Afterword to the book Cidades Perdidas by Lucas Cureau. It reads like a personal testimony of the book's making, which I followed closely throughout the years we lived together as students in an apartment in Paris. From our shared experiences, I draw a parallel between what Lucas calls the "lost cause" of poetry and the question of our lost memories, thus viewing the poet as an archaeologist, always seeking "what is left" to be found from a "perfect past". I also point to the paradox inherent to all archaeological projects, where one never knows for sure what is found and what is invented, for it is always necessary to attribute meaning to the found traces.
Source > book Cidades Perdidas, Deep editora, 2016 (Portuguese)
I
Nunca erramos da mesma forma. Ainda que possamos sempre nos reconhecer na repetição de certos gestos involuntários, nunca somos exatamente os mesmos quando os cometemos, uma e outra vez. Mudam os amores, as moedas e os endereços — e, junto dessas coordenadas mais ou menos objetivas, muda também o sentido absolutamente singular de nossas decisões. Por isso, é fato extremamente raro que um observador seja capaz de apreciar, com a justeza necessária para tal, a especificidade de cada um de nossos passos em falso. Isso é o que Lucas é para mim, isso é o que sou para Lucas.
Tive o privilégio de dividir com ele os aproximadamente três anos e quarenta metros quadrados que servem de cenário às primeiras seções de Cidades Perdidas: um apartamento de dois cômodos e varanda situado em um bairro limítrofe de Paris. Foi ali, em festas que atravessavam as madrugadas e soiréesregadas a vinho barato, que conheci a maioria dos fantasmas que ora assombram estas páginas. Foi também ali que acompanhei — ou melhor, que pude adivinhar — o desenrolar da série de encontros românticos que parece compor a espinha dorsal deste volume: reconheço, entre as linhas, das fodas ocasionais e desinteressadas das noites adolescentes até o encontro verdadeiramente mítico com essa única mulher que, apesar da separação já distante, lhe “acompanha com a mesma desenvoltura de outrora ou mais”.
Ora, reivindicar a posição do perfeito observador da vida em nada me exime de uma análise detida da obra. Tarefa que parece complicar-se quando se compreende o que uma única leitura basta para clarificar: que tais dados biográficos não constituem de modo algum o cerne da questão. Se determinados eventos pontuais lhe servem de partida, eles não são nunca a última palavra de seus poemas. A cada linha, a cada verso, impõe-se a exigência de uma firme autonomia da linguagem em relação a suas condições de produção subjetivas. E se pessoas, lugares e objetos reconhecíveis são frequentemente apontados, não é nunca no intuito de descrever o pequeno universo circundante do poeta. Mas, pelo contrário, como uma forma de retirá-lo do centro de sua própria cena, de esconder-se por trás da falsa objetividade dos nomes próprios e dos referentes comuns: “aquela janela que dava para o museu da cidade” ou aquele ponto de ônibus “abarrotado de turistas e suas respectivas malas”. Estratégia deliberada ou ato involuntário, algo de profundamente deslocado se desprende da leitura dessas “notas do ofício”, nas quais se afirma claramente que o “mais aberrante dos relatos (...) sou eu sou eu”. Essa estranheza parece se traduzir de forma ainda mais clara na pretensão, bastante fora da ordem do dia, de se erigir “uma arte poética” hoje.
Calculamos assim a que distância estamos dessa estética contemporânea que ousaria chamar do “cotidiano trivial”, na qual se trata antes de tudo de cantar o dia a dia de um sujeito desinteressante habitando um mundo não menos enfadonho. Não obstante, resisto a admitir que tudo se resume a esse plano que os especialistas da narratologia chamariam, por sua vez, de diegético. Isto é, que tudo se restringe aqui aos limites interiores da realidade tecida pela própria trama. Pois a negação da centralidade da voz poética que se verifica tão facilmente em seu livro encontra seu símile perfeito em um movimento extraliterário que observei justamente naqueles anos em que vivemos juntos: a negação de sua identidade como poeta. Admito: é um liame bastante sutil, este entre a vida e a literatura, ao qual estou aqui aludindo, mas não menos verdadeiro. Era precisamente quando não estava escrevendo que Lucas me parecia estar mais aplicado na elaboração do que mais tarde viriam a ser estes versos. Em todo o nosso convívio, não o vi escrever um só poema. Daí o meu espanto. Para o adolescente que conheci primeiro no Rio de Janeiro — leitor tão precoce quanto ávido de poesia — a norma era escrever, de forma fluida, descomplexada e em quantidade abundante. Mas para o jovem que tornaria a encontrar após um hiato em Paris — estudante de cinema tão hábil quanto desiludido com o saber recebido — a regra era outra: não deixar passar o que quer que fosse sem uma crítica prévia radical, fosse a figura patética do poeta romântico, o mito falido da originalidade da poesia moderna, o fetiche risível do primeiro livro ou a ideia descabida de encontrar uma voz poética própria.
