Entrevista com o antropólogo e poeta Pedro de Niemeyer Cesarino, em colaboração com Isabella Rjeille, parte da publicação coletiva realizada no programa Máquina de Escrever, de Capacete Entretenimentos, sob a coordenação de Amilcar Packer e Manuela Moscoso. Outros textos e entrevistas por Aleta Valente (RJ), Douglas de Freitas (SP), Emile Ouroumov (Bulgária/França), Ericka Florez (Colômbia), Fabio Zucker (SP), Isabella Rjeille (SP), Renan Araujo (Ribeirão Preto, SP), Stefanie Hessler (Alemanha/Suécia).
Fonte > Publicação Máquina de Escrever, 2013
"O
Ocidente acredita ser o centro
do universo e quer prová-lo."
Daniel
Buren, As imagens roubadas,
no catálogo de "Magiciens de la Terre",
1989.
Em
março de 2013, o etnógrafo e poeta Pedro Cesarino encerrou sua participação no
programa Máquina de Escrever devolvendo aos participantes a questão que havia
orientado seu itinerário: como pensar uma estética ou uma poética não
ocidentais? Ao longo daquele dia, fomos habilmente conduzidos pela história
do desenvolvimento da antropologia europeia e norte-americana, da metade do
século XIX ao início do século XXI. E retraçamos, assim, entre suas diversas
formas de revoluções e museificações, o nascimento da etnografia contemporânea
e de suas muitas aproximações com o domínio das artes plásticas.
A entrevista que segue abaixo não pretende avançar na direção de uma resposta possível à questão colocada por Pedro. Trata-se, antes, de dar um passo atrás, a fim de propor uma reflexão sobre sua própria formulação. Por isso, além da revisão da história mais ou menos recente da antropologia e das artes plásticas, pareceu-nos necessário proceder, num caso como no outro, a uma análise cuidadosa das condições e pressupostos de tais discursos. É, portanto, a questão de suas instituições que estará aqui em jogo, em um de seus cruzamentos recentes mais controversos, na figura do “curador etnógrafo”. Conjugando com sucesso o status do “curador-autor” com o formato das exposições “globais” (e não mais universais ou internacionais), o curador etnógrafo desponta no fim dos anos 1980 como o responsável pelo mapeamento e pela apresentação ao público da produção artística dos confins do planeta. Ainda que suas raízes remontem, de fato, às exposições universais e às expedições etnográficas do início do século XIX, tal tendência etnográfica aparece com uma clareza renovada no horizonte da curadoria internacional, na forma de duas exposições-chave que fizeram época. São elas: “Primitivism in the 20th Century: Affinities of the Tribal and the Modern” e “Magiciens de la Terre”, organizadas, respectivamente, por William Rubin e Kirk Varnedoe no MoMA de Nova Iorque, em 1984, e por Jean-Hubert Martin no Centre Pompidou e na Grande Halle de la Villette, em 1989.
O curador etnógrafo: mero joguete ideológico de um Ocidente em busca de novos mercados culturais ou, ao contrário, a emergência de uma real afinidade entre duas práticas com um fundo simbólico comum? A fim de reencontrar a vitalidade dessa questão, pareceu-nos oportuno resgatar, num primeiro momento, a figura do crítico e historiador da arte Hal Foster – um dos primeiros a apontar, no calor dos anos 1990, para um “paradigma quase antropológico” da arte contemporânea(1). O que não significa encerrar o debate em um período ou contexto absolutamente delimitados. É precisamente a busca por possíveis origens e sobrevivênciasdo dito paradigma, tanto no contexto brasileiro quanto no internacional, que nos guiará em um segundo momento. Afinal, nenhuma época é uma ilha. À procura dessa contemporaneidade algo anacrônica de que se fala tanto hoje em dia, nos pareceu importante aplicar, a outras referências teóricas que dão contorno a esta entrevista, o que o próprio Foster dizia buscar em sua época – a saber, um discurso crítico que, “em vez de falar de um ponto de vista acadêmico ‘pós-colonial’, possa tomar sua própria condição de possibilidade colonialista como objeto”(2). Para que, assim, numa inversão abertamente foucaultiana da questão, pudéssemos nos perguntar não tanto pela suposta identidade de seus objetos (o Outro, a Arte etc.), mas pela de seus narradores e sujeitos dessas mesmas disciplinas. Quem fala por quem? E como? Um etnógrafo por um nativo? Um curador por um artista? Um com o outro? Aqui como ali, é a questão da representação (sempre política) que se coloca uma vez mais.
O curador como etnógrafo
Daniel Ao fim de sua fala, você apontou “Magiciens de la Terre” como um exemplo notável na busca dessa intersecção possível entre a etnografia e as artes plásticas. Duas leituras concorrentes polarizam ainda hoje grande parte dos comentários feito à megaexposição de J.-H. Martin: enquanto, para uns, trata-se de uma manifestação evidente de uma nova forma de dominação cultural – a globalização da cultura ocidental –, para outros ela é lembrada como uma precursora do modelo das exposições de arte “globais” dos anos 1990, cujo objetivo era abrir o circuito da arte a artistas fora do eixo Europa-América do Norte. Como dar conta de que certas decisões curatoriais, perfeitamente criticáveis em termos etnográficos, possam ainda hoje ser celebradas como gestos inovadores numa perspectiva da história (institucional) da arte? Seria o caso de falar de um certo atraso do mundo da arte em relação à pesquisa etnográfica que lhe era contemporânea (anos 1980-90)?
Pedro Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o que se entende (ou ao menos o que eu entendo) por etnografia. Para alguns antropólogos, ela não é pensada e executada exatamente como uma descrição objetiva de algum contexto social, nem como uma prospecção de dados empíricos para a comprovação de teorias gerais. A etnografia é uma forma de invenção controlada, por exemplo, das condições possíveis do pensamento de povos não ocidentais (mas não apenas). Um pensamento Yanomami ou Marubo não é, no entanto, algo que exista por si mesmo ou que seja formulado nesses termos pelos próprios nativos. Ele é algo certamente real, mas surgido de um ato de invenção conceitual que o etnógrafo faz com os seus interlocutores (e não a despeito deles ou sobre eles). Busca-se assim criar teorias etnográficas, isto é, levantar e levar a sério os pressupostos através dos quais um Yanomami ou um Marubo pode pensar questões relacionadas à morte, ao corpo, à política etc. Esses pressupostos não são os mesmos que os nossos, nem tampouco redutíveis às imagens do outro que o Ocidente criou ao longo de sua trajetória (a imagem do arcaico ou do primitivo talvez seja aí a mais emblemática). Por conta disso, eles precisam ser estudados até que se encontre uma formulação compreensível para os leitores de antropologia. Algo análogo a um processo de invenção tradutória, de mediação conceitual. É claro que essa invenção parte de uma necessidade do antropólogo, e não, a princípio, dos Marubo ou dos Yanomami, pois é ele que precisa multiplicar possíveis noções de corpo, de política ou do que for, a fim de complexificar e questionar o seu próprio campo de conhecimento. Esse tipo de trabalho etnográfico é muito difícil de ser realizado; são poucas as etnografias que realmente conseguem exprimir os contornos de um regime alheio de pensamento e de expressão criativa. Quando ele de fato acontece, a etnografia se torna capaz de perturbar o nosso regime de conhecimento (de lançar uma perspectiva diferente sobre ele, como dizia Peter Gow) de maneira muito radical. Esse tipo de concepção da etnografia não parecia estar por trás de exposições como a “Magiciens...” ou ainda a “Primitivism...”. E isso por uma razão aparentemente simples: elas são a expressão de um anseio unilateral, o da universalidade da criação humana e da arte. Não sei dizer (ou não posso saber a priori) se esse também é o anseio dos Yanomami ao elaborar adornos corporais e grafismos.
O bom antropólogo (ou, a rigor, aquele que compreende a antropologia da maneira como a estou desenhando aqui, pois há outros que seguem preocupações diferentes) nunca poderá deixar de ser parcial. Ainda assim, ele deverá ter consciência de sua parcialidade. É apenas a partir dessa consciência que surge a possibilidade de uma invenção tradutória. Muito do que estou dizendo já se pensava e se fazia nos anos 1980 e 1990: tome-se o exemplo de The Gender of the Gift, livro de uma das antropólogas contemporâneas mais instigantes, Marilyn Strathern, que foi publicado em 1988. Respondendo ainda à sua primeira pergunta, é provável que o diálogo entre curadores, críticos de arte e antropólogos não tenha se estabelecido a partir de tais critérios no período em questão: um descompasso mais do que um atraso, talvez. Veja bem: esses critérios não são exatamente os mesmos de uma consciência crítica pós-colonial, já que não impedem ou desvalidam a produção do conhecimento etnográfico, mas apenas a deslocam para outro eixo. Em que medida esse eixo encaixa com a expectativa de um curador interessado em arte, capaz de produzir um discurso e uma narrativa sobre a arte universal? O que efetivamente são essas artes dos outros? Quem as categoriza dessa forma e por quê? Essas perguntas vão além de um questionamento (legítimo) da autoridade de produção do discurso, pois elas deixam em aberto o espaço para a reflexão sobre o que, afinal de contas, um marubo ou um Yanomami quer, pensa e faz com um corpo ou com uma imagem, como se dá o problema da materialidade, do invisível...
Daniel Essa expressão que você acaba de utilizar, a invenção tradutória, me remete à noção radical de transcriação cunhada pelos irmãos Campos, os quais diziam que a “traição” operada por toda tradução (traduttori traditori) não é uma forma de deturpação, mas a sua possibilidade mesma. O etnógrafo que deseja se confrontar à “escritura” alheia, seja ela falada, cantada ou escrita, tem necessariamente de assumir a sua parte de criador?
P Eu usei a expressão “invenção tradutória” em um sentido genérico. Seria necessário pensar com mais cuidado até que ponto essa invenção é uma transcriação, uma transposição, uma recriação, entre outras noções possíveis de tradução, tais como as desenvolvidas pelos irmãos Campos. De toda forma, e ainda no que se refere ao registro geral do trabalho etnográfico, há aproximações e afastamentos com relação às teorias e práticas da tradução realizadas na literatura. O problema tem uma trajetória dentro da história da antropologia que eu não pretendo recuperar inteiramente aqui. Mas eu poderia dizer, em primeiro lugar, que certa forma de concepção da etnografia envolve, sim, evidentemente, um ato tradutório, já que ela realiza, digamos, uma transposição de um código semiótico para outro. E essa transposição necessariamente envolve o etnógrafo em um processo criativo, na medida em que ele precisa acoplar outro regime de pensamento e de expressão no interior do seu, pautado por certa lógica gramatical, por certo regime enunciativo, por certo escopo conceitual, por outras redes de circulação etc. Esse acoplamento pode ser feito de maneira mais ou menos inventiva pelo etnógrafo; ele pode subverter ou transformar o código-alvo de maneira mais ou menos interessante a partir das informações provenientes do código de origem. Isso vai depender da inclinação, dos propósitos teóricos, da habilidade do etnógrafo, mas, sobretudo, da qualidade de sua interlocução com as pessoas com as quais ele trabalha. Afinal, como diz o poeta Kenneth Rexroth, tradução é uma forma de amizade. Essa amizade (e suas consequências para o trabalho de tradução) tem graus variáveis de intensidade. No limite, poderíamos dizer que o processo de tradução é um processo de transformação e que a etnografia trata, a rigor, disso. Ela deve, não por acaso, saber refletir sobre a maneira pela qual os outros traduzem e transformam o etnógrafo (ou se transformam a partir da convivência com esse estrangeiro). Isso termina por se refletir na própria qualidade e densidade do texto que se produz a partir de determinada experiência: trata-se de algo mais importante, talvez, do que o domínio técnico de outra língua – que é, no entanto, também fundamental. Talvez aí possa ser possível enxergar um afastamento com relação à preocupação literária, na qual não há, ao menos de imediato, essa transformação que se torna possível a partir da interação de longo prazo com pessoas e suas formas de pensar. E há também outro afastamento: o etnógrafo não deve tomar o fato literário como algo dado ou naturalizado (assim como também não poderia tomar o estético ou o político); ele não vai se relacionar exatamente com um texto interessante do ponto de vista poético, que, para o intelectual urbano, mereceria um trabalho de transcriação. Ele deve perguntar se, afinal de contas, tal categoria (um texto literário) é pertinente para as pessoas com as quais convive; se “texto”, “poema” (mas também, em outro registro, “objeto”, “artefato”) são categorias relevantes para aquele regime expressivo que está sendo estudado. Caso não o sejam, o etnógrafo deverá tentar descobrir a constelação na qual tais formas expressivas fazem sentido – seu trabalho de tradução deverá ser feito, portanto, a partir de uma reflexão sobre essa constelação ou configuração, e não a partir do recorte arbitrário dessa ou daquela categoria ou unidade estética.
