliento amoroso(2).

                É um sentimento de pertencimento a essa terra, transformada agora em núcleo poético de um antigo mundo mítico, quase imemorial, que se consolida em María. A América já não é o Novo Mundo, senão uma espécie de jardim do Éden perdido e reencontrado. Esse sentimento de enraizamento se apresenta também na forma de desejo de ordenamento, organização e classificação, típico de um texto do período. Por isso, o esmero documentalista que leva Isaacs a acrescentar um “Vocabulário dos provincianismos mais notáveis que ocorrem nesta obra”(3), no fim de María, encontra seu par no preciosismo de naturalista com o qual constrói as incontáveis descrições, tanto da vida social como natural, que pulsam naquele lugar. Trata-se, em ambos os casos, com o trabalho da língua poética, de dar nome aos contornos únicos, da “selvageria” da fauna e da flora exuberantes, e dos “barbarismos” da fala e dos gestos daqueles que habitam a província do Cauca — senhores de terra, camponeses e escravos.    

                Até 1960 eram ainda pontuais as experiências de residências artísticas como o Lugar a Dudas. Há exemplos anteriores, mais ou menos bem documentados, na Europa e Estados Unidos, inclusive em séculos passados(4), mas tratava-se ainda de um fenômeno relativamente restrito. A partir dos anos 1990, entretanto, elas se proliferam de tal forma — na esteira da globalização econômica — que passaram a fazer parte de um roteiro tácito que todo artista com alguma pretensão em sua carreira tem de cumprir. E não apenas uma vez. Há, por sorte, muitas variáveis possíveis: uma residência artística hoje pode ser organizada de forma independente ou ser financiada por um banco; ser inteira ou parcialmente paga pelo artista ou, pelo contrário, remunerada; contar com maior ou menor duração; fornecer ou não acompanhamento por um tutor designado; oferecer mais ou menos conforto nas acomodações e no local de trabalho etc. O que une todos esses projetos, aconteçam eles em Nova York, em uma comunidade pesqueira na Islândia ou até mesmo no interior de um contêiner em um cargueiro atravessando o Atlântico, é um mesmo pressuposto básico: o de que o deslocamento temporário do seu contexto de origem traz benefícios à obra do artista. Tendo inclusive tomado parte da organização de uma residência artística em uma fazenda colonial no interior do estado do Rio de Janeiro, posso afirmar com convicção: isto é, até certo ponto, correto. No que não se pensa o suficiente, na maior parte dos casos, é o valor do encontro de vários indivíduos extraídos de seus contextos de origem, cada qual trabalhando contra o relógio em seu próprio projeto. Por vezes, surgem de fato colaborações inesperadas, com desdobramentos que podem seguir por muitos anos; outras vezes, apenas embates pontuais sobre formas discrepantes de se encarar a vida doméstica. Neste caso, por sorte, com prazo definido para acabar.

                Contrariamente aos demais artistas-residentes em Cali, cuja estadia variava em geral de um a dois meses, Marília, uma jovem curadora de São Paulo, havia sido convidada a desenvolver uma programação semestral para a instituição. Quando cheguei, ela estava no fim de sua estadia. Já em nossa primeira conversa, relatou-me a dificuldade (que logo se converteria em frustração) em viver com a constante ida e vinda de artistas, curadores e pesquisadores na residência. Segundo ela, ainda, eu havia tido sorte. Na roleta imprevisível que era a ocupação dos quartos por indivíduos cujas diferenças culturais aparecem nas miudezas do cotidiano, aquela era a composição mais pacífica que via há tempos. E, ao que parece, ela também havia tido sorte, pois eu tinha substituído justamente um artista austríaco classificado por outro residente como “absolutamente intratável”. Se é certo que não se produziu qualquer tipo de colaboração com desdobramentos dignos de nota, havia entre os residentes um interesse real pelo desenrolar dos demais projetos. Estes eram discutidos todas as noites, entre outras amenidades, em torno de cervejas baratas no bar mais antigo do bairro, o Tertuliadero La Colina, cujo dono, um senhor de mais de oitenta anos de idade, até hoje cumprimenta, um a um, todos os seus clientes.

                Ao contar aos residentes sobre a expedição literária que empreenderia com Camila dali a alguns dias, Marília se ofereceu como companhia. Embora não tivesse lido o livro, conhecia os personagens centrais e podia resumir a trama em uma linha, assim como quase todos em Cali. Foi ela quem me alertou para o fato de que a nota de 50 mil pesos que pagaria aquela rodada de cerveja tinha estampado o busto de Jorge Isaacs. (Mais tarde, ficaria sabendo ainda que a nota havia sido desenhada, a convite do governo, por ninguém menos que o próprio Oscar Muñoz). No verso da cédula, em letras minúsculas, estava um trecho do manuscrito original de María, reproduzido sobre a imagem de uma casa de campo à sombra de uma grande árvore. Era exatamente o lugar que procurava: a fazenda El Paraíso, situada nos arredores da cidade.  

                Saímos cedo pela manhã. Do roteiro turístico original proposto por Andrés, decidi manter apenas o Museu da Cana-de-Açúcar, uma antiga fazenda na região de Palmira transformada em local de memória dos tempos de colônia do Vale do Cauca. Mantido por um conglomerado da indústria açucareira, o museu consiste em uma casa grande do século 18. De apenas um piso, mas bem desenhada, ela conta com entradas e saídas de ar e de luz pensadas especificamente para o clima tropical. Nos quartos, todos os móveis e utensílios característicos estão arranjados de maneira cenográfica. Em volta da casa há um jardim tropical, com grande variedade de plantas ornamentais, perfeitamente cuidadas, que dividem espaço com equipamentos de épocas diferentes, alguns mecânicos, outros manuais, usados nas várias etapas do processo de refino da cana. Com cores intensas brilhando ao sol, certamente devido a um restauro demasiado minucioso, pareciam, contudo, jamais terem servido a essa ou qualquer outra finalidade prática. Vistos sem as explicações do guia — ocupado com um grupo de senhoras extremamente ruidosas — eles sugeriam antes a forma de dinossauros adormecidos ou seres de outro mundo. Completava a visita a projeção (opcional) de um vídeo institucional da empresa mantenedora, que esforçava-se por atribuir à notoriamente arcaica e poluente indústria do açúcar, a uma só vez, uma improvável mescla de progresso industrial e consciência ecológica. Por aproximadamente vinte minutos (não aguentamos mais do que isso), assistimos a inúmeras tomadas aéreas da atual fábrica na região, acompanhadas de uma narração que desfilava dados que nos pareceram perfeitamente aleatórios, ainda que devessem demonstrar o sucesso de suas operações. Mais cedo naquele mesmo dia, já havíamos tentado visitar, sem sucesso, a sede de sua grande concorrente, Manuelita S.A., a maior produtora de açúcar do país, com negócios agroindustriais também no Brasil, Peru e Chile, e abarcando igualmente a produção de palma de azeite, frutas, hortaliças e aquicultura. Identificando-nos, por via das dúvidas, como historiadores brasileiros em visita à Colômbia, fomos cordialmente impedidos de entrar pelo segurança, que nos faria esperar em vão na guarita por uma autorização que nunca viria.

                Estima-se que apenas essa empresa trabalhe com vendas anuais na casa dos 600 milhões de dólares e gere algo em torno de 5.800 empregos diretos(5), o que significa um impacto vigoroso na vida econômica do país. Apesar da vertiginosa modernização dos processos de cultivo e do investimento na qualidade de vida dos funcionários (dado confirmado por Andrés), trata-se da mesma indústria que pôs o Vale do Cauca no mapa econômico e político da Colômbia, em meados do século 18. Ela funcionava então — está bem documentado(6) — exclusivamente à base de mão de obra, em sua maioria escrava, trazida da África em navios negreiros por traficantes europeus passando, em geral, pelas Antilhas ou Cuba até Cartagena de Índias. Dali, seguiam por rios navegáveis no interior do continente, ou cruzando por terra o istmo do Panamá (à época território colombiano), e tomando novamente uma embarcação até o Porto de Buenaventura, na Costa Pacífica. Ainda hoje é região que concentra a maior parcela de população negra do país (88,5%).