Talvez tenha sido coincidência, talvez não. Foi mais ou menos na mesma época em que Lucas deixou de escrever poesia e começou a se interessar mais e mais por fotografia, que eu, também insatisfeito com minha formação em filosofia, comecei a descobrir outra vida para as palavras no campo das artes visuais. Não falarei nesse ponto em um puro desencontro; mas não excluo a possibilidade de uma certa frustração mútua por não havermos conseguido estabelecer os termos de uma possível convergência de interesses; tampouco, a hipótese de que essa sensação, a qual não encontrou sua expressão à época, tivesse um fundamento estritamente material. Não me faço ilusões: sei que era o dinheiro que recebia mensalmente de minha família que comprava o tempo de que dispunha para meus experimentos literários; e que, inversamente, Lucas não podia dedicar-se a seus próprios poemas, em grande parte, por estar sempre tomado por trabalhos desinteressantes, de baixa remuneração e prazos apertados. Mas condições não são determinações: e eu já intuía o que podia haver por trás daquela cena repetida todos os dias no quarto ao lado: alternando cafés e cigarros, a legendagem de filmes de entretenimento e uma série de críticas gastronômicas de restaurantes baratos, Lucas não estava apenas sempre ocupado, estava ocupando-se. Estava constantemente buscando (e constantemente encontrando) os mais variados subterfúgios para não escrever. O que me escapava à época, contudo, é o que hoje me aparece com clareza: o significado profundo daquela sucessão infernal de distrações materiais. Lucas estava constantemente ocupando-se para não escrever da forma como achava que deveria escrever, e assim não se tornar o poeta que achava que deveria ter se tornado. Todos os novos “bicos” que viria a conseguir não eram, no fundo, uma forma estéril de perder tempo, mas uma forma desesperada de ganhar tempo: qualquer par de horas a mais que lhe permitisse encontrar outra coisa que não a escrita, qualquer coisa que lhe apontasse um caminho para se tornar outra coisa, qualquer outra coisa que um poeta. Pois o golpe que havia desferido contra a instituição da poesia era tão radical, que nem mesmo ele próprio, como o jovem poeta promissor que sabia ser, poderia escapar.
O resto são as suas palavras: “e, assim, passaram-se os anos — ou, até mesmo, o seu ofício — rima, fachadas, a derrocada lenta do espetáculo da escrita sob os holofotes.” Implosão do projeto construtivo que alcançaria os limites do paroxismo, arrastando consigo também a sua recém-lançada produção fotográfica, fazendo-o trocar paulatinamente sua Olympus PEN-EE 35 mm, uma câmera ágil, de tamanho reduzido, por uma portentosa coleção de antigas câmeras de todos os tipos e formatos, as quais tinham entre si apenas uma característica em comum: o fato de estarem fora de funcionamento.
II
Tudo recomeça então, em um breve interlúdio, com uma mudança, um corte súbito, e uma despedida: “paris repartida em caixotes, livros, dramas, papéis (...)te amo mi hombrecito hermoso, gracias por esta deliciosa temporada de nuestras vidas”. Uma única decisão que rompe a ordem dos dias e é toda a vida que se põe novamente em movimento: de cidade em cidade, de parada em parada, vemos então desfilar uma miríade de nomes, lugares e diálogos, que alternadamente tomam a forma de memórias pessoais ou de manchetes políticas: “saint-fargeau saint-denis sainte-isaure(...) e a frança descendo ladeira abaixo”. Entrecortadas por enigmáticos pontos de suspensão, estes flashes passam por nós como imagens descontínuas vistas pela janela de um trem em velocidade: “o campo aberto e acinzentado pela palidez da luz, como pronunciar o mediterrâneo em seus últimos dias de verão (...) filmes romances novelas (...) festejos galantes abraços risadas”. E, graças ao efeito paradoxal dos parênteses que abrigam esses pontos, tudo logo se reveste da continuidade encantatória das imagens projetadas na tela do cinema: “e do outro lado da desembocadura (...) le paysage qui défile à toute vitesse et ses tresses surplombant légèrement ses seins (...) sob o barulho da máquina futurista varando pelo vale do Ródano, feroz.” Mas essa analogia da escrita com o cinema, com seus planos, rupturas e símbolos traz consigo também uma carga dramática involuntária. Pois é inerente à arte que ele invoca a tensão entre as suas unidades documentais, os fotogramas, e seu encadeamento fictício, a narrativa. Assim, podemos tomar esta