Daniel De volta ao registro da curadoria, me pergunto se sua menção à “Magiciens...” não era da ordem de um sintoma – no sentido em que um erro manifesto pode, às vezes, ser mais revelador do que uma análise correta, porém discreta. Exemplos não faltam em disciplinas especulativas como a antropologia, a filosofia ou ainda a psicanálise Seguindo essa analogia, qual ou quais aspectos dessas exposições “etnográficas” lhe parecem especialmente sintomáticos desse cruzamento falho? E sintomáticos de quê?
P Creio que os curadores não tinham (e talvez ainda não tenham) condições para produzir tal reflexão, não exatamente por falta de informação (afinal, para além das etnografias, há sobretudo os interlocutores ou atores para serem questionados), mas por conta de uma orientação distinta de intenções. Isso é sintomático: as instituições ocidentais ou ocidentalizadas sempre tendem a achar que essa interlocução pode ser contornada, enviesada para um determinado objetivo (a exposição de arte) ou simplesmente ignorada. Os movimentos em direção às artes dos outros podem até ser percebidos como inovadores para os ocidentais e suas instituições, mas essas inovações sempre serão limitadas enquanto não forem capazes de se estender à originalidade conceitual de outrem. Para essa originalidade, a arte, tal como imaginada por nós, pode simplesmente não existir ou não ser um problema. Como isso nos levaria a repensar as nossas formas de expressão criadora? A pergunta é fácil de ser feita, mas difícil de ser desenvolvida. É por isso que essas exposições podem ser vistas como um “productive misunderstanding”, como dizia o antropólogo Marshall Sahlins. Elas revelam mais sobre uma certa incompreensão ou um certo “equívoco tradutório” (dessa vez no sentido de Eduardo Viveiros de Castro) derivado da tentativa de encontro entre distintas culturas do que de uma interação efetiva entre distintos regimes de pensamento e de criatividade.
Isabella Esses “movimentos em direção às artes dos outros” de que você fala, feitos por artistas e curadores desde “Primitivism...”, possuem uma raiz evidentemente moderna. Uma das questões levantadas por Foster no texto “The ‘Primitive’ Unconscious of Modern Art” (1985) sobre essa exposição é saber o que está em jogo quando procuramos entender a arte moderna do ponto de vista “tribal” (termo usado pelo próprio autor) e o que acontece, inversamente, quando os valores “tribais” são lidos através de valores modernos (como forma, originalidade, experiência estética, por exemplo). Podemos tomar essa dupla questão como um ponto de análise dessa operação em que se busca no outro intuições a questões pertinentes a nossa própria cultura?
P É ingênuo achar que alguém pode se ver livre das questões referentes à sua própria cultura. Elas estão enraizadas em nossa própria estrutura de linguagem, em nossa experiência e subjetividade. Os povos indígenas também, ao seu modo, buscam nos brancos as suas questões; todo povo e toda cultura busca questões para além de suas fronteiras. A rigor, se existe alguma definição possível de cultura, esta seria a de fronteira, de limite, de vizinhança e de conexão. Ocorre que as apropriações e invenções do outro pelas artes ocidentais se estabelecem em uma configuração política singular, que é a de sua hegemonia econômica e simbólica sobre os outros povos. Elas se estabelecem em uma configuração que tende a borrar os limites e vizinhanças e a introduzir uma planificação, um alinhamento homogêneo que, de alguma forma, está relacionado à sua vinculação a uma lógica de Estado e de Império. Os valores são sempre lidos por meio de outros valores, mas o que acontece quando essa leitura é feita pela compulsão de totalização, pela projeção de seus modelos sobre outrem, pela proliferação das mesmas categorias por todas as suas províncias? Saímos das conexões entre vizinhanças e entramos em outro domínio de poder. É claro que a originalidade de outrem tende a desaparecer ou a se distorcer nesse processo, pois ele se dá justamente contra a proliferação de alteridades, mesmo quando tenta supostamente falar em nome delas. O que certa antropologia tenta fazer é minar esses impulsos de totalização e proliferar outras conexões imaginativas, à maneira das tensões estabelecidas entre configurações molares e moleculares pensadas por Deleuze e Guattari. Como relacionar tal procedimento com contextos altamente expostos às políticas de Estado, como os museus e as grandes exposições? O curador acaba tendo que operar por alguma categoria totalizadora, até porque ele precisa responder aos agentes institucionais que tornam o seu trabalho possível.
Isabella Considerando esse caráter totalizante da instituição da arte, Foster afirma que a tentativa de aproximação entre diferentes culturas por meio de afinidades identificadas, sejam elas formais ou não, feitas por um curador ou museu, tem como efeito inevitável a atenuação de seus indícios de alteridade – transformando o outro em um momento de sua própria história, e o que pode ser visto como transgressão, em continuidade. Você não acha que essa afirmação aponta para uma problematização de certa pesquisa curatorial que se apropria de metodologias etnográficas cujas bases têm claramente essa raiz moderna à qual me referi na pergunta anterior?
P A busca pelo outro, como bem nota Foster no texto a que você se refere, continua sendo uma obsessão e uma necessidade do Ocidente: se os projetos modernistas concebiam o outro através de toda aquela proliferação de dicotomias (racional, irracional; primitivo, moderno; mítico, científico etc.), a pós-modernidade tende a oferecer um horizonte estilhaçado, uma multiplicação de alteridades, na qual a cultura ocidental é mais uma entre outras (ainda que seja a hegemônica). Isso não quer dizer, porém, que a cultura ocidental tenha por isso se tornado capaz de compreender ou de se conectar com outros regimes ontológicos, ou que ela tenha deixado de estender formas de homogeneização como aquelas pressupostas por categorias como primitivo, tribal e suas associações. Foster, por exemplo, nota que a etnologia e a psicanálise passam a ocupar um lugar privilegiado no panorama pós-moderno por serem responsáveis por refletir sobre o irracional, ao qual inevitavelmente tenderia a dissolução da episteme moderna. Mas quem disse que o problema dos Bororo é o da irracionalidade? Existe de fato uma “tribo” ou um “povo primitivo”, a ser investigado por etnólogos, que viva em meio à irracionalidade? Qualquer etnólogo iniciante sabe que esse tipo de pressuposto não deve ser adotado ao se estudar o povo X ou Y, simplesmente porque não é o pressuposto do povo que ele deve estudar, mas algo criado no interior dos dilemas metafísicos do Ocidente. Ainda que aponte para um papel importante da alteridade para a reavaliação do Ocidente, Foster não chega a mostrar exatamente como isso poderia acontecer. Para que a diferença não seja atenuada ou manipulada, é preciso que se conheça, como diz Eduardo Viveiros de Castro, a “autonomia ontológica do outro”, ou seja, é preciso trazer para o diálogo as configurações de realidade e as formas de pensamento de outras sociedades que, de certo modo, ainda não foram convidadas para participar como reais interlocutoras das discussões travadas no mundo da arte. Como se daria essa interlocução? Provavelmente também a partir dos termos e dos dilemas dessas outras sociedades, e não apenas dos da arte ou do pensamento ocidental mundializado. Para isso, certa antropologia poderá ter um papel importante ao refletir sobre os equívocos, impasses e transformações derivados da multiplicidade ontológica.
Daniel Uma imagem descreve particularmente bem a atitude totalizante das bienais globais de que falávamos: aquela do escritor e ministro da cultura francês André Malraux, literalmente jogando cartas com a história da arte em seu escritório. A imagem fala por si só, creio, quanto à importância do registro fotográfico na construção desse impulso museológico megalômano próprio à modernidade europeia.
Há, aqui, um evidente efeito de homogeneização das diferenças e especificidades locais, em que quadros, esculturas, cerâmicas, moedas, mas também vitrais e afrescos, tornam-se, através do quadro da fotografia, passíveis de uma mesma forma de leitura. Gostaria de saber se a utilização do aparelho fotográfico em expedições etnográficas surtiu esse mesmo efeito – de aceleração de um processo de arquivamento e classificação dos diferentes povos, já em curso no passado por meio do desenho e da gravura – ou se, pelo contrário, o olho mecânico revelou algo de realmente diferente ao antropólogo sentado em seu escritório?
P A inclusão do outro na história da arte ocidental e em suas instituições corresponde, por um lado, à construção de uma grande narrativa sobre a criatividade humana (a humanidade, aliás, é uma categoria inventada pelo próprio Ocidente) e, por outro, à proliferação de dicotomias de tipo primitivo/moderno. Como disse antes, tudo isso se esgarçou e começou a deixar de fazer sentido nas décadas de 1960 e 1970, seja por causa das transformações críticas e epistemológicas da antropologia, seja pela progressiva reivindicação de autonomia pelas minorias, pela eclosão do feminismo, do movimento negro etc. É curioso notar que foi também nesse período que a fotografia de povos indígenas no Brasil, por exemplo, passou por uma transformação importante. Ela deixava de ser utilizada como registro etnográfico (no velho sentido de etnografia), ou seja, como uma forma de documentação, classificação e mensuração, para ser utilizada, em primeiro lugar, como ferramenta política e, em segundo lugar, como expressão artística. A trajetória de Claudia Andujar é um exemplo disso, ao somar o uso da fotografia no fotojornalismo crítico e engajado com a sua exploração criativa (não menos engajada, mas também poética) entre os Yanomami. Com isso, ficam para trás duas formas de uso da fotografia que, no Brasil ao menos, foram marcantes até os anos 1970. Em primeiro lugar, aquela fotografia científico-policial a que me referi, utilizada não só por Marc Ferrez, Thiesson e Huebner, mas também por antropólogos como Koch-Grünberg, pelos fotógrafos das expedições do SPI (o extinto Serviço de Proteção aos Índios), entre outros. A própria Claudia Andujar oferece, aliás, um diálogo crítico com essa tradição fotográfica em uma série recentemente exibida, “Marcados para”. O outro aspecto da fotografia que tende a ficar para trás é aquele atrelado à montagem, da edição em cenários ou em situações que já estavam presentes em Frisch, Ferrez e Huebner, mas que se tornam muito eloquentes, por exemplo, na fotografia de Henri Ballot. Por volta dos anos 1950, Ballot registra cenas emblemáticas montadas entre índios do Xingu, Getúlio Vargas, Assis Chateaubriand e os irmãos Villas Boas. Imagens semelhantes de representação do índio edênico xinguano são encontradas também no trabalho de Jean Manzon, que, aliás, era um dos responsáveis pela divulgação das imagens da famosa expedição Roncador-Xingu na influente revista O Cruzeiro. Essa mesma revista trazia ainda uma fotonovela, marcada pela montagem das imagens, sobre o casamento frustrado de uma índia kalapalo com um sertanista – um exemplo eloquente de sujeição da índia pelo homem branco. Desde as primeiras fotografias positivistas, que continuavam a ser realizadas pelo SPI nas primeiras décadas do século XX, até os anos 1960, a imagem dos índios sempre foi marcada pela submissão da imagem dos outros às classificações científicas ou às imagens estereotipadas do primitivo e do selvagem. Trata-se de uma tradição que, a rigor, remonta às primeiras gravuras sobre o Novo Mundo e aos registros de artistas viajantes como Maximilien Wied-Neuwied e Hercules Florence. Mas é também ao longo do século XX que os próprios antropólogos começam a registrar cenas mais intimistas tanto da vida dos povos indígenas quanto de sua interação com eles, como se pode ver nos registros fotográficos da Expedição Lévi-Strauss, nas fotografias de Darcy Ribeiro entre os Kadivéu, no trabalho de Harald Schultz, entre e outros. Em diversos momentos, portanto, o uso da fotografia serviu também para modificar o olhar antropológico, que não se formava apenas no escritório.
Daniel Mas esse uso poético da fotografia influiu de forma direta ou apenas tangencial nas pesquisas que levaram àquela mudança de paradigma nos anos 1960-70 que você assinalou anteriormente?
P Não são muitos os antropólogos que realmente usaram a fotografia como uma linguagem criativa e/ou conceitual em seus trabalhos. Eduardo Viveiros de Castro talvez seja uma exceção, com suas imagens tiradas dos Araweté na década de 1980. Mais recentemente, Carlos Fausto também tem realizado uma produção artística, que aliás se estende para projetos interessantes de cinema feitos em parceria com os Kuikuro (como no caso recente do longa-metragem As hiper mulheres). Mas há outros fotógrafos que souberam criar relações visuais interessantes com os povos indígenas e com outras culturas, como Milton Guran, Miguel Rio Branco, Nair Benedicto, Maureen Bisilliat e a própria Claudia Andujar. Isso tudo, porém, ainda representa o olhar do estrangeiro sobre os povos indígenas. As coisas começaram a mudar apenas recentemente, com a proliferação de oficinas de audiovisual nas aldeias, que tendem a oferecer para os índios a possibilidade de estabelecer o seu próprio uso da imagem.
