Entrevista conduzida por Yolanda Vilela na Escola Brasileira de
Psicanálise de Minas Gerais para a revista Curinga #48, Belo Horizonte, dezembro de 2019
O sono louco
Conversa com Daniel Jablonski(1)
Yolanda Vilela Esta conversa com o artista Daniel Jablonski é promovida pela Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Minas Gerais (EBP-MG),
através de sua Biblioteca, em parceria com o Museu Mineiro (MM). Gostaríamos de agradecer ao Daniel por aceitar nosso
convite para esta conversa, que tem como ponto de partida uma de suas obras: a instalação Quem vigia o vigia? Uma
conversa que está, certamente, sujeita a derivações. Agradeço às minhas colegas da Diretoria da EBP-MG; aos meus colegas e amigos psicanalistas
que se interessaram por esta atividade e se dispuseram a adentrar a obra de
Jablonski, seja visitando sua exposição, atualmente em cartaz em Duas
Galerias, em Belo Horizonte;
seja lendo seus ensaios, notadamente o texto “O sono louco”, disponível no site de Daniel – www.danieljablonski.org. Agradeço ao empenho do pessoal do Museu Mineiro para
que esta atividade acontecesse, sobretudo à Renata Mendonça, que fez a mediação
entre a EBP-MG e o MM, mas também ao Rafael Penteado e à Ana Werneck. Muito
obrigada a todos vocês que vieram conversar conosco nesta bela manhã de sábado.
Daniel Jablonski é artista, professor – ele atualmente leciona e coordena o curso de Histórias da Arte Moderna e Contemporânea, no Museu de Arte de São Paulo – e também pesquisador independente. Em sua produção multifacetada encontram-se instalações, performances, fotografias e publicações impressas, entre outros formatos. Daniel já assinou algumas traduções e é também autor de ensaios. Mas por que uma conversa com esse artista, precisamente neste momento, e em torno desta obra em particular? É preciso lembrar que O sono louco, obra que nos interessa aqui, tem como base uma “experiência caseira” realizada pelo artista em 2013. A fim de se autodiagnosticar portador de uma “disfunção” de sono ainda desconhecida, consistindo na impossibilidade de acordar na hora certa, Daniel dormiu durante um mês amarrado a um antigo relógio de ponto portátil. Usado desde meados do século XIX para assegurar que os vigias noturnos realizavam suas rondas em fábricas e galpões, tal dispositivo serviria a Daniel como uma forma de manter um registro mecânico de sua atividade noturna. Posteriormente, em um ensaio homônimo publicado na Revista Poiésis, da Universidade Federal Fluminense, o artista fez ainda da psicanálise um instrumento ativo de sua investigação, buscando interpretar os resultados daquele experimento à luz dos escritos de Freud. Os significantes postos em movimento aqui, como o sono, o sonho, o tempo, o despertar, a loucura e a vigília, remeteram-me aos dois grandes temas de trabalho da EBP-MG em 2019: o tempo, que é o tema de trabalho da Jornada prevista para novembro, cujo título é Num claro instante: o tempo na experiência analítica, e o tema do sonho, proposto para o próximo congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), que acontecerá em Buenos Aires, em abril de 2020: O sonho: sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano. É com muita alegria que te recebemos hoje, Daniel Jablonski. Fazemos parte desse público tocado por sua produção artística, que leva a lugares inesperados essas experiências, em aparência banais, de que estão repletas nosso quotidiano. Sua narrativa nos despertou, de alguma forma, ainda que por um breve instante, antes que nos abandonássemos novamente ao sono.
Frederico Feu Daniel, gostaria de colocar três questões que vieram de imediato: você se curou? A experiência modificou algo de seu sintoma?
Daniel Jablonski Não. [risos]
Frederico Feu A segunda pergunta: é possível despertar? Pensando em um campo mais amplo, inclusive da política? E a terceira: eu queria pensar como você se inclui no trabalho artístico, pensando na sua trajetória, em direção à arte. Você tem um percurso na filosofia, na filosofia da ciência, na história da arte, enfim, mas como você chega ao trabalho do artista? Entre fazer sonhar e despertar, levando em conta a sua trajetória, como você situaria o trabalho do artista?