sequência, alternadamente, como um road-movie, no qual um personagem imaginário se abandona à deriva de um futuro aberto; ou como o roteiro de uma fuga real, no qual o próprio Lucas tenta encontrar uma brecha, uma saída que seja, para atravessar o cerco imposto a uma cidade crepuscular sitiada pelo seu próprio passado: “a noite se propagando sem que se alardeie uma única voz, além do cochicho de ambos (...) e tua pergunta, irônica (...)home-made, home-made (...) paris est tout petit, pour ceux qui s’aiment comme nous d’un aussi grand amour.” E cabe aqui uma nota pessoal: quando aponto em seu texto sua dificuldade em deixar para trás a capital, o faço com a propriedade de quem não hesitou em fazer o mesmo quando teve a ocasião. Quanto mais pensávamos nos afastar do apartamento que dividimos com nossos amores de juventude, mais aqueles seus quarenta metros quadrados, dois quartos e varanda, se fechavam sobre nós. E assim haveríamos de seguir, cada um de seu lado, cada um como pôde, por anos a fio, tentando despachar pelo correio todo aquele nosso universo feito de caixotes, livros, dramas e papéis empacotados às pressas.
Por um bom tempo, nos perdemos de vista. Voltamos a nos falar aos poucos, e apenas muito raramente de nossas aspirações. Por isso, quando ele comenta que finalmente voltou a escrever, compreendo a princípio que retomou os trabalhos de seu tão prometido livro de estreia. Aquele que estava destinado a mudar a cena da poesia jovem, mas que estranhamente não chegava nunca, postergando assim indefinidamente a revolução que todos à sua volta esperavam. Era um julgamento precipitado: Lucas não estava simplesmente retomando aquele material iniciado muitos anos atrás, estava iniciando um novo projeto que tinha aquele mesmo passado como material bruto. Como viria a compreender alguns meses mais tarde, ao receber a primeira versão do volume por e-mail, tratava-se aí de uma pesquisa mais “arqueológica” do que propriamente poética. Como se sabe, tal metáfora faz parte de nosso dicionário de ideias comuns, desde que foi transformada em procedimento historiográfico por Foucault nos anos 1970. Não obstante, arrisco-me a guardá-la, mesmo diante do clichê, pois me parece especialmente justa na descrição dessa narrativa, a qual parte de um confronto direto com a experiência da ruína da palavra e lança um olhar inquisitivo para os escombros do ofício milenar da poesia. Eis como imagino Lucas nesse período em que não nos frequentamos: instalado em seu novo lar em Brasília — um modesto sítio, longe da balbúrdia dos Ministérios — trabalhando vagarosamente, apenas nas horas vagas, na organização deste material precioso e esparso, escrito também de maneira entrecortada ao longo dos últimos anos. A palavra organizar, entre outras coisas, quer dizer: pôr em ordem, arrumar; dispor para funcionar, constituir em organismo. E, com efeito, pode-se dizer desse trabalho minucioso, que aqui nada se cria, mas tudo se tria. A cada poema, ele parece levantar uma camada de terra de suas próprias expectativas e frustrações do passado, e analisá-las detidamente antes de, finalmente, deitá-las por escrito, segundo uma progressão irresistível: indo sempre do mais próximo ao mais longínquo, do mais concreto ao mais abstrato, do mais trivial ao mais lírico. Ou, para retomar os fios de nosso problema inicial, indo daquele uso gasto das palavras em uma Paris desencantada até o encontro desse seu passado perfeito em alguma cidade perdida da América pré-colombiana. Nesse sentido, é significativo que as cidades que agora desfilam sob os nossos olhos não sejam mais facilmente reconhecíveis, como eram as cinematográficas Barcelona, Taganga ou Goma, mas percam seus contornos como nessas fotografias de uma Picinguaba de sonhos, com seus troncos atravessados entre o deserto e o mar. Mais do que apenas significativo, é absolutamente sintomático que a última dessas instâncias narrativas se erga precisamente sobre um cemitério de civilizações passadas, hoje identificado apenas como o sítio arqueológico Buritaca-200. Pois é somente após a extinção de toda forma de vida que tem início o trabalho do arqueólogo, cuja natureza mesma supõe que se chegue sempre tarde, sempre tarde demais. Ou ainda, nas palavras do próprio Lucas, no “calor, modorrento e lento”, tão típico dessa ressaca existencial de quando “já não ressoam pelos ares as rajadas sonoras dos helicópteros da antevéspera, nem o estardalhaço da cidade e seu transe geográfico”.