                Em María, pouco nos é dito sobre a fonte de renda da família de Efraín, mas este surpreende-se, em uma breve passagem, com a prosperidade que o pai conheceu em sua ausência: “una costosa y bella fábrica de azúcar, muchas fanegadas de caña para abastecerla, extensas dehesas con ganado vacuno y caballar, buenos cebaderos y una lujosa casa de habitación, constituían lo más notable de sus haciendas en tierra caliente”(7). Ele acrescenta ainda entre o rol de suas posses, não sem uma nota de pesar: “Los esclavos, bien vestidos y contentos, hasta donde es posible estarlo en la servidumbre, eran sumisos e afectuosos para con su amo(8)”. Esta nota, que traz uma dissonância ao mundo harmônico do casal de jovens apaixonados, ressoará de maneira mais intensa ao longo de um extenso relato que atravessa vários capítulos do livro, por ocasião da morte de Feliciana. Tendo cuidado de Efraín e María desde pequenos, a antiga escrava lhes confia, entre outras histórias fantásticas, a sua própria história de amor impossível com Sinar, um nobre guerreiro africano, bruscamente interrompida pelo aprisionamento de toda a sua tribo por um traficante de escravos. Nesse trecho, passamos do tom mágico das guerras tribais, que lembra os escritos orientalistas de Flaubert (penso emSalammbô, por exemplo), a um relato histórico e bastante informativo acerca do aporte de mão de obra forçada às Américas (e da conversão dos escravos ao catolicismo), até retornarmos habilmente ao ponto de conexão com a narrativa central: o encontro fortuito de Feliciana (ou Nay, seu nome africano) com o pai de Efraín em uma de suas viagens ao Caribe, que termina por comprar a sua liberdade e a de seu filho recém-nascido, Juan Ángel. Quando questionado pelo traficante pela motivação de seu ato — “No puedo explicarme la conducta de usted. ¿Qué gana esta negra con ser libre?” — ele responde: “Es […] que yo no necesito a una esclava sino a una aya que quiera mucho a esta niña(9)”. Era María, a filha de seu primo, que ele havia acabado de adotar e estava levando para casa. Tal confusão de registros dá conta não apenas da versatilidade da prosa de Isaacs, mas também da forma com que as crianças recebem as histórias contadas pela ama ao pé da cama. Uma noite, ao notar o prolongado silêncio de Feliciana após o fim de um de seus “contos fantásticos”, o pequeno Efraín lhe interroga:

—   ¿Por qué lloras? — le pregunté.

—  Así que seas hombre — me respondió con su más cariñoso acento, harás viajes y nos llevarás a Juan Ángel y a mí; ¿no es cierto?

—  Sí, sí — le contesté entusiasmado —: iremos a la tierra de esas princesas lindas de tus historias… me las mostrarás… ¿Cómo se llama?

—  África — contestó(10).

                Do Museu da Cana-de-Açúcar à fazenda El Paraíso vão alguns poucos quilômetros por estradas secundárias. Placas com o conhecido símbolo de “patrimônio histórico” sinalizam o caminho com clareza, e, logo na entrada da casa colonial, um enorme outdoor vermelho recebe o visitante com os dizeres: “Paisaje del romance”. Levo alguns minutos a dar-me conta de que esta última palavra não tem o duplo sentido que lhe acorda a língua portuguesa: a forma literária do “romance” traduz-se sempre em castelhano como “novela”, independentemente do tamanho da narrativa. Portanto, em que pese a estranheza daquela formulação, a “paisagem” a qual estávamos penetrando era mesmo — ou deveria ser — a do romance de Efraín e María. De fato, tudo está ali exatamente como descrito no livro: o pórtico branco por onde ele passava a cavalo, o jardim com o banco de pedra onde ela fazia seus arranjos de flores, a pedra que lhes servia de apoio para leituras ao longo da tarde, a árvore ancestral que sombreava a varanda da casa. O que é compreensível, penso, tratando-se de um romance com traços claramente autobiográficos: é sabido que Isaacs realmente viveu ali com seus pais e inspirou-se em episódios de sua infância e juventude para dar corpo à conhecida trama, imprimindo a estes, por vezes, apenas leves modificações(11). Assim, por exemplo, os pais de María ganham a biografia da família do autor (pai judeu inglês da Jamaica convertido ao catolicismo e mãe criolla); já os de Efraín levam os seus nomes reais: Manuela e Jorge (George, originalmente). Entretanto, a mesma sensação de estranha familiaridade persiste no interior da casa, onde encontramos os móveis e objetos dispostos como se houvessem sido usados pela última vez pelos personagens do livro. No quarto de Efraín (há uma placa de madeira com esse nome na porta) estão os mapas e o globo terrestre com os quais dava lições de geografia às irmãs, a espingarda com a qual caçava com seus amigos e criados, a prateleira na qual dispunha seus livros de literatura universal; na sala de estar (igualmente identificada por uma placa), onde María passava a maior parte de seu tempo com a mãe de Efraín, estão não apenas os utensílios de costura, mas também o violão com o qual tocam algumas modinhas em um capítulo específico; na pequena capela (idem), está o oratório ao qual acorriam os membros da família em busca de conforto espiritual, e há até mesmo um cachorro dormindo estirado ao chão, o qual — comentei com Camila e Marília, em tom de piada — deveria ser a reencarnação de Mayo, o fiel companheiro de Efraín.

                Quando uma senhora de traços indígenas, pequena demais para o enorme colete bege que vestia, começa sua visita guiada, nos entreolhamos: aquilo não era apenas uma piada. Alternando, em um tom de voz monocórdio, explicações factuais sobre a arquitetura da casa colonial, com longas citações extraídas do romance de Isaacs, ela sugere que os personagens realmente viveram naqueles cômodos. Segundo ela, existiu uma María real, de quem o autor foi de fato apaixonado em sua infância, e que também veio a falecer de uma doença desconhecida. Toda a casa está intacta, diz ela, como estava naquele dia triste, e os ponteiros congelados do relógio de pêndulo na sala de estar marcam a hora de sua morte. Apontando para um retrato de María (é, na realidade, a reprodução de um desenho), ela faz uma pausa, coreografada como todo o resto, e diz querer ser “totalmente honesta” conosco. Falta àquele cenário um item de suma importância: as famosas tranças de María, deixadas por ela ao fim do romance como memento mori a Efraín, as quais teriam sido roubadas anos atrás por um turista mal-intencionado (holandês, se não me engano). O riso que mal conseguíamos dissimular transformou-se no mais puro espanto quando, frente à pintura a óleo de um homem de casaca, ela afirma sem nenhum sinal de constrangimento: “ese es el papa de Jorge Isaacs, es el papa de Efraín”. Confrontada por outro visitante, que disse não entender como aquilo seria possível, ela esclareceu o paradoxo: “es que Isaacs, en la realidad, es el alter-ego de Efraín”.

                Faltam-me conhecimentos em narratologia para expressar de modo satisfatório o que acontece a partir desse momento. A guia parece absolutamente convencida da veracidade dos fatos que está contando, ao recitar um trecho de uma carta de María a Efrain:

Vente – me decía – ven pronto, o me moriré sin decirte adiós. Al fin me consienten que te confiese la verdad: hace un año me mata hora por hora esta enfermedad de que la dicha me curó por unos días. Si no hubieran interrumpido esa felicidad, yo habría vivido para ti. Pero, ¿a qué afligirte diciéndote todo esto? Si vienes, yo me alentaré; si vuelvo a oír tu voz, si tus ojos me dicen un solo instante lo que ellos sólo sabían decirme, yo viviré y volveré a ser como antes era. Yo no quiero morirme, yo no puedo morirme y dejarte solo para siempre’, dijo María(12).

                Sem mudar o tom da voz, a guia emenda as seguintes informações:

Efraín llegó y Emma le entregó sus trenzas; le dijo que María se había muerto y había sido sepultada hacia tres días. En este corregimiento en Santa Elena, ustedes bajan a siete kilómetros, ahí van a encontrar el pueblo: hay un parque donde está el monumento de María, Efraín y su perro Mayo. Y a las cuatro cuadras está el cementerio donde está la tumba de María.