DJ Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Yolanda, pela leitura atenta do ensaio e pela descrição, pelo menos para mim, muito clara, do que foi esse experimento. Agora, tentando responder a sério a primeira pergunta do Frederico: se me curei? Não, pois nunca se tratou disso. Meu objetivo não era alcançar uma cura, mas, antes disso, identificar um problema, abrir um campo de questionamentos. Campo que pudesse dizer respeito não apenas a mim, à minha experiência pessoal, mas também à de outras pessoas. “– Garoto, levanta da cama e vai trabalhar! Deixa de preguiça, vamos fazer as coisas!” Foi o que eu sempre ouvi, a vida inteira. E, após anos tentando (e falhando miseravelmente em) acordar na hora certa, me ocorreu o seguinte pensamento: e se isso que estou vivendo todos os dias de manhã, na minha própria cama, de pijama, descabelado, for mais que uma anedota? E se for uma espécie de patologia, ou doença, ou distúrbio do sono desconhecido? Afinal, há sempre um primeiro caso... Ora, se isto for verdade, então significa que outras pessoas podem estar passando por algo muito similar. Pois uma doença é, por definição, um fenômeno coletivo: ela pode ter atingido apenas uma pessoa no mundo inteiro, mas, ainda assim, ela tem uma estrutura que a torna repetível, iterável. Padecer de algo, por mais solitário e angustiante que possa ser para esse ou aquele indivíduo, é também uma forma de pertencer a uma coletividade. Por isso, resolvi fazer essa experiência usando o relógio de ponto, que geralmente delegamos a outros, e também de usar a psicanálise como ferramenta interpretativa para minha condição. Pois estava em busca de uma chave de leitura, de um saber, enfim, de um campo de atividades que fosse contemporâneo a essa época de ouro do relógio de ponto: a emergência do capitalismo industrial, com suas neuroses do trabalho, como o controle do tempo, a vigilância etc. Esse protocolo foi também uma maneira de situar a experiência, mais além do campo da medicina – onde eu seria objeto de uma análise alheia –, no da psicanálise, onde a ideia de uma autoanálisepoderia aplicar-se em algum ponto. Nesse sentido, formular (e tentar responder) uma questão a partir de minha própria experiência foi uma tentativa de olhar para mim mesmo da perspectiva de um outro, ou melhor, de olhar para mim mesmo como se fosse um outro. Gesto que é efetivamente político, pois situa o despertar – assim como sugeriu Walter Benjamin(2) no seu Livro das passagens – na esfera da coletividade, com suas implicações diretas à organização do mundo do trabalho e o lugar do indivíduo na luta de classes, ontem e hoje. Mas fundamentalmente, ao me desdobrar em objeto e sujeito da investigação, eu queria fazer da minha experiência um ponto de apoio para que outros pudessem se identificar. Queria que outras pessoas pudessem ver esse trabalho e dizer: – “Ah, eu sei o que é isso, também tenho esse sintoma! Você conseguiu formular uma coisa que eu achei que era só minha, que fazia parte somente do meu quadro de problemas, sem nome, insignificante”.