O etnógrafo como curador
Isabella Em sua pesquisa etnográfica junto aos Marubo, você ofereceu ferramentas de desenho aos índios. Entendo que o desenho em certas tribos ameríndias está relacionado com suas capacidades espirituais e xamânicas, e possui características bem diferentes do desenho realizado em uma folha de papel. Gostaria de saber, portanto, como olhar, ao certo, para essas imagens. Poderiam os procedimentos da “invenção tradutória”, que aparecem na língua verbal, ser aplicados à leitura delas? E qual deve ser o cuidado, por parte do etnógrafo, em não transformar imediatamente esse resultado em uma “obra de arte”, levando-se em consideração as características do papel – uma mídia transportável e facilmente descontextualizável?
Pedro Muitos etnógrafos trabalharam com esse tipo de procedimento – oferecer um material para que as pessoas produzam desenhos, mapas e outras expressões visuais. No caso dos povos ameríndios das terras baixas, o papel é uma tecnologia nova, mas a expressão gráfica e a produção de imagens verbivisuais não são. Eles já possuem um extenso e sofisticado repertório de padrões gráficos (atualizados sobretudo nos corpos, mas também na cerâmica, na cestaria etc.), além de artes da palavra que são pensadas por meio de imagens mentais, de cenas e de sequências narrativas. Os padrões gráficos costumam ser produzidos pelas mulheres; as imagens mentais, de tendência figurativa e pictográfica, são, por sua vez, em geral um atributo dos homens (é assim entre os Marubo e outros povos). Na minha pesquisa, as mulheres realizaram transposições de tais padrões para o papel; os homens, por sua vez, criaram uma expressão visual nova, ao traduzir para fórmulas visuais os mesmos esquemas formulares verbais com os quais memorizam e compõem os seus cantos. No caso do primeiro repertório (o feminino), a ideia era sobretudo identificar o repertório de padrões, e o papel não se mostrou o melhor suporte para o desenvolvimento de uma técnica que é feita para corpos tridimensionais (e que é responsável, aliás, por produzir, delimitar e evidenciar um corpo humano). No segundo caso, o papel era um elemento novo para uma solução visual que antes não existia ou que não havia se revelado a partir de um suporte visível. Por isso tais desenhos se mostraram interessantes. Em poucas palavras, os cantadores (xamãs em sua maioria) atualizaram um repertório prévio de imagens mentais para uma solução gráfica nova, mas bastante parecida com outras tradições pictográficas ameríndias mais consolidadas. Isso implica, portanto, um processo de invenção e de tradução dos Marubo, mediado pela minha interferência. Se há algo de xamanístico nisso, é precisamente esse ato de invenção e de montagem de elementos prévios em novos conjuntos, e não exatamente alguma essência espiritual. O xamanismo é também uma tecnologia de montagem e desmontagem de fluxos verbais e de suas imagens associadas, que possuem, em determinados contextos, uma agentividade ritual. Os desenhos, vale dizer, não possuíam naquele momento alguma grande importância para os Marubo: eram considerados como algo produzido para mim e de pouca relevância estética, ritual e intelectual. De meu ponto de vista (e dos antropólogos), porém, a coisa se mostrou bastante importante. Aí está um bom exemplo de diferença de expectativas. Eu posso eventualmente publicar ou exibir esses desenhos, que serão porventura recebidos como uma “coleção etnográfica”, como “documentos” ou como “obras de arte” de acordo com este ou aquele enfoque curatorial, com esta ou aquela instituição etc. Essa não será, no entanto, necessariamente a expectativa dos Marubo, que não produziram tais coisas com a intenção de uma produção artística autoral (algo comum em outros tantos casos ameríndios). Nada impede, porém, que posteriormente esse material seja reconhecido como tal pelos mesmos desenhistas ou por outras pessoas, já que eles não possuem uma natureza intrínseca ou fixa, pois são produtos de uma interação, manifestações dos diversos níveis de uma configuração relacional (na qual estão envolvidas as artes da memória Marubo, a interface entre escrita e artes da palavra, entre pesquisa acadêmica e invenção criativa). A questão é ter algum controle ou forma de direcionamento desse processo.
Isabella Podemos considerar, então, uma situação comum às artes e à etnografia, na qual especialistas, diante de um conjunto de objetos, sujeitos e contextos específicos, procuram criar um campo de interlocução entre eles – preservando suas autonomias e diferenças – ao apresentá-los ou traduzi-los. Esse modo de operar aparece de forma evidente na pesquisa da autora e curadora sueca Maria Lind, na qual se propõe o termo “curatorial”(3) para referir-se a aspectos da curadoria que poderiam transbordar, alargar ou mesmo se afastar da noção de uma prática estritamente ligada à realização de exposições. Lind entende o curatorial como algo que poderia se aproximar de uma metodologia, reservada não somente aos curadores, mas passível de ser usada em outras práticas. A partir dessa sugestão, de que maneira você vê o etnógrafo atuando de forma curatorial?
P Não sou nenhum especialista em curadoria, mas essa concepção se aproxima em alguns aspectos de minha visão da antropologia (que, em certo sentido, como eu disse acima, é a mesma coisa que etnografia). De fato, uma curadoria que não se preocupe necessariamente com produtos (exposições, catálogos) e com objetos (obras de arte), mas mais com processos e conexões, me parece bastante interessante para pensar a própria antropologia contemporânea (sobrecarregada, no entanto, com o produtivismo acadêmico e sua exigência de proliferação de produtos como artigos, livros, comunicações em congressos etc.). Em outros termos, eu gostaria de levar essa noção de curadoria para mais além, na direção de uma possível dissolução do objeto, do espaço expositivo (ou, a rigor, do foco em tais reificações e suas produções de valor, em detrimento das pessoas), a favor dos modos de transformação e de conexão entre pessoas e modos de criatividade. É claro que esse processo pode e deve ser feito através de mediadores materiais, pois eles são também outras pessoas ou agentes sociais, como diriam Bruno Latour e Alfred Gell. Aliás, a antropologia também tem os seus desafios relacionados aos canais engessados de produção de conhecimento nos quais se afunilou: o estilo de redação do paper acadêmico, que é uma violência à arte do ensaio, e a proliferação massiva de congressos e seminários. Ora, ambas as formas costumam ser desconfortáveis para a maneira de se expressar, por exemplo, de um pajé Marubo ou Yanomami. Elas representam uma certa imposição corporal e institucional para os povos indígenas atuais que começam a entrar em contato com universidades. Guardadas as devidas diferenças, teríamos então dois problemas análogos: como pensar novos circuitos de “objetidade” (melhor em inglês, objecthood), mas também de temporalidade e de espacialidade; e como pensar em ambientes intelectuais generosos o suficiente para receber outras maneiras de lidar com aperformance verbal e o corpo? Essas me parecem ser questões pertinentes, enfim, para uma forma de curadoria e de antropologia que pretenda dar conta de agentes, intelectuais e criadores que se movimentam em outras configurações expressivas..
Daniel Acho que vale a pena aprofundar essa diferença que você assinala entre pensar em termos puramente expositivos ou em formas expressivas mais híbridas. Pois, se é certo que questões como as de seleção, montagem e apresentação podem receber um tratamento adequado fora do cubo branco, é também claro haver uma importante diferença aí – ao menos no que tange à sua recepção por parte do público. Suponho que essa deve ter lhe aparecido com alguma clareza quando, para além de sua prática como pesquisador e poeta, você decidiu adaptar uma tradução sua do poema Kaná kawã, da mitologia Marubo, para uma peça de teatro, intitulada Raptada pelo raio. Gostaria de saber em que medida, para você, pareceria pertinente hoje um convite para curar uma exposição que lidasse com esses “pressupostos de uma grande exposição de arte” que você menciona.
P Esse trabalho com o teatro não foi exatamente uma adaptação de um texto ameríndio para a dramaturgia. Ele foi, a rigor, um duplo processo de recriação tradutória: em primeiro lugar, relativo à transposição do canto Marubo Kaná kawã (cantado por Armando Mariano Marubo) para a escrita, para uma forma de tradução literária, que eu já havia publicado em meu trabalho acadêmico. Em seguida, eu tratei de transformar essa tradução em um texto dramatúrgico, algo que foi feito a partir de uma recriação completa do original, da invenção de outro mundo possível no qual a trama acontecia, da criação de certa densidade dramática para os personagens, de seus contornos líricos, das formas de ação, enfim, dos aspectos essenciais para a construção de uma peça de teatro. A única coisa que sobrou do original foi um certo ritmo encantatório e o esqueleto narrativo, que aliás é compartilhado por outras mitologias do mundo. No final, o trabalho foi também feito em parceria com a Cia. Livre, de modo que pode ser compreendido como fruto de um processo colaborativo, essa forma de trabalho que tem sido pensada e praticada pelo teatro brasileiro contemporâneo. Mas o objetivo era, digamos, bastante clássico: produzir um espetáculo para o público, com material impresso, com recepção pela crítica, com possibilidade de premiação, enfim, todo o pacote do produto artístico, análogo aos outros pacotes realizados no mundo dos cubos brancos. Confesso que, por um lado, essa expectativa do produto me incomoda, ainda que seja uma das invenções principais do tal do Ocidente com a qual eu tenho que lidar, com mais ou menos prazer. Essas invenções possuem seus encantos, ou melhor, a sua tradição e o seu potencial de transformação, que não podem ser menosprezados, mas também criam afunilamentos nas possibilidades de exploração das conexões imaginativas que podem surgir do encontro entre um intelectual, criadores paulistanos e um pajé Marubo, por exemplo. No final das contas, não sei se uma peça de teatro (com aquelas expectativas do produto) é o melhor lugar para explorar tais conexões, ainda que seja um lugar possível e que ofereça soluções muitas vezes instigantes (como no caso de nosso trabalho com a Cia Livre e de outro mais recente, o espetáculo Recusa, da Cia. Balagan, de São Paulo). Eu provavelmente tentaria outra coisa hoje, tentaria algo que escapasse das expectativas que uma peça de teatro (e uma exposição) costuma gerar: aqueles relacionados aos pressupostos da grande arte, com o seu juízo estético discriminatório, com o acolhimento dos críticos, com a circulação na mídia etc. Tentaria, em suma, pensar em algo que desarticulasse, desarmasse ou produzisse uma alternativa a tais expectativas; que fosse talvez um antiproduto, um registro de algum encontro efêmero, de alguma forma de transformação. E isso a despeito da solução, mídia ou área em questão (teatro ou artes visuais). Não sei até que ponto a proposta funcionaria, até que ponto não seria um déjà-vu de outras tantas desarticulações que se proliferaram desde os anos 1960, mas provavelmente seria necessária para pensar as tais das conexões entre mundos possíveis de que tratamos, bem como a acomodação dos quase-sujeitos, dos mediadores extra-humanos que costumamos chamar de objetos ou obras de arte.
Daniel Ainda que produtiva, essa ideia expandida de curadoria me parece ser ainda dependente daquela antiga identificação estética que liga a arte a um certo valor de liberdade. Uma idealização análoga da prática artística é apontada, ainda por Foster em The Artist as Ethnographer?, na figura de uma suposta “inveja do artista” por parte dos antropólogos de sua época (o estudo de Clifford de 1988 Sobre o surrealismo etnográfico é citado nominalmente). Tal imagem do artista, concebido como um ser livre, autorreflexivo e sensível à diferença como poucos, diz ele, não seria nada mais que uma projeção do eu ideal do antropólogo aspirante a “colagista, semiólogo, vanguardista”. Voltando à questão que abre esta entrevista, me pergunto agora por que as artes plásticas – seja pelo viés da prática do artista ou do curador – deveriam ser esse lugar privilegiado do pensamento de uma “poética não ocidental”. Não seria essa suposição a mais enraizada idealização da arte e, no fundo, uma forma de se furtar ao problema de seu próprio contexto e instituição?