                Igualmente difícil é explicar o frenesi com que retornamos ao carro, ainda sem compreender ao certo o que havia se passado ali, e seguimos ladeira abaixo a toda velocidade, ao som da fita de dance music dos anos 1990 de Andrés, à procura daquela tumba. Na entrada do pueblito de Santa Elena, pedimos indicações a um homem que nos respondeu, sem qualquer estranhamento, que para encontrar María bastava seguir reto algumas quadras. Uma vez na praça central, nos deparamos com o “monumento” anunciado pela guia: uma escultura sobre um pedestal do casal de personagens acompanhado de seu indefectível cão. Bastante simplória em sua composição, remetendo à frontalidade chapada de uma fotografia de família, ela está revestida por uma tosca camada de tinta que tenta imitar a coloração das roupas e das poucas partes descobertas do corpo dos amantes. (Mais tarde, mudaria meu sentimento a respeito da obra, ao saber que a pintura havia sido uma iniciativa dos próprios habitantes do vilarejo, a fim de dar mais “vida” à obra original).

                Após nos fotografarmos ali abraçados como os personagens, ou como viajantes diante de uma verdadeira atração turística, voltamos exultantes ao carro e estacionamos novamente na porta do cemitério local. Essa pequena distância de duas ou três quadras em Santa Elena reproduz o fenômeno descrito na entrada de Cali, ao passarmos de Calima a San Antonio. Ali, as casas já são extremamente pobres e não possuem revestimento exterior como as da praça. O próprio cemitério reflete seu entorno suburbano: trata-se de um pequeno lote entre muros descascados com algumas poucas fileiras de lápides brancas de pé, em tudo distinto do que Efraín descreve como “una especie de huerto, aislado en la llanura y cercado de palenque(13)”. A exceção, é claro, é a enorme tumba de María. De um montículo de tijolos vermelhos dispostos em círculo, eleva-se uma cruz em metal com seu nome reluzente, o todo cercado por uma grade baixa contendo ainda dois pequenos pinheiros e a reprodução de um livro aberto. Nele talhado está uma descrição, levemente adaptada do original, que eu só reencontraria uma semana depois em meu quarto, ao terminar o romance: “atravesé por en medio de las malezas y cruces de leño y guadua las poblaban. Al dar la vuelta a un grupo de corpulentos tamarindos, salí en frente a un pedestal blanco… manchado por las lluvias, sobre el cual se elevaba una cruz de hierro. En ella empecé a leer: María(14)” (Cap. LXV). A frase, como já era de se supor a esta altura, não está assinada por Isaacs, mas sim por Efraín.

                Ainda que quiséssemos validar a hipótese da guia acerca da dupla identidade de Isaacs, incorreríamos em um poderoso paradoxo ao imaginar Efraín chegando à lápide de María, devastado por sua perda, apenas para encontrar ali uma frase escrita... por ele mesmo. Em uma palavra, ele já teria escrito o livro descrevendo aquele cemitério antes de chegar à tumba pela primeira vez. De modo que é preciso arriscar dizer o óbvio: aquela não é a tumba de María, ao menos não aquela descrita por Efraín. Mas dizê-lo não tem absolutamente nada de óbvio, pois, além de não sabermos quem (ou o quê) é María, esbarramos na ideia contraintuitiva de que o “original”, nesse caso, é a ficção, e a “reprodução” (ou a falsificação) é o real. Não estamos mais, portanto, no terreno de uma autobiografia romanceada — como me parecia ser o caso até aquele momento — senão em algo diverso, que talvez caberia chamar de “romance biografado”. Enfim, como se aquela confusão de registros feita pelas crianças no limiar do sonho, entre fantasia e relato, reaparecesse aqui, em plena luz do dia, no seio de uma comunidade real, em um movimento vertiginoso de substituição do criador pela criatura.

                Pela mesma razão, seria redutor atribuir esse fenômeno aos esforços de uma incipiente indústria do turismo literário local que se criou ao redor destes personagens. É verdade que grupos de turistas estrangeiros vêm regularmente visitar esses locais (o livro é um best-seller na Ásia, aparentemente), e a presença de uma loja de suvenires na fazenda El Paraíso, com suas quinquilharias características, é um indicador dessa presença. Fazer dali uma espécie de micropolo turístico pode ter sido a razão pela qual as autoridades locais decidiram recomprar a casa natal do escritor, para além de seus méritos literários, mas certamente não é a razão da presença desses personagens no imaginário dos próprios habitantes do vale. Sabe-se ainda, por exemplo, que o túmulo de María tornou-se um lugar de peregrinação religiosa, e há fotografias de arquivo que atestam que o lugar é visitado há décadas por fiéis que atribuem milagres ao “corpo” da personagem. No povoado de Santa Elena, não apenas o monumento foi pintado pelos moradores, como as flores brancas que Efraín teria depositado no túmulo da amada são trocadas regularmente em homenagem aos amantes. Quando estivemos ali, em um dia qualquer da semana de um mês qualquer, elas estavam como novas. 


II
         
                “Tenho muito interesse por guias de turismo”, disse ao público que assistia à minha fala no Lugar a Dudas, “os livros, não as pessoas”. Era minha segunda quinzena na cidade, Camila já havia retornado ao trabalho institucional, e os residentes tinham sido convidados a apresentar suas pesquisas. Quando chegamos, quinze a vinte pessoas de idades variadas aguardavam o início do evento no pátio interno da bela casa neoclássica que serve de sede à instituição, no bairro relativamente mais moderno de San Fernando, do outro lado do rio Cali. Sem surpresas até aqui: trata-se de uma prática comum nesse tipo de programa de residência artística, a qual pode dar margem a um estimulante debate ou a uma extenuante dissecção de portfólio, obra por obra, exposição por exposição — o que, com toda razão, aborrece o público, que vai se tornando rarefeito, e, frequentemente, também o próprio artista. É, de novo, uma roleta, e mais uma vez me dei conta de que tive sorte. Pois tanto o público parecia receptivo às apresentações quanto meus colegas aplicados em fazer-se entender e suportar. Minha fala havia sido preparada com antecedência (em português), e comecei pontuando (em portunhol) meu desconforto em relação ao imperativo da viagem na arte contemporânea. Saltando de uma exposição a uma feira, de uma residência a uma bienal, já não se esperava mais do artista que se expusesse a novas realidades e contextos produtivos, mas que simplesmente tentasse acompanhar o incessante translado das instituições da arte, de um centro provisório ao seguinte: Miami, Veneza, Atenas, Kassel, Guangju etc. Se bem-sucedido, o artista já não deveria corresponder tanto ao clichê do “pesquisador” ou do “etnógrafo” em trabalho de campo, como se pretendeu há até bem pouco tempo, mas a um desses empresários em viagem de trabalho. O artista alemão Joseph Beuys traduziu de maneira excepcional essa nova forma de Romantismo global em uma obra de 1971 intitulada Ich kenne kein Weekend(15) (“Não conheço fins de semana”), que consiste em uma clássica maleta preta de executivo contendo apenas um exemplar da Crítica da razão pura, de Kant, e uma embalagem de caldo Maggi.

                Contudo, disse ainda, é sempre possível ir além do cinismo. Ainda que façam parte do roteiro de legitimação internacional do mundo da arte, residências artísticas podem servir de importante contraponto a essa mesma lógica de circulação frenética de pessoas e coisas ao redor do planeta. Quando se oferecem as condições necessárias para uma experiência imersiva, por mais efêmera que seja, elas permitem ao artista pensar criticamente sua própria condição de turista em viagem de trabalho. Ao contrário do turista de férias, que acredita tomar distância de sua cultura ao conhecer uma nova cidade ou país, o artista-residente sabe que isso é uma ilusão. Ao confiar seus passos ao guia de viagem que trouxe de casa, o estrangeiro se proíbe de fazer a experiência do novo território e não faz reproduzir ali sua própria identidade cultural. Afinal, aquelas centenas de recomendações “imperdíveis” que leva consigo para todas as partes não foram apenas selecionadas por certos indivíduos específicos, mas também para certos indivíduos de uma mesma comunidade. O que não significa, entretanto, que não se possa aprender nada com os guias. Quando lidos às avessas, eles nos informam sobre a visão de mundo de seus autores e enunciam com clareza cristalina os padrões culturais e ideológicos que seus leitores buscam ao visitar qualquer lugar do mundo. Foi esta experiência de um metaturismo que orientou algumas de minhas experiências anteriores em residências: antes mesmo de sair andando pelas cidades, tratei de encontrar um “guia” que pudesse oferecer uma chave de leitura particular do local. 