Não procurar a resposta, às vezes, é a chave para encontrá-la. Sei que pode parecer um truísmo, mas, antes de mais nada, é preciso ter clareza sobre a natureza da pergunta. Essa é uma maneira de pensar que, de fato, tem a ver com minha formação prévia. Quando nos confrontamos com a longa e complexa história da filosofia ocidental, fica muito claro que nenhum problema foi jamais resolvido, por mais brilhantes que tenham sido seus intérpretes. Isso não é necessariamente ruim. Ao contrário, a genialidade desses indivíduos consistiu no fato de terem conseguido formular a questão adequada ao seu próprio tempo. Ao reconfigurar os questionamentos do passado, ao reler os clássicos de modo a encontrar sua atualidade, eles encontraram sua eficácia para o tempo presente, eles deram voz a toda uma época. (Hoje, diga-se entre parênteses, ninguém está mais se perguntando sobre a imortalidade da alma, que foi questão central durante quase todo o período da escolástica; bem, pelo menos não em filosofia.) Mas, vejam bem, não estou me incluindo nesse cânone, de forma alguma, tenho inúmeras restrições em relação à filosofia – notadamente suas pretensões universalistas, essa sua maneira demasiado distanciada, aparentemente segura, de pensar as coisas. Aliás, foi uma dessas restrições que me levou ao campo da arte. Me parecia que a filosofia, em sua obstinação a separar o essencial do contingente, terminava por perder de vista a própria vida, descolando-se daquilo que realmente nos atravessa, no dia a dia, como indivíduos concretos. Minha passagem ao campo da arte tem muito a ver com uma vontade de prestar atenção em coisas que, de um ponto de vista estritamente filosófico, não são “dignas de serem pensadas”. O que tenho tentado fazer em meus trabalhos de arte é identificar situações onde aparentemente não há qualquer necessidade para teoria, na experiência do mais trivial, do que há de mais rasteiro em nosso cotidiano. E isso, me servindo justamente dos métodos de análise, de autoanálise, de hermenêutica com os quais tive contato antes, a fim de tecer uma relação com o mundo que me diga respeito para além de um ponto de vista meramente intelectual. No mundo acadêmico, aprendemos todos a produzir um trabalho, um ensaio, um artigo, que trata de tal leitura X do conceito Y do autor Z em uma perspectiva W. Mas eu tinha essa angústia muito forte na época: “Certo, mas o que eu tenho a ver com isso?” Já no campo da arte, esse círculo vicioso se traduz de outra maneira, totalmente oposta à academia, mas igualmente problemática; muitas vezes vejo coisas sendo justificadas: “porque eu acho, porque eu sinto, porque a minha sensibilidade é essa”. Ora, é preciso perguntar-se honestamente: importa mesmo ao outro como vocêvê as coisas? Qualquer estudante de primeiro ano de graduação de filosofia sabe que a resposta é, na maior parte dos casos, não. Nesse sentido, considero que minha chegada “tardia” ao campo da arte tenha sido benéfica para minha produção (embora não tanto para minha carreira de “jovem artista”). Como artista, não estou em busca de uma subjetividade mais “autêntica”, mas, pelo contrário, de uma certa “objetividade” de que goza o pesquisador quando age como um operador de ideias e conceitos que, como tal, podem ser manipulados, aplicados e, portanto, também questionados por seus pares. Fazer arte como pesquisa é uma tentativa de conjugar uma preocupação acadêmica – o que diz respeito a todos nós – com uma preocupação talvez um pouco egoísta, mas que dá conta de uma série de desejos que são perfeitamente válidos – que é perguntar-se: quem sou eu? Na academia, eu tinha impressão de que não poderia realizar um cruzamento desses, uma teoria aplicada à experiência. Curiosamente, foi ainda no mestrado em Filosofia que encontrei a definição mais bonita (e radical) do que podia ser a arte. Tive aí um professor um pouco sui generis, que também era secretamente artista, e que dizia o seguinte: “Arte é um jeito de prestar atenção”. A arte não tem qualidades intrínsecas, não é bela ou feia, radical ou complacente, não é nada disso, não necessariamente; é apenas um jeito de prestar muita atenção em alguma coisa por certo período de tempo. Nós não sabemos de antemão do que se trata; pode ser qualquer coisa, uma situação, um objeto, um lugar, uma pessoa. Mas vista como se valesse a pena, como se tudo à nossa volta dependesse daquilo. De maneira a fazer algo despertar para nós.