P É preciso problematizar essa posição supostamente ocupada pelas artes plásticas no Ocidente, já que a categoria “arte” e a ideia de uma subjetividade criadora não são universais, como queria a Magiciens de la Terre. Isso é algo derivado, sobretudo, de um equívoco de tradução ontológica e de projeção irrefletida. Os ocidentais sempre acham que as suas formas de generalização são capazes de abarcar a totalidade da experiência humana. Muitas vezes acabam impondo isso, mas em prejuízo do que há de interessante e original em outros regimes de imaginação criadora. Essa forma de ocultamento das próprias condições de discurso não é, aliás, um problema só das artes, mas de todas as projeções totalizadoras do Ocidente (como as geradas pelo conhecimento científico, por exemplo). Agora, nada impede que a tal da “arte” (mas qual é mesmo a especificidade ou a definição dessa categoria na contemporaneidade?) realize um trabalho de autopercepção discursiva e se torne, em conjunto com outras áreas do conhecimento, efetivamente capaz de se estender às produções alheias de sentido. A primeira tarefa para tal fim seria suspender as suas pretensões à universalidade e os seus mecanismos de particularização (através de categorias tais como primitivo, primeiro, folclórico, popular, indígena, oral, naïf, mágico, fantástico etc.).
Ainda que a crítica de Foster no referido texto seja pertinente – mas voltada especificamente para um certo dilema do sistema artístico e para uma certa antropologia –, ela não é suficiente para descartar o papel que o dito “colagismo” desempenhou para a antropologia e as ciências humanas no século XX. A rigor, me parece equivocado estabelecer um corte radical entre a antropologia (e outras formas de pensamento, em especial aquelas de cunho ensaístico) e a criação artística, como se não houvesse contaminações e partilhas de processos dos dois lados, e partilhas que não são feitas, em muitos casos, apenas por uma vontade ingênua de imitação ou por alguma forma de idealização da arte ou da figura do artista. E isso por diversas razões. Artistas e antropólogos(entre outros intelectuais) são todos criadores não exatamente por se imaginarem como colagistas, mas por identificar os dilemas do contemporâneo e por projetar outros mundos possíveis. Ambos são responsáveis por oferecer as possibilidades de um pensamento ético, e isso se torna especialmente notável nas artes ocidentais de 1960 em diante (ainda que já estivesse presente em outros diversos momentos). Mas vou dar aqui apenas um exemplo de tais contaminações que me parece especialmente pertinente (o próprio Foster resguarda a sua importância naquele outro artigo acima referido por vocês), ainda mais próximo daquele contexto modernista a que se referia James Clifford em seu estudo sobre o surrealismo etnográfico: a contaminação do surrealismo na antropologia de Lévi-Strauss. O autor diz explicitamente que o trabalho de Max Ernst foi fundamental para que ele mesmo entendesse o sentido das Mitológicas, uma das maiores obras de todos os tempos sobre o pensamento narrativo. Ora, Lévi-Strauss mostra ali que os mitos se comportam de maneira muito mais próxima das justaposições e reconfigurações de sentido produzidas pelos surrealistas (mas que não são, a rigor, uma exclusividade deles) do que por alguma outra construção linear. Lévi-Strauss diz que esse comportamento se revelava nas Mitológicas à revelia de suas próprias decisões conscientes, já que os mitos se pensam a si mesmos e que cabe ao antropólogo, portanto, deixar que esse trabalho seja feito ao longo do processo de escrita. Com isso, ele foi responsável por revolucionar a antropologia e por oferecer perspectivas conceituais que até hoje são pertinentes. Sem esse procedimento, descoberto a partir de seu diálogo com Max Ernst, talvez ele não tivesse chegado tão próximo das especificidades intelectuais ameríndias, de uma maneira que poucos etnólogos conseguiram depois chegar. Isso deve servir para mostrar que a crítica de Foster é parcial, justificada, mas insuficiente para compreender como o pensamento ocidental (e em especial a antropologia) de fato se transformou a partir do horizonte de colaboração que então se estabelecia entre intelectuais e artistas – uma forma de colaboração, aliás, que não perde seu sentido por conta de críticas genéricas e superficiais ao modernismo, que certamente tinha as suas vicissitudes mais ou menos datadas (políticas, éticas, estéticas), mas que lançou linhas de ruptura e de transformação ainda hoje presentes e operantes.
Daniel Não é o recurso ao colagismo que me parece criticável, senão a manutenção daquela ideia moderna de vanguardismo – não apenas na etnografia, mas no seio da própria instituição da arte. E isso, notadamente no contexto dos anos 1980-90, que não conheceu outra fronteira que a do gosto do cliente, e onde a tal liberdade do artista de que falava antes se confundia facilmente com um conformismo em relação às tendências do momento. (É o que dizia a Crítica Institucional desde o fim dos anos 60, e mais recentemente também curadoras como Claire Bishop(4)). Me pergunto mesmo se aquele “paradigma quase antropológico” já não seria uma resposta (algo subserviente) dos artistas dos anos 1990 à aparelhagem política e econômica determinada pela influência decisiva do curador etnógrafo da década anterior... É, portanto, a questão da relação de poder entre representado e representante que quero colocar agora no domínio da etnografia: como lidar com a possibilidade de que os nativos reproduzam a imagem que o especialista deles traça e espera? Como se assegurar, em suma, que o etnógrafo não esteja “curando”, por ingenuidade ou interesse, a experiência do Outro?
P Não há como evitar a possibilidade de que os nativos reproduzam as imagens traçadas pelos especialistas, mas é certo que essas imagens se transformarão em outra coisa ao serem reproduzidas ou capturadas por eles. Essa outra coisa em que as imagens e discursos tendem a se transformar depende evidentemente de cada caso, das estratégias intelectuais e criativas de cada sociedade, de seu maior ou menor interesse pelo antropólogo, pelo problema da autoridade, pela circulação de conhecimentos e assim por diante. É comum, por exemplo, que os povos indígenas comecem a falar de sua “cultura” e a pensar em termos de “cultura”. Antes de sua relação com antropólogos, profissionais do terceiro setor etc., eles não sabiam exatamente que tinham uma coisa passível de ser chamada de “cultura”. O termo, que estabelece uma determinada trajetória no conhecimento ocidental, passa a ser incorporado pelos tais dos nativos e a criar uma série de discursos e formas expressivas a ele associadas (muitas vezes relacionadas às ideias de resgate, de proteção, de afirmação identitária, de uma nova configuração de autoridade). Mas ele é incorporado a partir dos pressupostos de pensamento daquela sociedade, e não dos nossos (por exemplo, de nossas instituições de autoria, de direitos sobre conhecimentos, de criação individual), o que gera torções ontológicas e políticas interessantes. Muitos antropólogos têm trabalhado justamente a partir dos dilemas de tradução e de transformação daí derivados, como no caso das produções recentes de Manuela Carneiro da Cunha. Cada vez mais, aliás, o antropólogo tem que negociar com seus interlocutores as condições de produção de seu discurso e de sua pesquisa, que muitas vezes já é feita de forma colaborativa ou através de autorias múltiplas. A experiência do outro sempre é curada pelo antropólogo, no sentido de ser editada, traduzida, reconfigurada, selecionada por um ponto de vista específico. Essa reconfiguração não é necessariamente uma representação do outro, como se o antropólogo fosse o porta-voz dos índios e de outras sociedades. De fato, esse tipo de relação, que foi marcante algumas décadas atrás, cada vez faz menos sentido e se torna menos possível, na medida em que os etnografados se transformam em sujeitos políticos ativos e conscientes de sua autonomia. Aí a relação com o antropólogo necessariamente muda e, também, as formas de autoridade e de poder. Em alguns casos, o antropólogo passa inclusive a ser um prestador de serviços para associações indígenas e para a elaboração de projetos culturais. Além disso, o conhecimento do antropólogo (e de seu mundo) também pode ser traduzido e editado pelo nativo, que é evidentemente capaz de explicar o seu outro a partir de critérios alternativos – o que chamamos de antropologia reversa. Cabe ao antropólogo entender esses critérios, que nem sempre são claros ou acessíveis. Cabe, mais ainda, imaginar uma antropologia que seja sobretudo uma forma de mediação e de conexão, e não de representação do ponto de vista alheio (uma operação intelectual a rigor impossível e eticamente questionável).
Isabella Neste sentido, o que está em jogo é um intrincado sistema de mediações, e já não mais de representações: a questão não é apenas quem escreve as narrativas e discursos, mas como e para quem. Me parece extremamente interessante essa noção de escrever com o outro e não a partir dele, algo que a própria Lind, no trecho citado anteriormente, comenta. Como essa distância, de aproximação ou até mesmo de embate, aparece no trabalho do etnógrafo como curador? E como isso se daria na antropologia reversa? Quem seria o seu público/leitor?
P Esse é um problema importante. Seria necessário pensar um determinado evento expressivo (para empregar uma expressão genérica, na qual “exposição”, “livro” ou “espetáculo teatral” seriam soluções possíveis entre outras tantas) em conjunto com outros agentes e interlocutores, que tivesse capacidade de circular por espaços múltiplos, que lidasse com observadores diferentes e que desse conta de outras formas de antropologia ou de reflexão. Em geral, o que vemos é a adequação da criatividade alheia a mídias e formatos produzidos no Ocidente (o livro, o filme), o que às vezes traz resultados surpreendentes do ponto de vista estético, rítmico, narrativo (tome o exemplo dos diversos filmes produzidos por povos indígenas através do Vídeo nas Aldeias, a coleção Narradores indígenas do rio Negro, produzida pelos povos dessa região, e o livro recente La chute du ciel – Paroles d’un chaman yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert). Ou então o deslocamento de determinados objetos para exposições majoritariamente pensadas pela lógica do intelectual urbano (notável em exposições recentes comoHistoires de voir, da Fondation Cartier, entre outras) e, ainda, o deslocamento de ideias produzidas em torno de tais objetos e pessoas para um debate também circunscrito à intelligentsia urbana (é o caso da exposição Animism, de Anselm Franke). Algumas dessas soluções, vale frisar, podem ser bastante instigantes, como neste último exemplo. Mas há aí uma assimetria fundamental que não foi revertida e que talvez não chegue a ser: as formas alheias de produção de eventos expressivos não contaminam as nossas de maneira efetiva, não circulam para além de seus locais de origem e não entram em um debate mundializado, a não ser quando coisificadas como espetáculos de “cultura” e de “tradição indígena”. Como pensar, por exemplo, em estender um evento xamanístico característico das performances de um xamã Araweté ou Marubo para outros circuitos criativos? Será essa uma operação possível e, mais ainda, desejável? Ora, esses eventos são sobretudo invisíveis, mediados ou veiculados apenas pelo corpo do xamã, que transporta uma configuração posicional de pessoas (mortos, espíritos) através de um regime enunciativo extremamente complexo. Isso é muito mais do que um simples canto: trata-se de uma topologia virtual e de uma tecnologia expressiva adequada para transportá-la. Seriam os artistas ocidentais suficientemente criativos ou intelectualmente obstinados a ponto de conseguir dialogar com essa originalidade, tão contemporânea quanto as instalações sonoras de Janet Cardiff? Estariam as nossas instituições suficientemente maduras para produzir encontros dessa forma? E os Araweté, teriam algum interesse nisso? Salvo engano meu, parece que essas são questões ainda em aberto. Guimarães Rosa produziu uma das mais notáveis contaminações entre mundos em seu conto o “Meu tio o Iauaretê”, um impressionante processo de devir-jaguar. Mas ainda assim tratamos de um conto, publicado em um livro, que pertence a um autor individual e a seus direitos específicos, e por aí vai.
Isabella Concordo que não seja possível escapar dessas contaminações mútuas, e que elas sejam, até certo ponto, desejáveis. Era o que já afirmava a antropofagia, no contexto do modernismo brasileiro, por exemplo, ao distinguir-se da imagem européia do canibalismo. Na antropofagia, uma vez que o inimigo é devorado, o que está em jogo vai muito além de trazer algo do outro para si, mas sim de ocupar esse outro lugar, modificando a origem de sua perspectiva. Dessa maneira, poderíamos pensar o Modernismo brasileiro como altermodernidade, ou seja, uma visão da modernidade a partir de outra perspectiva que já não mais entende a figura do canibal como exótica, mas identifica-se com ela. Retornando, então, à questão que nos foi colocada pela sua fala no Máquina de Escrever, será que já não se trata mais de “pensar” essa poética, mas operar nela ou a partir dela? O que práticas como a antropologia e a etnografia devem aos antropófagos, no que vai de encontro com seu exercício hoje?