                “O projeto no qual estou trabalhando agora”, explico por fim, “segue com a intenção de realizar uma cartografia urbana, tomando, dessa vez, os clássicos da literatura local como guia. A ideia, aqui também, é entender como certos indivíduos construíram uma imagem comum de um espaço coletivo ao longo do tempo mas, agora, por meio de livros de ficção”. Alguém do público entra no jogo e me pergunta qual foi o critério para a escolha dos livros. Respondo que não foram necessariamente os livros “bons”, em termos de qualidade literária, ou ainda os mais recomendados pela crítica especializada, senão os que me pareceram tecer uma relação mais direta com a cidade, tomando-a por personagem. Expliquei que li resenhas na internet, que fui a sebos, que falei com professores de literatura da universidade local, mas que, propositalmente, havia deixado para ler tudo ali mesmo: o plano era justamente valer-me de minha ignorância sobre Cali para colocar-me no lugar de outros, em outros tempos, e ver a cidade através de seus olhos, do movimento de seus personagens. Como um turista demasiado consciente de sua condição e, que, por isso, prepara cada passo com grande minúcia, antes mesmo de sair à rua. Pois era a dimensão documental, de testemunho, quiçá inconsciente, desses textos que estava buscando. E concluí dizendo algo como: “É uma espécie de contraleitura da ficção, a história da cidade como a história de indivíduos, assim como eu, encerrados em seus quartos projetando-se sobre a cidade e seus indivíduos substituíveis”. Ao dizer essas palavras ao público, já estava consideravelmente atrasado com María e sabia que tinha de voltar o quanto antes à residência e acelerar o ritmo de leitura nos dias seguintes. Ainda tinha uma longa lista de livros para dar conta.

                Diante do avanço inexorável da doença de María, o pai de Efraín finalmente lhe envia uma carta, manifestando arrependimento por sua decisão e rogando-lhe que retorne o quanto antes. Nas últimas cinquenta páginas do livro, inicia-se um novo (e derradeiro) relato, descrevendo o longo e custoso retorno do filho à casa: de navio de Londres até Buenaventura, e dali em diante, descendo o selvagem rio Dagua de canoa e percorrendo os últimos quilômetros a cavalo até Cali. Durante quase toda a viagem, o romance que é a espinha dorsal do livro passa ao segundo plano, em decorrência da incomunicabilidade do protagonista, e a enfermidade de María é evocada apenas como motivação para a corrida contra o relógio. Assim como o relato da escrava Nay, esse é um trecho de especial interesse “contraficcional”, por assim dizer: pois, ainda que a atmosfera romântica esteja presente, Efraín está agora literalmente à mercê dos dois condutores negros que conduzem a canoa rio abaixo. Aqui, os escravos, contrabandistas e camponeses que aparecem nos vilarejos ribeirinhos são tão importantes quanto a própria paisagem circundante, e é a determinação implacável desses personagens que permite a Efraín fazer face aos perigos do caminho. A selva e seus habitantes se correspondem; as configurações da flora são reproduzidas com tanta fidelidade quanto os contornos desses personagens, seus gestos, falas e crenças. Esse tom marcadamente documentalista dos últimos capítulos ajudou a fazer do livro uma peça fundamental na reconstrução histórica de toda uma cultura pulsante que existiu na Cordilheira Ocidental dos Andes, ao longo do rio Dagua, e possivelmente já declinante no momento em que Isaacs escreve o livro. Em 1864 o autor é apontado, aos vinte e cinco anos de idade, como subinspetor do canteiro de obras do Caminho de Buenaventura, projeto ambicioso que deveria ligar a isolada cidade de Cali, por meio de uma via férrea, à costa pacífica. Isaacs passa a viver no povoado de La Víbora, onde escreve María em seu tempo livre, “en la noche, en un bohío hecho de árbol de matambre y hojas de palmeras y bajo el zumbido de los zancudos”(16), até contrair malária, doença que mais tarde lhe custará a vida, aos 58 anos de idade.

                De volta a Cali, após um ano de serviço, ele termina sua obra instalado em outra propriedade da família, no que hoje corresponde ao bairro El Peñon, contíguo a San Antonio. É também por onde Efraín entra na cidade nesses mesmos capítulos finais, à procura da casa — a mesma de Isaacs, presumivelmente — onde estaria sua família. (Nós ainda não sabemos, mas María já havia sucumbido à sua doença e sido enterrada em Santa Elena alguns dias antes). Do alto de seu cavalo, antecipando talvez a tragédia que lhe espera, ele diz:

Ya dejaba a mi izquierda la pulcra y amena vega del Peñon, digna de su hermoso río y de mis gratos recuerdos de infancia. La ciudad acababa de dormirse sobre su verde y acochinado lecho: como bandada de aves enormes que se cernieran buscando sus nidos, divisábanse sobre ella, abrillantados por la luna, los follajes de las palmeras(17). (Cap. LX).

                Hoje, quem chega a El Peñon, à procura dos bares e restaurantes que dominam a pequena praça central, passa necessariamente por essa casa. Situada em uma das artérias do diminuto bairro, a Carrera 4 Oeste chama a atenção por sua arquitetura destoante do contexto: é, na realidade, um casarão de três andares com uma gigantesca fachada em estilo californiano. Também seu estado de conservação é digno de nota: abandonada há décadas, o teto desabou e uma árvore cresceu em seu interior. Nós mesmos, os residentes, sempre que nos cansávamos das populares arepas acorríamos a esse bairro e passamos por ali inúmeras vezes, sem nada mais notar do que a tal árvore, visível através de uma janela quebrada. Contrariamente à fazenda El Paraíso, cuja compra foi anunciada com pompas pelo Departamento do Vale do Cauca, não há nada aqui que informe o passante da história que a casa abriga, a não ser um painel publicitário — como tantos outros que se veem na região — afixado a certa altura, por entre as árvores da rua, anunciando ali em breve “o melhor centro comercial de Cali”. Nele, há uma simulação virtual na qual é possível ver o nome de Jorge Isaacs grafado em letras brancas e gordas na futura fachada de vidro, madeira e cimento. Esse é o nome do mais novo empreendimento imobiliário do bairro e também de uma verdadeira arenga patrimonialista, histórica e literária suscitada pelo polêmico projeto.