Cristina Vidigal Daniel, eu também vim aqui pessoalmente atravessada pelo texto que você escreveu. Pensei em várias coisas, sendo a primeira: por que você elegeu esse nome para o seu problema de sono? “Transtorno transitivo” me remeteu a Amar, verbo intransitivo(3)... Porque você não disse simplesmente um “transtorno transitório”, para o qual você vai buscar um tratamento. Eu, por exemplo, sofri um transtorno – um dia eu fiquei tonta e caí. Mas foi transitório, era algo que ia passar, que ia eventualmente se curar. Mas o que você disse foi transitivo, e adorei isso, pois o transitivo é algo que pede um complemento, uma sequência, sem necessariamente anunciar um fim. Outra coisa que me atravessou de um ponto de vista pessoal: vocês sabem que eu sou mãe, e mãe de um dorminhoco. Conheço bem alguém lá em casa que se recusa a acordar de manhã, não aguenta, não consegue. Assim, eu venho processando essas coisas, também estou nesse trabalho do despertar.
DJ Este trabalho é também, potencialmente, sobre seu filho. Ele poderia usar o meu método para testar seu próprio sono. E isso, para mim, é fundamental: que a experiência possa ser replicada, que outros possam se apropriar do sistema, testá-lo e tirar suas próprias conclusões. Claro, tenho consciência das dificuldades: primeiro, de se encontrar um desses antigos relógios de ponto de vigia noturno; e, mais além, de aplicar o procedimento, que é bastante inconveniente, para dizer o mínimo. Explico: ele consiste em dormir, por certo período de tempo (eu usei um mês), amarrado a um relógio que pesa uns quatro quilos, o que torna impossível se mexer durante a noite. Mas esse inconveniente é também significativo, pois nos ajuda a imaginar o que significava carregar isso amarrado em torno de si, como faziam os vigias noturnos em suas rondas nas fábricas, uma e outra vez, de um lado para o outro, todas as noites. O sistema original funcionava assim: a cada hora, ou meia hora, o vigia introduzia e girava uma chave nesse dispositivo, o qual imprimia a hora e o local em uma bobina que estava no seu interior. As chaves estavam espalhadas pela fábrica, obrigando-os a seguir um itinerário pré-determinado. No dia seguinte, pela manhã, o patrão abria o dispositivo com outra chave e conferia a bobina; se estivesse faltando algum intervalo de horário, isso significava que o empregado havia dormido e ele estaria demitido automaticamente. Cabe aqui perguntar: para que servia isso exatamente? E a resposta é: para nada, pelo menos não em termos práticos. Mas essa “não-serventia” diz muito também sobre certa neurose estruturante do capitalismo. No fundo, esse dispositivo servia “apenas” para que o patrão, o dono da fábrica, pudesse ter certeza que o vigia esteve mesmo vigiando a fábrica durante a noite. Ele servia, portanto, para que este, mesmo enquanto dormia confortavelmente em sua cama, pudesse vigiar o seu vigia, garantindo que aquele não dormisse hora nenhuma. Como sabemos, relógios são (e sempre foram) dispositivos de controle, peças-chave no processo da divisão do trabalho, mas esse relógio de ponto leva esse princípio a um paroxismo: é realmente um método sádico de coerção corporal. A virada desse meu trabalho está, talvez, no fato de que, ao submeter-me a este sadismo, eu posso ser simultaneamente o patrão, aquele que está dormindo, e o vigia, aquele que está lutando contra o sono.