P Podemos tomar isso como um exemplo de que o Modernismo é algo tão heterogêneo quanto ainda presente e potente, a despeito de diversas idiossincrasias suas que de fato hoje não fazem mais sentido. Seria possível, enfim, fazer toda uma leitura técnico-crítica etnológica do Manifesto antropófago, capaz de mostrar como isso e aquilo é invenção de Oswald, como não existe um matriarcado primitivo, uma linguagem surrealista, uma idade de ouro etc. Mas Oswald não era um etnólogo, e o seu contexto histórico era outro. Seu modo não linear e caótico de pensar projetava intuições ainda hoje fundamentais, entre as quais essa concepção da antropofagia como um modus operandi, como uma atitude político-cultural, e não como a imagem de um outro primitivo (ainda que ela parta de tal imagem, através de um procedimento que parece contraditório, mas que na realidade desvela a originalidade do pensamento de Oswald, como mostrou Benedito Nunes). Isso de fato permitiria refrasear essa fala que vocês me atribuem: trata-se muito mais de operar pelo outro ou com o outro (seja lá qual for esse outro) do que de pensá-lo a partir de um ponto de vista externo. É isso, aliás, que movimenta a experiência tradutória que discutimos acima.
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A entrevista que segue abaixo não pretende avançar na direção de uma resposta possível à questão colocada por Pedro. Trata-se, antes, de dar um passo atrás, a fim de propor uma reflexão sobre sua própria formulação. Por isso, além da revisão da história mais ou menos recente da antropologia e das artes plásticas, pareceu-nos necessário proceder, num caso como no outro, a uma análise cuidadosa das condições e pressupostos de tais discursos. É, portanto, a questão de suas instituições que estará aqui em jogo, em um de seus cruzamentos recentes mais controversos, na figura do “curador etnógrafo”. Conjugando com sucesso o status do “curador-autor” com o formato das exposições “globais” (e não mais universais ou internacionais), o curador etnógrafo desponta no fim dos anos 1980 como o responsável pelo mapeamento e pela apresentação ao público da produção artística dos confins do planeta. Ainda que suas raízes remontem, de fato, às exposições universais e às expedições etnográficas do início do século XIX, tal tendência etnográfica aparece com uma clareza renovada no horizonte da curadoria internacional, na forma de duas exposições-chave que fizeram época. São elas: “Primitivism in the 20th Century: Affinities of the Tribal and the Modern” e “Magiciens de la Terre”, organizadas, respectivamente, por William Rubin e Kirk Varnedoe no MoMA de Nova Iorque, em 1984, e por Jean-Hubert Martin no Centre Pompidou e na Grande Halle de la Villette, em 1989.
O curador etnógrafo: mero joguete ideológico de um Ocidente em busca de novos mercados culturais ou, ao contrário, a emergência de uma real afinidade entre duas práticas com um fundo simbólico comum? A fim de reencontrar a vitalidade dessa questão, pareceu-nos oportuno resgatar, num primeiro momento, a figura do crítico e historiador da arte Hal Foster – um dos primeiros a apontar, no calor dos anos 1990, para um “paradigma quase antropológico” da arte contemporânea(1). O que não significa encerrar o debate em um período ou contexto absolutamente delimitados. É precisamente a busca por possíveis origens e sobrevivênciasdo dito paradigma, tanto no contexto brasileiro quanto no internacional, que nos guiará em um segundo momento. Afinal, nenhuma época é uma ilha. À procura dessa contemporaneidade algo anacrônica de que se fala tanto hoje em dia, nos pareceu importante aplicar, a outras referências teóricas que dão contorno a esta entrevista, o que o próprio Foster dizia buscar em sua época – a saber, um discurso crítico que, “em vez de falar de um ponto de vista acadêmico ‘pós-colonial’, possa tomar sua própria condição de possibilidade colonialista como objeto”(2). Para que, assim, numa inversão abertamente foucaultiana da questão, pudéssemos nos perguntar não tanto pela suposta identidade de seus objetos (o Outro, a Arte etc.), mas pela de seus narradores e sujeitos dessas mesmas disciplinas. Quem fala por quem? E como? Um etnógrafo por um nativo? Um curador por um artista? Um com o outro? Aqui como ali, é a questão da representação (sempre política) que se coloca uma vez mais.
O curador como etnógrafo
Daniel Ao fim de sua fala, você apontou “Magiciens de la Terre” como um exemplo notável na busca dessa intersecção possível entre a etnografia e as artes plásticas. Duas leituras concorrentes polarizam ainda hoje grande parte dos comentários feito à megaexposição de J.-H. Martin: enquanto, para uns, trata-se de uma manifestação evidente de uma nova forma de dominação cultural – a globalização da cultura ocidental –, para outros ela é lembrada como uma precursora do modelo das exposições de arte “globais” dos anos 1990, cujo objetivo era abrir o circuito da arte a artistas fora do eixo Europa-América do Norte. Como dar conta de que certas decisões curatoriais, perfeitamente criticáveis em termos etnográficos, possam ainda hoje ser celebradas como gestos inovadores numa perspectiva da história (institucional) da arte? Seria o caso de falar de um certo atraso do mundo da arte em relação à pesquisa etnográfica que lhe era contemporânea (anos 1980-90)?
Pedro Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o que se entende (ou ao menos o que eu entendo) por etnografia. Para alguns antropólogos, ela não é pensada e executada exatamente como uma descrição objetiva de algum contexto social, nem como uma prospecção de dados empíricos para a comprovação de teorias gerais. A etnografia é uma forma de invenção controlada, por exemplo, das condições possíveis do pensamento de povos não ocidentais (mas não apenas). Um pensamento Yanomami ou Marubo não é, no entanto, algo que exista por si mesmo ou que seja formulado nesses termos pelos próprios nativos. Ele é algo certamente real, mas surgido de um ato de invenção conceitual que o etnógrafo faz com os seus interlocutores (e não a despeito deles ou sobre eles). Busca-se assim criar teorias etnográficas, isto é, levantar e levar a sério os pressupostos através dos quais um Yanomami ou um Marubo pode pensar questões relacionadas à morte, ao corpo, à política etc. Esses pressupostos não são os mesmos que os nossos, nem tampouco redutíveis às imagens do outro que o Ocidente criou ao longo de sua trajetória (a imagem do arcaico ou do primitivo talvez seja aí a mais emblemática). Por conta disso, eles precisam ser estudados até que se encontre uma formulação compreensível para os leitores de antropologia. Algo análogo a um processo de invenção tradutória, de mediação conceitual. É claro que essa invenção parte de uma necessidade do antropólogo, e não, a princípio, dos Marubo ou dos Yanomami, pois é ele que precisa multiplicar possíveis noções de corpo, de política ou do que for, a fim de complexificar e questionar o seu próprio campo de conhecimento. Esse tipo de trabalho etnográfico é muito difícil de ser realizado; são poucas as etnografias que realmente conseguem exprimir os contornos de um regime alheio de pensamento e de expressão criativa. Quando ele de fato acontece, a etnografia se torna capaz de perturbar o nosso regime de conhecimento (de lançar uma perspectiva diferente sobre ele, como dizia Peter Gow) de maneira muito radical. Esse tipo de concepção da etnografia não parecia estar por trás de exposições como a “Magiciens...” ou ainda a “Primitivism...”. E isso por uma razão aparentemente simples: elas são a expressão de um anseio unilateral, o da universalidade da criação humana e da arte. Não sei dizer (ou não posso saber a priori) se esse também é o anseio dos Yanomami ao elaborar adornos corporais e grafismos.
O bom antropólogo (ou, a rigor, aquele que compreende a antropologia da maneira como a estou desenhando aqui, pois há outros que seguem preocupações diferentes) nunca poderá deixar de ser parcial. Ainda assim, ele deverá ter consciência de sua parcialidade. É apenas a partir dessa consciência que surge a possibilidade de uma invenção tradutória. Muito do que estou dizendo já se pensava e se fazia nos anos 1980 e 1990: tome-se o exemplo de The Gender of the Gift, livro de uma das antropólogas contemporâneas mais instigantes, Marilyn Strathern, que foi publicado em 1988. Respondendo ainda à sua primeira pergunta, é provável que o diálogo entre curadores, críticos de arte e antropólogos não tenha se estabelecido a partir de tais critérios no período em questão: um descompasso mais do que um atraso, talvez. Veja bem: esses critérios não são exatamente os mesmos de uma consciência crítica pós-colonial, já que não impedem ou desvalidam a produção do conhecimento etnográfico, mas apenas a deslocam para outro eixo. Em que medida esse eixo encaixa com a expectativa de um curador interessado em arte, capaz de produzir um discurso e uma narrativa sobre a arte universal? O que efetivamente são essas artes dos outros? Quem as categoriza dessa forma e por quê? Essas perguntas vão além de um questionamento (legítimo) da autoridade de produção do discurso, pois elas deixam em aberto o espaço para a reflexão sobre o que, afinal de contas, um marubo ou um Yanomami quer, pensa e faz com um corpo ou com uma imagem, como se dá o problema da materialidade, do invisível...
Daniel Essa expressão que você acaba de utilizar, a invenção tradutória, me remete à noção radical de transcriação cunhada pelos irmãos Campos, os quais diziam que a “traição” operada por toda tradução (traduttori traditori) não é uma forma de deturpação, mas a sua possibilidade mesma. O etnógrafo que deseja se confrontar à “escritura” alheia, seja ela falada, cantada ou escrita, tem necessariamente de assumir a sua parte de criador?
P Eu usei a expressão “invenção tradutória” em um sentido genérico. Seria necessário pensar com mais cuidado até que ponto essa invenção é uma transcriação, uma transposição, uma recriação, entre outras noções possíveis de tradução, tais como as desenvolvidas pelos irmãos Campos. De toda forma, e ainda no que se refere ao registro geral do trabalho etnográfico, há aproximações e afastamentos com relação às teorias e práticas da tradução realizadas na literatura. O problema tem uma trajetória dentro da história da antropologia que eu não pretendo recuperar inteiramente aqui. Mas eu poderia dizer, em primeiro lugar, que certa forma de concepção da etnografia envolve, sim, evidentemente, um ato tradutório, já que ela realiza, digamos, uma transposição de um código semiótico para outro. E essa transposição necessariamente envolve o etnógrafo em um processo criativo, na medida em que ele precisa acoplar outro regime de pensamento e de expressão no interior do seu, pautado por certa lógica gramatical, por certo regime enunciativo, por certo escopo conceitual, por outras redes de circulação etc. Esse acoplamento pode ser feito de maneira mais ou menos inventiva pelo etnógrafo; ele pode subverter ou transformar o código-alvo de maneira mais ou menos interessante a partir das informações provenientes do código de origem. Isso vai depender da inclinação, dos propósitos teóricos, da habilidade do etnógrafo, mas, sobretudo, da qualidade de sua interlocução com as pessoas com as quais ele trabalha. Afinal, como diz o poeta Kenneth Rexroth, tradução é uma forma de amizade. Essa amizade (e suas consequências para o trabalho de tradução) tem graus variáveis de intensidade. No limite, poderíamos dizer que o processo de tradução é um processo de transformação e que a etnografia trata, a rigor, disso. Ela deve, não por acaso, saber refletir sobre a maneira pela qual os outros traduzem e transformam o etnógrafo (ou se transformam a partir da convivência com esse estrangeiro). Isso termina por se refletir na própria qualidade e densidade do texto que se produz a partir de determinada experiência: trata-se de algo mais importante, talvez, do que o domínio técnico de outra língua – que é, no entanto, também fundamental. Talvez aí possa ser possível enxergar um afastamento com relação à preocupação literária, na qual não há, ao menos de imediato, essa transformação que se torna possível a partir da interação de longo prazo com pessoas e suas formas de pensar. E há também outro afastamento: o etnógrafo não deve tomar o fato literário como algo dado ou naturalizado (assim como também não poderia tomar o estético ou o político); ele não vai se relacionar exatamente com um texto interessante do ponto de vista poético, que, para o intelectual urbano, mereceria um trabalho de transcriação. Ele deve perguntar se, afinal de contas, tal categoria (um texto literário) é pertinente para as pessoas com as quais convive; se “texto”, “poema” (mas também, em outro registro, “objeto”, “artefato”) são categorias relevantes para aquele regime expressivo que está sendo estudado. Caso não o sejam, o etnógrafo deverá tentar descobrir a constelação na qual tais formas expressivas fazem sentido – seu trabalho de tradução deverá ser feito, portanto, a partir de uma reflexão sobre essa constelação ou configuração, e não a partir do recorte arbitrário dessa ou daquela categoria ou unidade estética.
Daniel De volta ao registro da curadoria, me pergunto se sua menção à “Magiciens...” não era da ordem de um sintoma – no sentido em que um erro manifesto pode, às vezes, ser mais revelador do que uma análise correta, porém discreta. Exemplos não faltam em disciplinas especulativas como a antropologia, a filosofia ou ainda a psicanálise Seguindo essa analogia, qual ou quais aspectos dessas exposições “etnográficas” lhe parecem especialmente sintomáticos desse cruzamento falho? E sintomáticos de quê?