                Ruidosamente lançada em 2012 pelo escritor e jornalista calenho Umberto Valverde (de quem eu viria a ler um livro ainda nessa viagem), ela envolveu uma série de acusações e refutações, nem sempre cordiais, trocadas entre a subdiretora de Ordenamento Urbanístico de Cali, o responsável pelo Centro Comercial Jorge Isaacs, a Sociedade de Melhoras Públicas, um fiscal da Prefeitura e um membro da Academia de História do Vale do Cauca. “Ahí se terminó de escribir María por parte del más grande escritor que ha tenido Cali y ninguna Secretaría Cultural de Municipio se ha interesado por restaurar esa casa, abandonada desde hace mucho a su suerte”(18), afirmou Valverde, rebatendo a confiança da Prefeitura na promessa dos novos empreendedores, os quais garantem que nessa obra “não se tocará na casa do escritor, pelo contrário, ela será melhorada e estará aberta ao público”(19). Por um lado, é preciso reconhecer que a subdiretora de Ordenamento Urbanístico tem razão quando afirma que o poder público não possui mecanismos que lhe permitam investir diretamente em bens privados; tudo o que pode ser feito é a desoneração do imóvel para que o proprietário faça a conservação necessária. Por outro lado, a presença de uma torre de vinte e dois andares vizinha ao terreno parece dar também razão a Valverde, e serve de indicador do que deveria ter acontecido também por lá se um fiscal especialmente zeloso não tivesse impedido sua demolição em 1993. Após ter vivido um momento de esplendor nas mãos de ricos comerciantes, abrigando festas de gala e orquestras internacionais entre os anos 1930 e 1950, o casarão branco foi tomado pelo narcotráfico (e suas empreiteiras associadas) nos anos 1980. Esse é o momento de uma explosão demográfica sem precedentes da cidade, que, nesse intervalo, passou de uma comunidade de 250 mil pessoas a uma metrópole de 1,5 milhão de habitantes(20); muitos vinham fugindo da ação dos paramilitares nas montanhas na região, outros tantos eram atraídos pela promessa de enriquecimento rápido ligado ao tráfico. Quinze anos mais tarde, com a prisão dos líderes do Cartel de Cali, instaura-se uma forte recessão econômica (é preciso ter em mente que quase toda a cidade estava nessa época, direta ou indiretamente, ligada ao negócio da droga). Na impossibilidade legal de se demolir a propriedade (apontada como patrimônio cultural nesse ínterim) e construir outra torre análoga, a imobiliária El Peñon, comandada pelo traficante de alta patente “Pacho” Herrera, vai à falência por falta de liquidez e o projeto é abandonado. Desde então, a despeito de reiterados pedidos da sociedade civil para que ali se crie um centro cultural em memória do escritor, os únicos projetos que avançaram foi a criação de um clube privado Jorge Isaacs, e mais recentemente, de um centro comercial homônimo. 

                Resulta algo cômico, em toda essa discussão, o fato — absolutamente notório, aliás — de que aquela não é a casa de Jorge Isaacs. Ou melhor, não é mais. Demolida em 1938, a propriedade original era feita de adobe e pau a pique e, a despeito de seu aspecto rudimentar, dava para um terreno de extensão considerável situado no limite ocidental de Cali, grande o suficiente para que Isaacs pai tenha tentado criar gado ali. Como se pode observar em uma foto da época, é a única casa da região, com a exceção do que um dia foi o belíssimo Colégio de la Sagrada Família, construção centenária que hoje, sintomaticamente, está sendo convertida em um luxuoso hotel-butique de mesmo nome. Essa obra em andamento, com gruas pairando sobre a pequena praça do bairro, dá uma ideia de como será o centro comercial, através do chamado retrofit, operação arquitetônica que busca modernizar as suas instalações do imóvel original, preservando os seus traços mais característicos. No caso do hotel, apenas a fachada colonial foi mantida, e, na imagem em três dimensões visível no tapume, ergue-se um grande cubo de madeira colorida saindo no centro do pátio em direção ao céu. Em outra fotografia de época, tirada do mesmo ângulo que a primeira, porém muito mais próxima à casa de Isaacs, os sinais de um progresso vindouro já estão presentes: há um carro Ford T parado à porta, e uma antena elétrica com seu característico emaranhado de cabos ocupa o que resta de céu na imagem.   

                Esse conflito de temporalidades está também presente no livro. Em uma das poucas passagens em que o narrador se dirige diretamente ao leitor, evocando o tempo do relato e não do relatado, em um presente da escrita igualmente imaginário, ele diz: “Ya no volveré a admirar aquellos cantos, a respirar aquellos aromas, a contemplar aquellos paisajes llenos de luz, como en los días alegres de mi infancia y en los hermosos de mi adolescencia; ¡extraños habitan hoy la casa de mis padres!(21)”. Efraín não fará nenhuma outra menção direta a isso mais adiante, dando a entender que a morte de María é a causa (ou pelo menos a metáfora) de todos os seus infortúnios vindouros. É, por um lado, compreensível: em um mundo no qual toda feiura, pobreza, miséria, sujeira e maldade foram meticulosamente excluídas, é natural que a fatalidade última seja também a fatalidade única. Por outro lado, é também interessante contrastar essa recriação literária de sua infância, na figura de Efraín, com o que consta nos autos jurídicos da cidade, os quais registram a perda das propriedades da família de Isaacs.    

                Quando o autor escreve o romance em sua cabana nas selvas do Pacífico, a fazenda El Paraíso já não lhe pertence. Isso nada tem a ver com a perda de um amor de infância, mas com dois fatos históricos concretos: a guerra civil que fratura o país em 1854 e a abolição da escravidão, em 1849. Com problemas financeiros e privado da mão de obra escrava na qual seu negócio agrário estava baseado, seu pai dá entrada em inúmeros empréstimos bancários a fim de tentar recuperar a produtividade do passado. Incapaz de reinventar seu modelo de trabalho, ele passa a enfrentar no fim de sua vida dificuldades com o alcoolismo e o jogo, e termina por deixar à sua mulher e filhos dívidas consideráveis. Há mais de trinta processos, registrados no Juizado Civil de Palmira entre 1861 e 84, de credores que exigem pagamento imediato; frente a que o escritor, jornalista e advogado Eustáquio Palácios (de quem eu também leria um livro nessa viagem) teria de sair em defesa da honra da viúva. Isaacs filho por duas vezes — antes e depois do sucesso de María— fracassa na tentativa de administrar os negócios da família e, multiplicando as dívidas herdadas, vê-se obrigado a leiloar todas as propriedades que lhe restavam em 1864: as fazendas La Rita e Manuelita.

                Nesse ponto, a realidade parece abater-se com violência extraordinária sobre a idílica visão de mundo que nos oferece a ficção de María, pois quem arremata as propriedades é outro personagem central da história de Cali: Santiago Eder, também judeu, de origem russa e naturalizado norte-americano, que veio tentar a sorte no hemisfério sul. Mas nem mesmo esse encontro perfeitamente real vai sem seus pontos de discórdia historiográfica e ambiguidades interpretativas, como bem o prova a sequência do debate de Valverde, desta vez com Javier Tafur González, o já citado membro da Academia de História do Vale do Cauca(22). Interessa olhar para isso de perto, pois a transferência das propriedades da família Isaacs para a família Eder é a própria história das revoluções sociais e econômicas que transformam a região na virada do século 19 para o 20. E o desentendimento insolvente acerca das verdadeiras condições dessas negociações na época é um exemplo privilegiado da ambivalência da visão que os seus habitantes têm sobre sua própria história.

                Don Santiago Eder, nascido James Martin Eder, é mais conhecido como “El fundador”. Graduado em Direito em Harvard, e trabalhando em Buenaventura como comerciante (chegando a ser posteriormente cônsul dos Estados Unidos no Chile), ele faria fortuna ao antecipar — e promover ativamente — o advento de um novo fenômeno no Vale do Cauca: a mecanização do plantio do açúcar e sua transformação em “negócio”. Onde o pai de Isaacs viu o fim da linha, Eder viu uma nova oportunidade: o fim da escravidão marcou para ele não só a aposta em um novo modo de trabalho, baseado no poder da máquina, como também a possibilidade de expansão da produção. Ele deixa então de lado outras atividades desenvolvidas nas fazendas de Isaacs, tais como a criação de gado, e concentra-se exclusivamente na extração da cana de açúcar, trazendo melhorias aos trapiches já existentes. No entanto, a grande virada seria operada no ano de 1901, marcando a entrada do novo século: Eder manda trazer da Escócia o maquinário necessário para se estabelecer ali a primeira fábrica movida a vapor da Colômbia e, para isso, atravessa todo o caminho (ainda inacabado) do Pacífico até a região de Palmira, ao norte de Cali. Não havia ali nem um porto capaz de receber os contêineres de madeira, nem estradas para transportá-los, nem eletricidade para iluminar o caminho durante as longas semanas de travessia. É basicamente o mesmo percurso que realiza Efraín ao longo do rio Dagua, mas feito agora no lombo de centenas de bois e mulas carregando gigantescas peças metálicas por centenas de quilômetros de barrancos. Foi uma aposta com um risco enorme que se pagou com um lucro ainda mais significativo. Eder criava naquele momento a mesmíssima empresa familiar, em operação ininterrupta há 150 anos, que tentei visitar (sem êxito) junto a Camila, Marília e Andrés em meus primeiros dias na região: Manuelita S.A.