Sobre o caráter transitivo do trabalho: você sublinha esta palavra, e com razão. Pois bem, com ela, eu estava querendo evitar essa ideia de que o transtorno pudesse ser transitório, algo que fosse simplesmente passar. Eu tenho esse problema desde a mais tenra infância e, de certa forma, estou convencido de que não vai passar. Recentemente, eu cheguei mesmo a reinterpretar toda a minha escolaridade à luz dessa questão. Afinal, por que outra razão eu teria detestado a escola se, no fundo, sempre gostei de ler e tinha ótimos amigos, se não sofria bullying, se não tinha nada de errado na minha infância? Então cheguei à conclusão: o problema era que tinha que estar ali naquele maldito pátio todos os dias às oito da manhã, e esse horário era simplesmente impossível para mim, eu não conseguia me adequar. Quando comecei a fazer esse trabalho, parti da premissa de que era algo fadado a se reproduzir, todos os dias. Ao invés de seguir com esse calvário, de tentar lutar contra o despertador todas as manhãs, um dia eu decidi olhar a coisa de frente – isto é,como uma questão a ser pensada e não apenas em um problema a ser superado. E foi pensando a respeito que cheguei à palavra “transitivo”. Pois não me parecia ser uma questão “quantitativa”, esse vício da ciência moderna de ficar medindo todas as coisas, nem mesmo “qualitativa”, no sentido de me interrogar sobre o caráter suficientemente restaurador do sono. Minha intuição de partida era de que se tratava de um problema de transição entre estados; assim como a insônia, em que a dificuldade está justamente na passagem da vigília ao sono, que parece não vir nunca.
Cristina Vidigal Eu conheço bem.
DJ Pois é, eu não, só por descrições alheias. Não sei o que é, nunca experimentei essa sensação, comigo simplesmente não acontece. Fiquei então me perguntando: o que seria o inverso da insônia? Como se dá essa transição do despertar, em que passamos de um momento de certa inconsciência para a vigília, para essa primeira fase, ainda turva, da consciência? Se trata de uma questão complexa, pois, em todo rigor, nós não estamos lá nesse momento, pelo menos não em termos de consciência, de “eu”. Talvez aí resida outro sentido da ideia de transitividadeque você levanta, pois a experiência do despertar é importante, fundamental mesmo, mas ela sozinha não se basta. Como qualquer outra experiência, ela exige uma interpretação, uma leitura, um sentido. Ela exige atenção. Há uma pichação, do Maio de 1968, se não em engano, que me parece paradigmática: “Exagerar; eis a arma!” É para mim quase um lema. E diante de minhas obras, sempre tem alguém que comenta: “Será que você não está exagerando um pouco? Será que não está sobrevalorizando uma coisa que não tem nenhuma importância?” Ora, o que estou tratando de dizer é: “Sim, mas perceba quanta coisa sai dessa matéria ínfima!”. O trabalho do Sonoparte dessa mesma premissa: um momento absolutamente trivial, que se repete a cada dia, em que estou na cama dormindo e me vejo obrigado a acordar, como todo mundo. No meu caso específico, havia uma excepcionalidade, um sintoma, poderíamos dizer. Mas ela se joga contra um quadro de expectativas “padrão”, em que percebo estar inserido em um sistema de trabalho, das expectativas de horas de produção, de controle e de autocontrole, ao qual eu preciso responder. (Aliás, diga-se também entre parênteses, fui demitido do único emprego fixo que tive na vida por não conseguir chegar lá todo dia às 11 horas da manhã.) Assim, é perfeitamente possível estar vivendo uma experiência sozinho na cama, babando, e ao mesmo tempo estar atravessado por questões complexas de biopolítica, como a alienação, o automatismo, o controle corporal. Da mesma forma como os estudantes na França, em 1968, pareciam estar falando “apenas” sobre as condições do acesso de meninas às suas acomodações universitárias. Mas era também, e sobretudo, sobre a natureza mesma do desejo e sobre os mecanismos que a sociedade da época lançava para tolhê-lo.
Cristina Vidigal Acho que isso foi muito inspirador no seu texto. Fiquei pensando que, articulado ao sono, estão os sonhos. Você diz no seu texto que se lembra muito pouco dos sonhos, e nós sabemos que os sonhos têm esse trabalho importantíssimo e maravilhoso, e cujo valor é reconhecido pelas pessoas, também a partir de uma experiência. Aliás, já fizeram uma experiência inversa: a de interromper o sonho, de não deixar a pessoa sonhar. Isso gerou fenômenos alucinatórios na vigília. Não deixar sonhar é uma experiência hipertranstornante para o ser humano. Achei muito bem posta a colocação de articular o sono, o despertar e o sonho ligada a essa ideia da interpretação, que eu acho fundamental neste trabalho, no trabalho que é a vida cotidiana. Viver dá trabalho, não é?