P Creio que os curadores não tinham (e talvez ainda não tenham) condições para produzir tal reflexão, não exatamente por falta de informação (afinal, para além das etnografias, há sobretudo os interlocutores ou atores para serem questionados), mas por conta de uma orientação distinta de intenções. Isso é sintomático: as instituições ocidentais ou ocidentalizadas sempre tendem a achar que essa interlocução pode ser contornada, enviesada para um determinado objetivo (a exposição de arte) ou simplesmente ignorada. Os movimentos em direção às artes dos outros podem até ser percebidos como inovadores para os ocidentais e suas instituições, mas essas inovações sempre serão limitadas enquanto não forem capazes de se estender à originalidade conceitual de outrem. Para essa originalidade, a arte, tal como imaginada por nós, pode simplesmente não existir ou não ser um problema. Como isso nos levaria a repensar as nossas formas de expressão criadora? A pergunta é fácil de ser feita, mas difícil de ser desenvolvida. É por isso que essas exposições podem ser vistas como um “productive misunderstanding”, como dizia o antropólogo Marshall Sahlins. Elas revelam mais sobre uma certa incompreensão ou um certo “equívoco tradutório” (dessa vez no sentido de Eduardo Viveiros de Castro) derivado da tentativa de encontro entre distintas culturas do que de uma interação efetiva entre distintos regimes de pensamento e de criatividade.
Isabella Esses “movimentos em direção às artes dos outros” de que você fala, feitos por artistas e curadores desde “Primitivism...”, possuem uma raiz evidentemente moderna. Uma das questões levantadas por Foster no texto “The ‘Primitive’ Unconscious of Modern Art” (1985) sobre essa exposição é saber o que está em jogo quando procuramos entender a arte moderna do ponto de vista “tribal” (termo usado pelo próprio autor) e o que acontece, inversamente, quando os valores “tribais” são lidos através de valores modernos (como forma, originalidade, experiência estética, por exemplo). Podemos tomar essa dupla questão como um ponto de análise dessa operação em que se busca no outro intuições a questões pertinentes a nossa própria cultura?
P É ingênuo achar que alguém pode se ver livre das questões referentes à sua própria cultura. Elas estão enraizadas em nossa própria estrutura de linguagem, em nossa experiência e subjetividade. Os povos indígenas também, ao seu modo, buscam nos brancos as suas questões; todo povo e toda cultura busca questões para além de suas fronteiras. A rigor, se existe alguma definição possível de cultura, esta seria a de fronteira, de limite, de vizinhança e de conexão. Ocorre que as apropriações e invenções do outro pelas artes ocidentais se estabelecem em uma configuração política singular, que é a de sua hegemonia econômica e simbólica sobre os outros povos. Elas se estabelecem em uma configuração que tende a borrar os limites e vizinhanças e a introduzir uma planificação, um alinhamento homogêneo que, de alguma forma, está relacionado à sua vinculação a uma lógica de Estado e de Império. Os valores são sempre lidos por meio de outros valores, mas o que acontece quando essa leitura é feita pela compulsão de totalização, pela projeção de seus modelos sobre outrem, pela proliferação das mesmas categorias por todas as suas províncias? Saímos das conexões entre vizinhanças e entramos em outro domínio de poder. É claro que a originalidade de outrem tende a desaparecer ou a se distorcer nesse processo, pois ele se dá justamente contra a proliferação de alteridades, mesmo quando tenta supostamente falar em nome delas. O que certa antropologia tenta fazer é minar esses impulsos de totalização e proliferar outras conexões imaginativas, à maneira das tensões estabelecidas entre configurações molares e moleculares pensadas por Deleuze e Guattari. Como relacionar tal procedimento com contextos altamente expostos às políticas de Estado, como os museus e as grandes exposições? O curador acaba tendo que operar por alguma categoria totalizadora, até porque ele precisa responder aos agentes institucionais que tornam o seu trabalho possível.
Isabella Considerando esse caráter totalizante da instituição da arte, Foster afirma que a tentativa de aproximação entre diferentes culturas por meio de afinidades identificadas, sejam elas formais ou não, feitas por um curador ou museu, tem como efeito inevitável a atenuação de seus indícios de alteridade – transformando o outro em um momento de sua própria história, e o que pode ser visto como transgressão, em continuidade. Você não acha que essa afirmação aponta para uma problematização de certa pesquisa curatorial que se apropria de metodologias etnográficas cujas bases têm claramente essa raiz moderna à qual me referi na pergunta anterior?
P A busca pelo outro, como bem nota Foster no texto a que você se refere, continua sendo uma obsessão e uma necessidade do Ocidente: se os projetos modernistas concebiam o outro através de toda aquela proliferação de dicotomias (racional, irracional; primitivo, moderno; mítico, científico etc.), a pós-modernidade tende a oferecer um horizonte estilhaçado, uma multiplicação de alteridades, na qual a cultura ocidental é mais uma entre outras (ainda que seja a hegemônica). Isso não quer dizer, porém, que a cultura ocidental tenha por isso se tornado capaz de compreender ou de se conectar com outros regimes ontológicos, ou que ela tenha deixado de estender formas de homogeneização como aquelas pressupostas por categorias como primitivo, tribal e suas associações. Foster, por exemplo, nota que a etnologia e a psicanálise passam a ocupar um lugar privilegiado no panorama pós-moderno por serem responsáveis por refletir sobre o irracional, ao qual inevitavelmente tenderia a dissolução da episteme moderna. Mas quem disse que o problema dos Bororo é o da irracionalidade? Existe de fato uma “tribo” ou um “povo primitivo”, a ser investigado por etnólogos, que viva em meio à irracionalidade? Qualquer etnólogo iniciante sabe que esse tipo de pressuposto não deve ser adotado ao se estudar o povo X ou Y, simplesmente porque não é o pressuposto do povo que ele deve estudar, mas algo criado no interior dos dilemas metafísicos do Ocidente. Ainda que aponte para um papel importante da alteridade para a reavaliação do Ocidente, Foster não chega a mostrar exatamente como isso poderia acontecer. Para que a diferença não seja atenuada ou manipulada, é preciso que se conheça, como diz Eduardo Viveiros de Castro, a “autonomia ontológica do outro”, ou seja, é preciso trazer para o diálogo as configurações de realidade e as formas de pensamento de outras sociedades que, de certo modo, ainda não foram convidadas para participar como reais interlocutoras das discussões travadas no mundo da arte. Como se daria essa interlocução? Provavelmente também a partir dos termos e dos dilemas dessas outras sociedades, e não apenas dos da arte ou do pensamento ocidental mundializado. Para isso, certa antropologia poderá ter um papel importante ao refletir sobre os equívocos, impasses e transformações derivados da multiplicidade ontológica.
Daniel Uma imagem descreve particularmente bem a atitude totalizante das bienais globais de que falávamos: aquela do escritor e ministro da cultura francês André Malraux, literalmente jogando cartas com a história da arte em seu escritório. A imagem fala por si só, creio, quanto à importância do registro fotográfico na construção desse impulso museológico megalômano próprio à modernidade europeia.
Há, aqui, um evidente efeito de homogeneização das diferenças e especificidades locais, em que quadros, esculturas, cerâmicas, moedas, mas também vitrais e afrescos, tornam-se, através do quadro da fotografia, passíveis de uma mesma forma de leitura. Gostaria de saber se a utilização do aparelho fotográfico em expedições etnográficas surtiu esse mesmo efeito – de aceleração de um processo de arquivamento e classificação dos diferentes povos, já em curso no passado por meio do desenho e da gravura – ou se, pelo contrário, o olho mecânico revelou algo de realmente diferente ao antropólogo sentado em seu escritório?
P A inclusão do outro na história da arte ocidental e em suas instituições corresponde, por um lado, à construção de uma grande narrativa sobre a criatividade humana (a humanidade, aliás, é uma categoria inventada pelo próprio Ocidente) e, por outro, à proliferação de dicotomias de tipo primitivo/moderno. Como disse antes, tudo isso se esgarçou e começou a deixar de fazer sentido nas décadas de 1960 e 1970, seja por causa das transformações críticas e epistemológicas da antropologia, seja pela progressiva reivindicação de autonomia pelas minorias, pela eclosão do feminismo, do movimento negro etc. É curioso notar que foi também nesse período que a fotografia de povos indígenas no Brasil, por exemplo, passou por uma transformação importante. Ela deixava de ser utilizada como registro etnográfico (no velho sentido de etnografia), ou seja, como uma forma de documentação, classificação e mensuração, para ser utilizada, em primeiro lugar, como ferramenta política e, em segundo lugar, como expressão artística. A trajetória de Claudia Andujar é um exemplo disso, ao somar o uso da fotografia no fotojornalismo crítico e engajado com a sua exploração criativa (não menos engajada, mas também poética) entre os Yanomami. Com isso, ficam para trás duas formas de uso da fotografia que, no Brasil ao menos, foram marcantes até os anos 1970. Em primeiro lugar, aquela fotografia científico-policial a que me referi, utilizada não só por Marc Ferrez, Thiesson e Huebner, mas também por antropólogos como Koch-Grünberg, pelos fotógrafos das expedições do SPI (o extinto Serviço de Proteção aos Índios), entre outros. A própria Claudia Andujar oferece, aliás, um diálogo crítico com essa tradição fotográfica em uma série recentemente exibida, “Marcados para”. O outro aspecto da fotografia que tende a ficar para trás é aquele atrelado à montagem, da edição em cenários ou em situações que já estavam presentes em Frisch, Ferrez e Huebner, mas que se tornam muito eloquentes, por exemplo, na fotografia de Henri Ballot. Por volta dos anos 1950, Ballot registra cenas emblemáticas montadas entre índios do Xingu, Getúlio Vargas, Assis Chateaubriand e os irmãos Villas Boas. Imagens semelhantes de representação do índio edênico xinguano são encontradas também no trabalho de Jean Manzon, que, aliás, era um dos responsáveis pela divulgação das imagens da famosa expedição Roncador-Xingu na influente revista O Cruzeiro. Essa mesma revista trazia ainda uma fotonovela, marcada pela montagem das imagens, sobre o casamento frustrado de uma índia kalapalo com um sertanista – um exemplo eloquente de sujeição da índia pelo homem branco. Desde as primeiras fotografias positivistas, que continuavam a ser realizadas pelo SPI nas primeiras décadas do século XX, até os anos 1960, a imagem dos índios sempre foi marcada pela submissão da imagem dos outros às classificações científicas ou às imagens estereotipadas do primitivo e do selvagem. Trata-se de uma tradição que, a rigor, remonta às primeiras gravuras sobre o Novo Mundo e aos registros de artistas viajantes como Maximilien Wied-Neuwied e Hercules Florence. Mas é também ao longo do século XX que os próprios antropólogos começam a registrar cenas mais intimistas tanto da vida dos povos indígenas quanto de sua interação com eles, como se pode ver nos registros fotográficos da Expedição Lévi-Strauss, nas fotografias de Darcy Ribeiro entre os Kadivéu, no trabalho de Harald Schultz, entre e outros. Em diversos momentos, portanto, o uso da fotografia serviu também para modificar o olhar antropológico, que não se formava apenas no escritório.
Daniel Mas esse uso poético da fotografia influiu de forma direta ou apenas tangencial nas pesquisas que levaram àquela mudança de paradigma nos anos 1960-70 que você assinalou anteriormente?
P Não são muitos os antropólogos que realmente usaram a fotografia como uma linguagem criativa e/ou conceitual em seus trabalhos. Eduardo Viveiros de Castro talvez seja uma exceção, com suas imagens tiradas dos Araweté na década de 1980. Mais recentemente, Carlos Fausto também tem realizado uma produção artística, que aliás se estende para projetos interessantes de cinema feitos em parceria com os Kuikuro (como no caso recente do longa-metragem As hiper mulheres). Mas há outros fotógrafos que souberam criar relações visuais interessantes com os povos indígenas e com outras culturas, como Milton Guran, Miguel Rio Branco, Nair Benedicto, Maureen Bisilliat e a própria Claudia Andujar. Isso tudo, porém, ainda representa o olhar do estrangeiro sobre os povos indígenas. As coisas começaram a mudar apenas recentemente, com a proliferação de oficinas de audiovisual nas aldeias, que tendem a oferecer para os índios a possibilidade de estabelecer o seu próprio uso da imagem.