                Via de regra, monumentos levam os nomes dos vencedores: este não é o caso aqui. A ironia reside no fato de que a maior produtora de açúcar e derivados da Colômbia carrega até hoje o nome da fazenda que fora antes nomeada em homenagem à mãe do escritor falido: Manuela Ferrer. E tudo se passa como se a fortuna e a influência da família Eder tivessem sido construídas com o nome e a fama da família Isaacs. É o que apontam ainda as placas, supostamente existentes (não obtive autorização para visitá-las), respectivamente, na entrada da fazenda La Rita, com os dizeres: “Aqui passou os anos mais felizes de sua vida o poeta Jorge Isaacs”, e na entrada da fazenda Manuelita: “Aqui viveu Santiago Eder entre 1877 e 1901”. Em toda a minha estadia em Cali, não recordo haver escutado ninguém mencionar espontaneamente o nome Eder; ao serem questionados, entretanto, quase todos dizem conhecer a família, mas não necessariamente o que fazem ou fizeram. Uma pesquisa rápida na internet mostra que todas as gerações dessa família — sem exceção — tiveram uma ligação importante não apenas com a história do desenvolvimento da cidade, mas também com a história da Colômbia de forma geral. Santiago criou o primeiro engenho açucareiro do país, seu filho Enrique foi o protagonista da implementação da eletrificação de Cali; seu neto Harold foi assassinado pelo grupo de guerrilheiros que mais tarde viria a assumir o nome FARC, no primeiro caso registrado de sequestro do país; seu bisneto Henry participou da construção de uma gigantesca hidrelétrica na região de Anchicayá; e seu tataraneto Alejandro é um dos principais negociadores do processo de paz recentemente firmado pelo governo junto aos paramilitares em Havana. Até hoje, seu irmão Harold Enrique, atual presidente da Manuelita S.A., e casado com uma conhecida apresentadora de tevê no país, segue afirmando em entrevistas “o grande significado desta fazenda para a família”.

                É o significado, por assim dizer, desse “significado” que Valverde e González discutem em uma série de artigos publicados no periódico El Tiempo, ambos amparados por farta literatura, tanto sobre o “fundador” quanto o escritor. 19. O jornalista é categórico em afirmar que Isaacs foi “uma glória das letras, mas em sua vida pessoal foi um homem endividado e perseguido por Santiago Eder, [quem] praticamente [o] desterrou do Vale do Cauca”(23). Ao que González retruca dizendo que a perda de credibilidade de Isaacs em sua região se deveu sobretudo à sua saída do Partido Conservador e ingresso nas fileiras do liberalismo radical em um momento turbulento da história política do país. Novamente, ambas as partes parecem ter razão. De fato, é ao lado dos liberais que ele tomará as armas nas campanhas de 1876, e é também como membro da Câmara de Representantes em 1879 que tentará (sem êxito) proclamar a si mesmo como chefe político e militar da Antioquia, por ocasião da repressão a um levante conservador. Após esse episódio infeliz, ele passaria a ser duramente rechaçado a cada uma das vezes que tentou voltar a Cali. Por outro lado, a leitura de María parece realmente indicar a presença perturbadora de um homem misterioso, apresentado como um parceiro comercial do pai de Efraín que aplica-lhe um golpe, causando graves dificuldades financeiras. Ao receber a notícia, ele se condena por sua confiança no colega: “¡Ese hombre me ha muerto!, lee esa carta: al cabo sucedió lo que tu madre temía. [...] Eso no tiene ya remedio [...] Qué suma y en que circunstancias!... Yo soy el único culpable(24)”. Sob a pressão de ter de esconder do resto da família o duro golpe econômico, o pai adoece do que o médico diagnosticará como “febre cerebral”, enfermidade que lhe atormentará por dias e noites a fio de agonia e que não poderá ceder, ainda segundo o médico, sem o auxílio de uma “copiosa sangria”. Uma dessas noites, contudo, o doente levanta-se subitamente da cama e, com uma energia inesperada, troca o seguinte diálogo com Efraín:

—  ¿Quién está ahí?... ¡Hola!, ¡Hola!

                Sobrecogido de cierto espanto invencible, a pesar de lo que prometía aquel delirio tan semejante a la locura, procuré reducirlo a que se recostara. Clavando él en mi una mirada casi terrible, preguntó:

—  ¿No estuvo él aquí? En este momento se ha levantado de esa silla.

—  ¿Quién?

                Pronunció el nombre que yo me temía(25).

                É possível realizar a travessia a pé da residência em San Antonio à sede do Lugar a Dudas em San Fernando de duas formas. À noite, contudo, nenhuma das duas é aconselhada pelos organizadores, os quais recomendam sempre tomar táxis — bastante em conta — mesmo para as distâncias mais curtas. Cali parece ainda assombrada pelo fantasma da violência arbitrária instaurada pelo narcotráfico, o qual, embora enfraquecido, ainda tem raízes ali, contrariamente a Medellín, de onde foi praticamente extirpado. Pude ver, por exemplo, jovens usando cocaína ao ar livre perto do Museu de Arte e não faltaram oportunidades para comprar droga, sobretudo na porta de algumas salsatecas que visitei por conta de outro livro. O discurso do medo é repetido à exaustão — “nunca se sabe o que pode acontecer” — e raramente se vê alguém na rua após as 20 horas. Como se, enfim, o antigo toque de recolher do século 18, registrado em livros mais antigos, soasse ainda claramente na mente dos calenhos.

                De dia, com as ruas mais cheias, se pode descer tranquilamente por El Peñon e seguir na Carrera 4 Norte por aproximadamente 20 minutos, ou então passar pelo Centro Histórico, para só depois atravessar o rio Cali, por um caminho um pouco mais longo. Esse segundo percurso dá uma ideia rápida e precisa do que aconteceu com a cidade nos últimos anos: entre pequenos sobrados históricos malconservados e alguns centros empresariais envidraçados de poucos andares, o que mais se vê são estacionamentos e cassinos — as atividades mais lucrativas da cidade (depois da cana-de-açúcar e do narcotráfico, suponho). O comércio ambulante ocupa quase todo o espaço das calçadas com quinquilharias baratas, e motocicletas zunem ao redor da praça histórica da cidade, a Plaza Cayzedo, ponto de encontro de uma Cali nitidamente mais popular, limítrofe com o Barrio Obrero e San Nicolás. No centro dessa diminuta e barulhenta praça, observando as suas edificações castigadas pelo tempo através da cortina de altas palmeiras, tem-se a impressão de que a cidade simplesmente cresceu rápido demais, fugiu ao controle. O centro foi completamente abandonado por seus antigos habitantes, deixado à sua própria sorte, e tornou-se assim uma espécie de terra de ninguém, onde todos vão de dia, por muitas razões, e ninguém de noite, por uma única e mesma razão.

                Tomando em seguida a Calle 12, à esquerda, a cena muda de figura. Chega-se à margem do rio que divide a cidade em duas, e tudo subitamente cheira a novo: o asfalto, a catedral gótica, o prédio restaurado da Companhia de Tabaco Colombiana, a faixa exclusiva para ônibus recém-pintada, e sobretudo a ponte pedestre branca que avança como um bulevar em direção ao Norte. Uma vez do outro lado, uma placa me informa que estou no Parque Jorge Isaacs, um amplo espaço verde que abriga, entre outras coisas, a nova sede da prefeitura. Ainda que permaneça alerta em relação ao que se passa ao meu redor, a sensação de segurança já é muito maior; vejo famílias que passeiam, casais que olham o rio, crianças que correm pela terra. Encontro finalmente, um pouco escondido por um bambuzal, aquilo que procurava: outra grande escultura em homenagem ao escritor e sua criação. Esta é toda branca, de mármore de Carrara, de estilo neoclássico e execução infinitamente superior. Está divida em duas seções: na parte inferior, estão Efraín, María, o cão Mayo, mas também uma ave misteriosa que traz inúmeras premonições da tragédia iminente ao longo do livro. Na parte superior, está o busto de Isaacs, como que observando o desenrolar da história de um ponto de vista onisciente. Não é a primeira vez que a vejo, mas, a cada ocasião que tenho, torno a passar por ali, sem saber bem porquê, para observá-la. Por algum tempo perguntei-me o que é que a tornava tão mais interessante do que aquela primeira escultura de Santa Elena. Então um dia, enquanto relia minhas anotações no caderno, tudo subitamente se encaixou. Saquei mais uma vez uma nota de 50 mil pesos do bolso e virei-a dos dois lados: ali estava a mesma polaridade da escultura, de um lado o autor e de outro lado a obra, literalmente os dois lados de uma mesma moeda.