Não se trata apenas de constatar o que restou, mas de encontrar aí os indícios do que era. Através dessa reconstituição da cadência pulsante do passado, o que emerge não é mais aquela Paris que “lamentavelmente não se aparenta a suas praças, seus cinemas, seus jardins”, mas um território mitológico, onde se encontra a origem comum da experiência e da palavra: “lá, corpos celestes também fodem, tal fossem sexuados, e petróglifos insondáveis dissertam sempiternamente sobres os limites da escrita.” Nesse não lugar, os amantes ainda não têm nomes e o poema é muito mais do que um simples instrumento de expressão para uma subjetividade. Nesse seu passado imemorial, a poesia verte sobre algo muito mais profundo que nossos pequenos dramas adolescentes: sobre o sentido mesmo da escrita. Ainda não importa quemescreve ou sobre quem se escreve, como nos ensina o cânone da literatura, mas vale antes o ato da escrita em si mesmo, a própria tessitura do poema: “arte perdida que seria como a arte da própria vida, disse ao fitar (...) a parede rochosa umedecida, a exuberante vegetação vertical.” Encontramos aqui a intuição de uma poesia que não serve tanto de confessionário barato, mas conteria em si mesma o segredo de uma vida sem pecado. Perfeição que não corresponde a nenhum estágio histórico e contingente da literatura e que só pode ser buscada quando tudo ao seu redor, inclusive a própria vida, está perdido. Pois este é o paradoxo essencial a toda empreitada arqueológica: posto que há de se buscar não apenas os artefatos, fragmentos e indícios, mas também um sentido para todas essas coisas, não é nunca possível saber ao certo o que é que se encontra e o que é que se inventa nessas escavações. Por isso, todo passado perdido é sempre também um passado perfeito.
III
Ao enviar-me o rascunho de seu livro, ainda sem título, Lucas faz menção à sua antiga problemática: “Dada essa negatividade que permeia o que escrevo sob forma pretensamente poética, me diverte organizar um provável único livro de poesia (embora o futuro a nós pertença) onde o exercício já se apresenta um pouco como causa perdida, tanto formalmente (mero agenciamento de palavras, prosa, rupturas discursivas, etc.) como narrativamente (o que resta a ser ‘encontrado’, no fim das contas?)” Alguns anos depois da grande mudança, encontro Lucas instalado, não apenas no domínio da retrospecção, mas no de um exame distanciado do passado. Pois lhe diverte — diz ele agora, senhor de seus meios — apresentar umprimeiro livro, com todos os excessos cometidos (e tolerados) que lhe são característicos, mas que chega de certa forma “tão tarde”, que está fadado a ser o seu único ou último livro, com todo o distanciamento crítico que lhe é esperado. Espécie de fogo-fátuo literário, este volume ambíguo parece abrir uma carreira, um caminho, uma senda, para tão logo marcá-lo do selo da impossibilidade, do interdito.
Mas nunca erramos da mesma forma e, se erramos, nunca somos exatamente os mesmos quando o fazemos. Eu mesmo já não me engano da mesma maneira sobre Lucas. Esta sua nova negação da poesia não é simplesmente o reflexo de seu apagamento como poeta, mas a afirmação do reencontro do sentido profundo da poesia na sua própria tessitura. Uma profundidade inventada, mas, ainda assim, uma profundidade. Já não basta simplesmente deixar de escrever para fugir dos erros e excessos da poesia, pois segue em nós, apesar de tudo, “essa merda deste cristal, perdido em algum ponto de uma caixa torácica que mais parece uma ameixa seca”. Assim como ao passado, não basta simplesmente negar a palavra poética, é preciso encará-la de frente e perguntar-se: o que resta da poesia? O que resta da cidade? O que resta da juventude? Ao assumir a aparente contradição que consiste em publicar seu primeiro livro “tarde demais”, Lucas resolve também, de um só golpe, sua antiga equação produtiva: se antes, como poeta promissor em Paris, passava a maior parte do seu tempo ocupando-se com traduções, agora, estabelecido em Brasília como tradutor oficial e poeta clandestino, pode dedicar umas quantas horas de seus dias áridos à invenção de seu passado perfeito.
“So it’s not fiction? – no, it’s a good book?, me dizia com seus olhos exclamativos e felizes.” Não, o novo erro de Lucas não é apenas uma ficção, é um acerto de contas pessoal com a poesia.