O etnógrafo como curador
Isabella Em sua pesquisa etnográfica junto aos Marubo, você ofereceu ferramentas de desenho aos índios. Entendo que o desenho em certas tribos ameríndias está relacionado com suas capacidades espirituais e xamânicas, e possui características bem diferentes do desenho realizado em uma folha de papel. Gostaria de saber, portanto, como olhar, ao certo, para essas imagens. Poderiam os procedimentos da “invenção tradutória”, que aparecem na língua verbal, ser aplicados à leitura delas? E qual deve ser o cuidado, por parte do etnógrafo, em não transformar imediatamente esse resultado em uma “obra de arte”, levando-se em consideração as características do papel – uma mídia transportável e facilmente descontextualizável?
Pedro Muitos etnógrafos trabalharam com esse tipo de procedimento – oferecer um material para que as pessoas produzam desenhos, mapas e outras expressões visuais. No caso dos povos ameríndios das terras baixas, o papel é uma tecnologia nova, mas a expressão gráfica e a produção de imagens verbivisuais não são. Eles já possuem um extenso e sofisticado repertório de padrões gráficos (atualizados sobretudo nos corpos, mas também na cerâmica, na cestaria etc.), além de artes da palavra que são pensadas por meio de imagens mentais, de cenas e de sequências narrativas. Os padrões gráficos costumam ser produzidos pelas mulheres; as imagens mentais, de tendência figurativa e pictográfica, são, por sua vez, em geral um atributo dos homens (é assim entre os Marubo e outros povos). Na minha pesquisa, as mulheres realizaram transposições de tais padrões para o papel; os homens, por sua vez, criaram uma expressão visual nova, ao traduzir para fórmulas visuais os mesmos esquemas formulares verbais com os quais memorizam e compõem os seus cantos. No caso do primeiro repertório (o feminino), a ideia era sobretudo identificar o repertório de padrões, e o papel não se mostrou o melhor suporte para o desenvolvimento de uma técnica que é feita para corpos tridimensionais (e que é responsável, aliás, por produzir, delimitar e evidenciar um corpo humano). No segundo caso, o papel era um elemento novo para uma solução visual que antes não existia ou que não havia se revelado a partir de um suporte visível. Por isso tais desenhos se mostraram interessantes. Em poucas palavras, os cantadores (xamãs em sua maioria) atualizaram um repertório prévio de imagens mentais para uma solução gráfica nova, mas bastante parecida com outras tradições pictográficas ameríndias mais consolidadas. Isso implica, portanto, um processo de invenção e de tradução dos Marubo, mediado pela minha interferência. Se há algo de xamanístico nisso, é precisamente esse ato de invenção e de montagem de elementos prévios em novos conjuntos, e não exatamente alguma essência espiritual. O xamanismo é também uma tecnologia de montagem e desmontagem de fluxos verbais e de suas imagens associadas, que possuem, em determinados contextos, uma agentividade ritual. Os desenhos, vale dizer, não possuíam naquele momento alguma grande importância para os Marubo: eram considerados como algo produzido para mim e de pouca relevância estética, ritual e intelectual. De meu ponto de vista (e dos antropólogos), porém, a coisa se mostrou bastante importante. Aí está um bom exemplo de diferença de expectativas. Eu posso eventualmente publicar ou exibir esses desenhos, que serão porventura recebidos como uma “coleção etnográfica”, como “documentos” ou como “obras de arte” de acordo com este ou aquele enfoque curatorial, com esta ou aquela instituição etc. Essa não será, no entanto, necessariamente a expectativa dos Marubo, que não produziram tais coisas com a intenção de uma produção artística autoral (algo comum em outros tantos casos ameríndios). Nada impede, porém, que posteriormente esse material seja reconhecido como tal pelos mesmos desenhistas ou por outras pessoas, já que eles não possuem uma natureza intrínseca ou fixa, pois são produtos de uma interação, manifestações dos diversos níveis de uma configuração relacional (na qual estão envolvidas as artes da memória Marubo, a interface entre escrita e artes da palavra, entre pesquisa acadêmica e invenção criativa). A questão é ter algum controle ou forma de direcionamento desse processo.
Isabella Podemos considerar, então, uma situação comum às artes e à etnografia, na qual especialistas, diante de um conjunto de objetos, sujeitos e contextos específicos, procuram criar um campo de interlocução entre eles – preservando suas autonomias e diferenças – ao apresentá-los ou traduzi-los. Esse modo de operar aparece de forma evidente na pesquisa da autora e curadora sueca Maria Lind, na qual se propõe o termo “curatorial”(3) para referir-se a aspectos da curadoria que poderiam transbordar, alargar ou mesmo se afastar da noção de uma prática estritamente ligada à realização de exposições. Lind entende o curatorial como algo que poderia se aproximar de uma metodologia, reservada não somente aos curadores, mas passível de ser usada em outras práticas. A partir dessa sugestão, de que maneira você vê o etnógrafo atuando de forma curatorial?
P Não sou nenhum especialista em curadoria, mas essa concepção se aproxima em alguns aspectos de minha visão da antropologia (que, em certo sentido, como eu disse acima, é a mesma coisa que etnografia). De fato, uma curadoria que não se preocupe necessariamente com produtos (exposições, catálogos) e com objetos (obras de arte), mas mais com processos e conexões, me parece bastante interessante para pensar a própria antropologia contemporânea (sobrecarregada, no entanto, com o produtivismo acadêmico e sua exigência de proliferação de produtos como artigos, livros, comunicações em congressos etc.). Em outros termos, eu gostaria de levar essa noção de curadoria para mais além, na direção de uma possível dissolução do objeto, do espaço expositivo (ou, a rigor, do foco em tais reificações e suas produções de valor, em detrimento das pessoas), a favor dos modos de transformação e de conexão entre pessoas e modos de criatividade. É claro que esse processo pode e deve ser feito através de mediadores materiais, pois eles são também outras pessoas ou agentes sociais, como diriam Bruno Latour e Alfred Gell. Aliás, a antropologia também tem os seus desafios relacionados aos canais engessados de produção de conhecimento nos quais se afunilou: o estilo de redação do paper acadêmico, que é uma violência à arte do ensaio, e a proliferação massiva de congressos e seminários. Ora, ambas as formas costumam ser desconfortáveis para a maneira de se expressar, por exemplo, de um pajé Marubo ou Yanomami. Elas representam uma certa imposição corporal e institucional para os povos indígenas atuais que começam a entrar em contato com universidades. Guardadas as devidas diferenças, teríamos então dois problemas análogos: como pensar novos circuitos de “objetidade” (melhor em inglês, objecthood), mas também de temporalidade e de espacialidade; e como pensar em ambientes intelectuais generosos o suficiente para receber outras maneiras de lidar com aperformance verbal e o corpo? Essas me parecem ser questões pertinentes, enfim, para uma forma de curadoria e de antropologia que pretenda dar conta de agentes, intelectuais e criadores que se movimentam em outras configurações expressivas..
Daniel Acho que vale a pena aprofundar essa diferença que você assinala entre pensar em termos puramente expositivos ou em formas expressivas mais híbridas. Pois, se é certo que questões como as de seleção, montagem e apresentação podem receber um tratamento adequado fora do cubo branco, é também claro haver uma importante diferença aí – ao menos no que tange à sua recepção por parte do público. Suponho que essa deve ter lhe aparecido com alguma clareza quando, para além de sua prática como pesquisador e poeta, você decidiu adaptar uma tradução sua do poema Kaná kawã, da mitologia Marubo, para uma peça de teatro, intitulada Raptada pelo raio. Gostaria de saber em que medida, para você, pareceria pertinente hoje um convite para curar uma exposição que lidasse com esses “pressupostos de uma grande exposição de arte” que você menciona.
P Esse trabalho com o teatro não foi exatamente uma adaptação de um texto ameríndio para a dramaturgia. Ele foi, a rigor, um duplo processo de recriação tradutória: em primeiro lugar, relativo à transposição do canto Marubo Kaná kawã (cantado por Armando Mariano Marubo) para a escrita, para uma forma de tradução literária, que eu já havia publicado em meu trabalho acadêmico. Em seguida, eu tratei de transformar essa tradução em um texto dramatúrgico, algo que foi feito a partir de uma recriação completa do original, da invenção de outro mundo possível no qual a trama acontecia, da criação de certa densidade dramática para os personagens, de seus contornos líricos, das formas de ação, enfim, dos aspectos essenciais para a construção de uma peça de teatro. A única coisa que sobrou do original foi um certo ritmo encantatório e o esqueleto narrativo, que aliás é compartilhado por outras mitologias do mundo. No final, o trabalho foi também feito em parceria com a Cia. Livre, de modo que pode ser compreendido como fruto de um processo colaborativo, essa forma de trabalho que tem sido pensada e praticada pelo teatro brasileiro contemporâneo. Mas o objetivo era, digamos, bastante clássico: produzir um espetáculo para o público, com material impresso, com recepção pela crítica, com possibilidade de premiação, enfim, todo o pacote do produto artístico, análogo aos outros pacotes realizados no mundo dos cubos brancos. Confesso que, por um lado, essa expectativa do produto me incomoda, ainda que seja uma das invenções principais do tal do Ocidente com a qual eu tenho que lidar, com mais ou menos prazer. Essas invenções possuem seus encantos, ou melhor, a sua tradição e o seu potencial de transformação, que não podem ser menosprezados, mas também criam afunilamentos nas possibilidades de exploração das conexões imaginativas que podem surgir do encontro entre um intelectual, criadores paulistanos e um pajé Marubo, por exemplo. No final das contas, não sei se uma peça de teatro (com aquelas expectativas do produto) é o melhor lugar para explorar tais conexões, ainda que seja um lugar possível e que ofereça soluções muitas vezes instigantes (como no caso de nosso trabalho com a Cia Livre e de outro mais recente, o espetáculo Recusa, da Cia. Balagan, de São Paulo). Eu provavelmente tentaria outra coisa hoje, tentaria algo que escapasse das expectativas que uma peça de teatro (e uma exposição) costuma gerar: aqueles relacionados aos pressupostos da grande arte, com o seu juízo estético discriminatório, com o acolhimento dos críticos, com a circulação na mídia etc. Tentaria, em suma, pensar em algo que desarticulasse, desarmasse ou produzisse uma alternativa a tais expectativas; que fosse talvez um antiproduto, um registro de algum encontro efêmero, de alguma forma de transformação. E isso a despeito da solução, mídia ou área em questão (teatro ou artes visuais). Não sei até que ponto a proposta funcionaria, até que ponto não seria um déjà-vu de outras tantas desarticulações que se proliferaram desde os anos 1960, mas provavelmente seria necessária para pensar as tais das conexões entre mundos possíveis de que tratamos, bem como a acomodação dos quase-sujeitos, dos mediadores extra-humanos que costumamos chamar de objetos ou obras de arte.
Daniel Ainda que produtiva, essa ideia expandida de curadoria me parece ser ainda dependente daquela antiga identificação estética que liga a arte a um certo valor de liberdade. Uma idealização análoga da prática artística é apontada, ainda por Foster em The Artist as Ethnographer?, na figura de uma suposta “inveja do artista” por parte dos antropólogos de sua época (o estudo de Clifford de 1988 Sobre o surrealismo etnográfico é citado nominalmente). Tal imagem do artista, concebido como um ser livre, autorreflexivo e sensível à diferença como poucos, diz ele, não seria nada mais que uma projeção do eu ideal do antropólogo aspirante a “colagista, semiólogo, vanguardista”. Voltando à questão que abre esta entrevista, me pergunto agora por que as artes plásticas – seja pelo viés da prática do artista ou do curador – deveriam ser esse lugar privilegiado do pensamento de uma “poética não ocidental”. Não seria essa suposição a mais enraizada idealização da arte e, no fundo, uma forma de se furtar ao problema de seu próprio contexto e instituição?
P É preciso problematizar essa posição supostamente ocupada pelas artes plásticas no Ocidente, já que a categoria “arte” e a ideia de uma subjetividade criadora não são universais, como queria a Magiciens de la Terre. Isso é algo derivado, sobretudo, de um equívoco de tradução ontológica e de projeção irrefletida. Os ocidentais sempre acham que as suas formas de generalização são capazes de abarcar a totalidade da experiência humana. Muitas vezes acabam impondo isso, mas em prejuízo do que há de interessante e original em outros regimes de imaginação criadora. Essa forma de ocultamento das próprias condições de discurso não é, aliás, um problema só das artes, mas de todas as projeções totalizadoras do Ocidente (como as geradas pelo conhecimento científico, por exemplo). Agora, nada impede que a tal da “arte” (mas qual é mesmo a especificidade ou a definição dessa categoria na contemporaneidade?) realize um trabalho de autopercepção discursiva e se torne, em conjunto com outras áreas do conhecimento, efetivamente capaz de se estender às produções alheias de sentido. A primeira tarefa para tal fim seria suspender as suas pretensões à universalidade e os seus mecanismos de particularização (através de categorias tais como primitivo, primeiro, folclórico, popular, indígena, oral, naïf, mágico, fantástico etc.).