                Era, no fundo, a mesma questão desde o início: como era possível que o escritor mais celebrado da Colômbia depois de Gabriel García Márquez pudesse receber de sua cidade natal um tratamento tão ambíguo? Pois, enquanto seus personagens são amplamente celebrados como patrimônio cultural local, raramente se comenta que Isaacs morreu no exílio, pobre, longe de tudo o que para ele representava a pureza do Vale do Cauca: seu povo, sua terra. E não se trata de apenas mais um caso de reconhecimento tardio, tão comum nas artes e na literatura modernas. Ainda hoje, ao passo que grupos de turistas visitam a tumba de María em Santa Elena, não ocorre a ninguém deslocar-se para visitar a ossada de Isaacs. É provável que nunca se saiba a razão definitiva de seu autoexílio em Ibagué, no Departamento de Tolima, se por questões financeiras, como sugere Valverde, ou diferenças políticas, como sugere González. O que é certo é que o poeta pede para que seus restos mortais sejam transladados a Medellín, capital do Departamento da Antióquia, território ao qual ele declara seu amor ao fim da vida: “Pero oye, si aquí en este lugar me dan tumba prestada, que pronto envíen en Antioquia por mis huesos: a ella pertenecen”(26). Esse desprezo mútuo da cidade e do autor é o que aparece claramente fixado nessa escultura, em uma inesperada inversão de valores entre o alto e o baixo. Enquanto Efraín e María estão ao nível dos passantes no parque, plenamente visíveis, encarnados, o autor não parece passar aqui de uma presença fantasmática, isolada no alto, sem corpo. Afastado do desenrolar da história, ele não é mais do que um nome. Precisamente o que a guia tentava explicar antes com sua teoria do autor como alter ego do personagem: ele não é senão o duplo vazio de Efraín.

                A explicação para esse impressionante fenômeno de substituição, repetido por toda parte, não reside em outro lugar senão no próprio livro. Mais precisamente na força que ainda carrega hoje a visão de mundo trazida ao Novo Mundo por María: o Romantismo. Pois a função da visão romântica do mundo é justamente de apagar as condições materiais e históricas da vida cotidiana em favor de uma imagem purificada da experiência e das relações humanas. E nos fazer passar, assim, sem mediação, do Profano ao Sagrado, do reino do Real ao do Ideal. Não é coincidência que milagres tenham sido atribuídos à María, que seus “restos mortais” sejam objeto de devoção: ao seu corpo imaginário foi dada não apenas realidade física como uma dimensão sagrada. Ela é, de fato, a imagem mesma dessa mulher virgem que ainda hoje orienta o ideal do casamento cristão; ela é, em todo rigor, uma santa. Isso é muito mais do que biografia ou turismo: é um mito, no sentido forte do termo. E contrariamente à ficção, que funciona porque suspendemos a realidade, esse tipo de discurso mítico só funciona se se atribui a ele realidade. É o que parece acontecer na região, em graus diferentes de adesão, fazendo com que a ficção ganhe ares de verdade histórica. É também o que faz com que toda a dimensão de “relato histórico” do romance apareça muito reduzida. Não apenas em sua recepção como em sua própria concepção, apesar das melhores intenções do autor na descrição dos costumes locais. María trata de todos os grandes temas sociais do século 19 latino-americano: a relação entre terratenientes e escravos, entre brancos e mestiços, exploradores e contrabandistas etc. Mas sempre de forma tangencial, sem interferência real na história central, reduzidos a um pano de fundo para o drama “íntimo” dos jovens protagonistas. É também o que se passa com as abundantes descrições da fauna e da flora do Vale, a despeito das listas de dados naturalistas, suas cenas costumbristas e referências precisas ao modo de vida daquela província. A mesma ênfase na natureza, que criou de fato uma nova associação do leitor colombiano com as suas terras, serviu também para sugerir uma paisagem purificada do elemento humano. É o que se passa, finalmente, com o próprio Isaacs.

                María é, no fundo, um longo exercício de retrospecção que depura, filtra, idealiza a juventude do autor. Movimento da escrita que apresenta necessariamente, por contraste, o amadurecimento como uma perda. A força mítica que dá realidade ao personagem Efraín, ao mesmo tempo, supõe e apaga as condições sociais e materiais de seu tempo, e termina, assim, por tirar a realidade de Isaacs. Pois a máxima do Romantismo, pelo menos por essas paragens americanas, é de que para dizer é preciso primeiro perder. Ou melhor, como lemos na voz de Efraín: “Las grandes bellezas de la creación no pueden a un tiempo ser vistas y cantadas: es necesario que vuelvan al alma empalidecidas por la memoria infiel”(27). Essa é também a razão pela qual a família Eder, que constrói seu poder e fortuna ligando-se ao imaginário de María, segue afirmando a “importância daquelas fazendas” adquiridas da família Isaacs. Eles querem desaparecer; muita visibilidade é ruim para os negócios. É a mesmíssima estratégia dos rendersgráficos dos novos empreendimentos imobiliários da cidade: servir de tapume para a destruição no interior da obra. O efeito que Isaacs produziu involuntariamente, apagando a si próprio, a cidade de Cali está reproduzindo voluntariamente, dando realidade à ficção para esconder a sua própria realidade. É melhor que o visitante não veja o que, de fato, acontece ali dentro. Por isso mesmo, para reencontrar essa história, é preciso retirá-la do contexto romântico, de seu tapume, de sua projeção; é preciso pôr de lado seu elemento anedótico, esvaziar o seu mito. Enfim, é preciso arriscar dizer o óbvio. 

                Nunca fui um bom turista. A verdade é que só me anima a perspectiva de conhecer o mundo lá fora, desde que possa transportar meu quarto para o novo lugar. Isto é, desde que possa trabalhar lá, com meus horários ao mesmo tempo flexíveis e inflexíveis. Pois sou desses para os quais é estranha a ideia de férias, esse curto período de tempo passado o mais longe possível do trabalho. Sou como esse artista-executivo de Beuys, que não distingue dias de trabalho e fins de semana. Sem nenhum tipo de vínculo empregatício formal, invento minhas próprias demandas (e eventualmente fontes de renda) e tenho alternadamente a sensação de estar sempre trabalhando e não estar trabalhando nunca. Foi a dinâmica que tentei replicar em meu quarto provisório em Cali. Havia ali uma cama de casal, uma escrivaninha embutida sob uma janela que dava para o pátio interior e um banheiro. Tudo era bastante simples, porém confortável. Apenas a cadeira não era das mais ergonômicas, o que me fazia passar mais tempo deitado na cama do que sentado à mesa. Assim, quando a janela estava aberta, e dava a impressão de estar trabalhando na escrivaninha, estava fazendo qualquer outra coisa no computador. Quando a janela estava fechada, e dava a impressão de estar dormindo, é que estava trabalhando de verdade. Isto é, lendo romances. Tudo ali era extremamente familiar. No entanto, agora já no carro que me conduz ao aeroporto, sinto-me como um desses turistas ao fim da viagem, com medo de que sua experiência se revele, apesar da sombra da repetição, incomunicável para os demais. Olho pela janela durante quase todo o trajeto, tentando registrar uma última vez a imagem daquele longo trecho de canaviais, como se tivesse medo de perdê-la para sempre. Penso nas pessoas que conheci, nos residentes, nos artistas, nos curadores. Mas penso principalmente em María. Havia realizado para outros livros mapeamentos semelhantes da cidade, mas nenhum deles me marcou tão profundamente quanto o primeiro. Muitas vezes me perguntei, ao longo daquelas semanas, o que era afinal que estava desaparecendo em Cali sob o nome de Jorge Isaacs. A resposta agora me aparecia com clareza: era a própria ideia da juventude. Pois María é um livro sobre uma sociedade colonial, católica e fortemente hierarquizada que começava a dar os primeiros sinais de estremecimento; mas é sobretudo uma história de conflito geracional. Há, claro, a doença misteriosa que assombrava os personagens, mas esse não é realmente o ponto. Epilepsia ou melancolia — não importa de fato o nome desse mal tão típico do Romantismo — ela não é mais do que um elemento de cena para a colocação da real problemática em jogo: a questão do interdito familiar. Coincidência ou não, todos os livros lidos por lá tinham por tema, sem exceção, a juventude(28). Todos pareciam negociações, conscientes ou não, com o legado deixado por Isaacs. Seus protagonistas são todos adolescentes, dos séculos 18, 19 e 20, que se debatem com a autoridade familiar. E todos, em certa medida, fracassam em seu embate, o que significa adequar-se completamente ao mundo adulto, ou abandoná-lo pelo suicídio.

                Quando comento isso com Andrés, ele me responde ter também saudades de sua juventude. Diz que até seus vinte e poucos anos sentia que tudo era possível, que poderia ter sido dançarino de salsa, piloto de corrida de carros, ou até mesmo narcotraficante, mas que as crianças infelizmente não envelhecem bem em Cali. Voltamos então ao assunto da alcunha da “Sucursal do céu”, e lhe pergunto se isso não poderia ser uma resposta à crença popular de que o diabo habitava aquela cidade. É uma lenda que ouvi diversas vezes, da boca de muitas pessoas. Há inclusive um morro, visível de muitos lugares da cidade, no qual é ainda possível distinguir, por entre muitas antenas elétricas, três cruzes antigas. Não uma, mas três. Elas foram postas lá por padres no século 18 em uma tentativa de exorcizar a cidade. Após um terremoto que as derrubou, novas cruzes, maiores e mais fortes, foram ali colocadas no século 20. Aquele tremor deve ter sido também coisa do diabo lutando para sair de seus subterrâneos, pensaram, e era preciso reagir a qualquer custo. Pergunto então a Andrés se não poderíamos talvez pensar naquelas cruzes como o símbolo do mundo adulto tentando exorcizar a energia transbordante da juventude, que insiste sempre em voltar. O morro das Três Cruzes como a verdadeira tumba de María. “A juventude é então o diabo?”, ele pergunta. “Por que não?”, respondo. E ele, com seu sorriso discreto, me devolve: “É, por que não?”.  

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  DIAZ RUIZ, I. “Introducción” apud ISAACS, J. María, Mexico D.F: Siglo Veintiuno Editores, 2006.

2    ISAACS, J. María, Mexico D.F: Siglo Veintiuno Editores, 2006, Cap. II, p. 4

3    Idem. p. 287.

4    O “Prix de Rome” é, talvez, o primeiro exemplo deste tipo de intercâmbio. Criado em 1663, ele garantia uma bolsa de residência na capital italiana, de até cinco anos de duração, a pintores e escultores (e, posteriormente arquitetos, músicos e gravadores) franceses, financiado pela Academia Real de Pintura e Escultura da França. O prêmio só foi encerrado em 1968, pelo então Ministro da Cultura André Malraux. No entanto, as residências artísticas, tal como as conhecemos hoje, têm suas origens mais diretas em uma série de experiências comunitárias realizadas por artistas da segunda metade do século XIX em clara oposição ao establishment de sua época. Comunidades rurais como Barbizon ou Pont-Aven, na França, ou Worpswede, na Alemanha, atraíram inúmeros pintores que buscavam afastar-se da influência da arte oficial para desenvolver mais livremente suas pesquisas. Este modelo de criação experimental ligado a ideais contra-culturais de sociedade alimentou também diversas residências ao longo dos anos 1960 e 70.  

5    Jornal El Tiempo “Entrevista en BOCAS: Harold Eder, el heredero del ingenio Manuelita” por Jorge Quintero, 10.11.2014. Acessível em: http://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-14816091

6    Cf. NAVARETTE, M. C, Génesis y desarrollo de la esclavitud en Colombia siglos XVI y XVII, Universidad del Valle, Programa Editorial: Cali, 2005; além de VALENCIA LLANO, A. Los orígenes coloniales del Puerto de Buenaventura, hist.mem., Colombia, n. 9, p. 221-246,  julho de 2014. Acessível em: www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2027-51372014000200008&lng=en&nrm=iso

7    ISAACS, J. María, op. cit. Cap. V, p. 10.

8    Idem.

9    Ibid. Cap. XLIII, p. 189.

10    Ibid. p. 190.

11    cf. a coletânea de ensaios por escritores colombianos sobre Isaacs e sua obra: Manuel Meija Vallejo, et al, ,María, más allá del paraíso, Cali: Alonso Quijada Editores, 1984, notadamente Darío Ruiz Gómez, "La imagen de la casa en María - fundación del espacio”, pp. 41-50. e  Hernán Toro, “La casa hoy”, pp. 107-115.

12    ISAACS, J. María. op. cit. Cap. LV, p. 245.

13    Ibid. Cap. LXV, p. 285.

14    Idem.

15    Maleta de 53 x 66 x 11 cm, contendo ainda obras gráficas de Brehmer, Hödicke, Hutchinson, Polke e Vostell, entre outros, publicado pela galeria René Block, Berlim. 95 cópias assinadas.

16    MARTINEZ, F. En busca del Paraíso, citado por Umberto Valverde, In Jornal El Tiempo, El abandono de la casa donde Jorge Isaacs terminó la 'María' 19 de maio de 2012. Acessível em: http://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-11831722

17    ISAACS, J. María.op. cit. Cap. LX, p. 271.

18    Umberto Valverde, citado no Jornal El País, “La Antigua Casa del escritor Jorge Isaacs, en el barrio El Peñon, no sera demolida”, 29 de maio de 2012.

19    David Rodríguez, arquiteto responsável pelo reforma, citado no Jornal El País, “La Antigua Casa del escritor Jorge Isaacs, en el barrio El Peñon, no sera demolida”, 29 de maio de 2012.

20    ESCOBAR MORALES, G, La población en Santiago de Cali: Siglo XX y primera década del XXI. Acessível em: https://planeacion.cali.gov.co/informacionestadisticacali/Demografia/Poblacion%20Cali%20Siglo%20XX%20y%20Primera%20decada%20siglo%20XXI.pdf 

21    ISAACS, J. María.op. cit. Cap. XXXIII, p. 130.


22    cf. Jornal El Tiempo, “Precisiones históricas sobre Jorge Isaacs”, artigo, 1º de junho de 2012. Acessível em: http://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-11915790


23    Umberto Valverde, In Jornal El Tiempo, “El abandono de la casa donde Jorge Isaacs terminó la 'María'”, 19 de maio de 2012. Acessível em: http://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-11831722

24    ISAACS, J. María.op. cit. Cap. XXXIII, p. 129. 

25    Ibid. Cap. XXXVII, p. 154. 

26    Citado em Repertório Histórico, Organo de la Academia Antioqueña de Historia, N. 141, 20 de junho de 1938, pp. 708-709, Medellín. Acessível em: http://academiaantioquenadehistoria.org/revistas/index.php/repertorio-historico/issue/download/80/Junio%20de%201938

27    ISAACS, J. María.op. cit. Cap. II, p. 5.

28    Além de Maríae do já mencionado Que viva la música!,1977, de Andrés Caicedo, foram lidos em cinco semanas El Alférez real, 1886, de Eustáquio Palácios e Celia Cruz: Reina Rumba, 1981, de Umberto Valverde.




BIBLIOGRAFIA


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