Ainda que a crítica de Foster no referido texto seja pertinente – mas voltada especificamente para um certo dilema do sistema artístico e para uma certa antropologia –, ela não é suficiente para descartar o papel que o dito “colagismo” desempenhou para a antropologia e as ciências humanas no século XX. A rigor, me parece equivocado estabelecer um corte radical entre a antropologia (e outras formas de pensamento, em especial aquelas de cunho ensaístico) e a criação artística, como se não houvesse contaminações e partilhas de processos dos dois lados, e partilhas que não são feitas, em muitos casos, apenas por uma vontade ingênua de imitação ou por alguma forma de idealização da arte ou da figura do artista. E isso por diversas razões. Artistas e antropólogos(entre outros intelectuais) são todos criadores não exatamente por se imaginarem como colagistas, mas por identificar os dilemas do contemporâneo e por projetar outros mundos possíveis. Ambos são responsáveis por oferecer as possibilidades de um pensamento ético, e isso se torna especialmente notável nas artes ocidentais de 1960 em diante (ainda que já estivesse presente em outros diversos momentos). Mas vou dar aqui apenas um exemplo de tais contaminações que me parece especialmente pertinente (o próprio Foster resguarda a sua importância naquele outro artigo acima referido por vocês), ainda mais próximo daquele contexto modernista a que se referia James Clifford em seu estudo sobre o surrealismo etnográfico: a contaminação do surrealismo na antropologia de Lévi-Strauss. O autor diz explicitamente que o trabalho de Max Ernst foi fundamental para que ele mesmo entendesse o sentido das Mitológicas, uma das maiores obras de todos os tempos sobre o pensamento narrativo. Ora, Lévi-Strauss mostra ali que os mitos se comportam de maneira muito mais próxima das justaposições e reconfigurações de sentido produzidas pelos surrealistas (mas que não são, a rigor, uma exclusividade deles) do que por alguma outra construção linear. Lévi-Strauss diz que esse comportamento se revelava nas Mitológicas à revelia de suas próprias decisões conscientes, já que os mitos se pensam a si mesmos e que cabe ao antropólogo, portanto, deixar que esse trabalho seja feito ao longo do processo de escrita. Com isso, ele foi responsável por revolucionar a antropologia e por oferecer perspectivas conceituais que até hoje são pertinentes. Sem esse procedimento, descoberto a partir de seu diálogo com Max Ernst, talvez ele não tivesse chegado tão próximo das especificidades intelectuais ameríndias, de uma maneira que poucos etnólogos conseguiram depois chegar. Isso deve servir para mostrar que a crítica de Foster é parcial, justificada, mas insuficiente para compreender como o pensamento ocidental (e em especial a antropologia) de fato se transformou a partir do horizonte de colaboração que então se estabelecia entre intelectuais e artistas – uma forma de colaboração, aliás, que não perde seu sentido por conta de críticas genéricas e superficiais ao modernismo, que certamente tinha as suas vicissitudes mais ou menos datadas (políticas, éticas, estéticas), mas que lançou linhas de ruptura e de transformação ainda hoje presentes e operantes.
Daniel Não é o recurso ao colagismo que me parece criticável, senão a manutenção daquela ideia moderna de vanguardismo – não apenas na etnografia, mas no seio da própria instituição da arte. E isso, notadamente no contexto dos anos 1980-90, que não conheceu outra fronteira que a do gosto do cliente, e onde a tal liberdade do artista de que falava antes se confundia facilmente com um conformismo em relação às tendências do momento. (É o que dizia a Crítica Institucional desde o fim dos anos 60, e mais recentemente também curadoras como Claire Bishop(4)). Me pergunto mesmo se aquele “paradigma quase antropológico” já não seria uma resposta (algo subserviente) dos artistas dos anos 1990 à aparelhagem política e econômica determinada pela influência decisiva do curador etnógrafo da década anterior... É, portanto, a questão da relação de poder entre representado e representante que quero colocar agora no domínio da etnografia: como lidar com a possibilidade de que os nativos reproduzam a imagem que o especialista deles traça e espera? Como se assegurar, em suma, que o etnógrafo não esteja “curando”, por ingenuidade ou interesse, a experiência do Outro?
P Não há como evitar a possibilidade de que os nativos reproduzam as imagens traçadas pelos especialistas, mas é certo que essas imagens se transformarão em outra coisa ao serem reproduzidas ou capturadas por eles. Essa outra coisa em que as imagens e discursos tendem a se transformar depende evidentemente de cada caso, das estratégias intelectuais e criativas de cada sociedade, de seu maior ou menor interesse pelo antropólogo, pelo problema da autoridade, pela circulação de conhecimentos e assim por diante. É comum, por exemplo, que os povos indígenas comecem a falar de sua “cultura” e a pensar em termos de “cultura”. Antes de sua relação com antropólogos, profissionais do terceiro setor etc., eles não sabiam exatamente que tinham uma coisa passível de ser chamada de “cultura”. O termo, que estabelece uma determinada trajetória no conhecimento ocidental, passa a ser incorporado pelos tais dos nativos e a criar uma série de discursos e formas expressivas a ele associadas (muitas vezes relacionadas às ideias de resgate, de proteção, de afirmação identitária, de uma nova configuração de autoridade). Mas ele é incorporado a partir dos pressupostos de pensamento daquela sociedade, e não dos nossos (por exemplo, de nossas instituições de autoria, de direitos sobre conhecimentos, de criação individual), o que gera torções ontológicas e políticas interessantes. Muitos antropólogos têm trabalhado justamente a partir dos dilemas de tradução e de transformação daí derivados, como no caso das produções recentes de Manuela Carneiro da Cunha. Cada vez mais, aliás, o antropólogo tem que negociar com seus interlocutores as condições de produção de seu discurso e de sua pesquisa, que muitas vezes já é feita de forma colaborativa ou através de autorias múltiplas. A experiência do outro sempre é curada pelo antropólogo, no sentido de ser editada, traduzida, reconfigurada, selecionada por um ponto de vista específico. Essa reconfiguração não é necessariamente uma representação do outro, como se o antropólogo fosse o porta-voz dos índios e de outras sociedades. De fato, esse tipo de relação, que foi marcante algumas décadas atrás, cada vez faz menos sentido e se torna menos possível, na medida em que os etnografados se transformam em sujeitos políticos ativos e conscientes de sua autonomia. Aí a relação com o antropólogo necessariamente muda e, também, as formas de autoridade e de poder. Em alguns casos, o antropólogo passa inclusive a ser um prestador de serviços para associações indígenas e para a elaboração de projetos culturais. Além disso, o conhecimento do antropólogo (e de seu mundo) também pode ser traduzido e editado pelo nativo, que é evidentemente capaz de explicar o seu outro a partir de critérios alternativos – o que chamamos de antropologia reversa. Cabe ao antropólogo entender esses critérios, que nem sempre são claros ou acessíveis. Cabe, mais ainda, imaginar uma antropologia que seja sobretudo uma forma de mediação e de conexão, e não de representação do ponto de vista alheio (uma operação intelectual a rigor impossível e eticamente questionável).
Isabella Neste sentido, o que está em jogo é um intrincado sistema de mediações, e já não mais de representações: a questão não é apenas quem escreve as narrativas e discursos, mas como e para quem. Me parece extremamente interessante essa noção de escrever com o outro e não a partir dele, algo que a própria Lind, no trecho citado anteriormente, comenta. Como essa distância, de aproximação ou até mesmo de embate, aparece no trabalho do etnógrafo como curador? E como isso se daria na antropologia reversa? Quem seria o seu público/leitor?
P Esse é um problema importante. Seria necessário pensar um determinado evento expressivo (para empregar uma expressão genérica, na qual “exposição”, “livro” ou “espetáculo teatral” seriam soluções possíveis entre outras tantas) em conjunto com outros agentes e interlocutores, que tivesse capacidade de circular por espaços múltiplos, que lidasse com observadores diferentes e que desse conta de outras formas de antropologia ou de reflexão. Em geral, o que vemos é a adequação da criatividade alheia a mídias e formatos produzidos no Ocidente (o livro, o filme), o que às vezes traz resultados surpreendentes do ponto de vista estético, rítmico, narrativo (tome o exemplo dos diversos filmes produzidos por povos indígenas através do Vídeo nas Aldeias, a coleção Narradores indígenas do rio Negro, produzida pelos povos dessa região, e o livro recente La chute du ciel – Paroles d’un chaman yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert). Ou então o deslocamento de determinados objetos para exposições majoritariamente pensadas pela lógica do intelectual urbano (notável em exposições recentes comoHistoires de voir, da Fondation Cartier, entre outras) e, ainda, o deslocamento de ideias produzidas em torno de tais objetos e pessoas para um debate também circunscrito à intelligentsia urbana (é o caso da exposição Animism, de Anselm Franke). Algumas dessas soluções, vale frisar, podem ser bastante instigantes, como neste último exemplo. Mas há aí uma assimetria fundamental que não foi revertida e que talvez não chegue a ser: as formas alheias de produção de eventos expressivos não contaminam as nossas de maneira efetiva, não circulam para além de seus locais de origem e não entram em um debate mundializado, a não ser quando coisificadas como espetáculos de “cultura” e de “tradição indígena”. Como pensar, por exemplo, em estender um evento xamanístico característico das performances de um xamã Araweté ou Marubo para outros circuitos criativos? Será essa uma operação possível e, mais ainda, desejável? Ora, esses eventos são sobretudo invisíveis, mediados ou veiculados apenas pelo corpo do xamã, que transporta uma configuração posicional de pessoas (mortos, espíritos) através de um regime enunciativo extremamente complexo. Isso é muito mais do que um simples canto: trata-se de uma topologia virtual e de uma tecnologia expressiva adequada para transportá-la. Seriam os artistas ocidentais suficientemente criativos ou intelectualmente obstinados a ponto de conseguir dialogar com essa originalidade, tão contemporânea quanto as instalações sonoras de Janet Cardiff? Estariam as nossas instituições suficientemente maduras para produzir encontros dessa forma? E os Araweté, teriam algum interesse nisso? Salvo engano meu, parece que essas são questões ainda em aberto. Guimarães Rosa produziu uma das mais notáveis contaminações entre mundos em seu conto o “Meu tio o Iauaretê”, um impressionante processo de devir-jaguar. Mas ainda assim tratamos de um conto, publicado em um livro, que pertence a um autor individual e a seus direitos específicos, e por aí vai.
Isabella Concordo que não seja possível escapar dessas contaminações mútuas, e que elas sejam, até certo ponto, desejáveis. Era o que já afirmava a antropofagia, no contexto do modernismo brasileiro, por exemplo, ao distinguir-se da imagem européia do canibalismo. Na antropofagia, uma vez que o inimigo é devorado, o que está em jogo vai muito além de trazer algo do outro para si, mas sim de ocupar esse outro lugar, modificando a origem de sua perspectiva. Dessa maneira, poderíamos pensar o Modernismo brasileiro como altermodernidade, ou seja, uma visão da modernidade a partir de outra perspectiva que já não mais entende a figura do canibal como exótica, mas identifica-se com ela. Retornando, então, à questão que nos foi colocada pela sua fala no Máquina de Escrever, será que já não se trata mais de “pensar” essa poética, mas operar nela ou a partir dela? O que práticas como a antropologia e a etnografia devem aos antropófagos, no que vai de encontro com seu exercício hoje?
P Podemos tomar isso como um exemplo de que o Modernismo é algo tão heterogêneo quanto ainda presente e potente, a despeito de diversas idiossincrasias suas que de fato hoje não fazem mais sentido. Seria possível, enfim, fazer toda uma leitura técnico-crítica etnológica do Manifesto antropófago, capaz de mostrar como isso e aquilo é invenção de Oswald, como não existe um matriarcado primitivo, uma linguagem surrealista, uma idade de ouro etc. Mas Oswald não era um etnólogo, e o seu contexto histórico era outro. Seu modo não linear e caótico de pensar projetava intuições ainda hoje fundamentais, entre as quais essa concepção da antropofagia como um modus operandi, como uma atitude político-cultural, e não como a imagem de um outro primitivo (ainda que ela parta de tal imagem, através de um procedimento que parece contraditório, mas que na realidade desvela a originalidade do pensamento de Oswald, como mostrou Benedito Nunes). Isso de fato permitiria refrasear essa fala que vocês me atribuem: trata-se muito mais de operar pelo outro ou com o outro (seja lá qual for esse outro) do que de pensá-lo a partir de um ponto de vista externo. É isso, aliás, que movimenta a experiência tradutória que discutimos acima.