DJ Não tem nada mais cansativo do que viver. E você tem razão também quando fala da interrupção do sono como causa de transtornos, não apenas psíquicos como fisiológicos. Essa experiência já foi inclusive realizada em contextos militares. O Jonathan Crary(4), um filósofo norte-americano, escreveu um livro interessante chamado 24/7 - Capitalismo tardio e os fins do sono(5), no qual relata a privação de sono sendo utilizada como método de tortura pelo exército de seu país. E, de fato, também me interessou ver no próprio texto de Freud a importância que o sono tem na Psicanálise. Isso complica as coisas de uma maneira muito interessante, a qual nos leva muito além de certa vulgata, que fala apenas do papel dos sonhos. Claro, é o próprio Freud quem disse: fragmentos do inconsciente surgem durante a noite, determinadas coisas se manifestam devido a uma censura menos rígida que durante o dia. Por outro lado, diz ele ainda, o sonho serve também para ludibriar o inconsciente, pois nenhum desejo está sendode fato realizado durante a noite; há ali uma espécie de simulação em jogo, e essa falsa atividade permite com que o inconsciente tenha a impressão de que está realizando coisas, quando não está realizando absolutamente nada. Mas permitindo, no entanto, nesse intervalo de tempo, que o corpo repouse. Estamos diante de um sistema dialético: não apenas dormimos para poder sonhar, como também sonhamos para poder dormir.
No mais, foi uma experiência incrível reler Freud. Eu já tinha tido contato com alguns ensaios dele sobre a cultura, “Além do princípio do prazer”(6), Totem e tabu(7) etc., mas, dessa vez, decidi ler a Interpretação dos sonhos(8). Fiz isso durante aquele mesmo mês em que realizei as medições noturnas, e tive uma impressão que vivenciei poucas vezes na vida: a de sentir que estava lendo um texto “inaugural”, que marca um antes e um depois de alguma coisa. Ele tem consciência disse e, por isso, adultera a data de seu texto, para “inventar” o século XX. Mas confesso que fiquei ainda mais feliz em encontrar, em sua reflexão sobre o papel do sono, um Freud que foi também um homem de seu próprio tempo, fortemente marcado pelo contexto da Revolução Industrial no século XIX. As suas metáforas são maquínicas, e não apenas quando fala do “aparelho” psíquico. Encontramos ali comparações com válvulas de pressão, válvulas de escape, quantidades de energia – ele mesmo está pensando em termos quantitativos, e não creio que isso se deva apenas a sua formação como médico. Ele descreve o corpo como uma máquina e deixa muito claro que não é possível manter durante a noite a mesma quantidade de energia investida na censura diurna; a censura tem, então, que mudar de operação ou de “fase” durante a noite. E para dizer isso, ele se utiliza de uma metáfora que considero particularmente bonita: durante o dia, nós lemos ali, o pré-consciente funciona como uma barragem, represando o inconsciente. E, de fato, o inconsciente é este fluir, este fluxo, esta pressão incessante que é, de algum modo natural, que não depende do indivíduo. A este cabe apenas o controle do dispositivo, que de dia é barragem, e de noite se transforma em uma espécie de moinho. Como moleiros noturnos, nós agora controlamos a passagem do fluxo ao invés de barrar, segmentando as partes, fazendo a água passar de maneira controlada. É precisamente esse mecanismo de controle do fluxo de saída da água que caracteriza a atividade do vigia noturno, e por isso Freud dirá explicitamente no texto Sobre os sonhos(9) que o sonho funciona como uma espécie de vigia noturno do sono. É uma metáfora e tanto, temos de convir.
Lucia Grossi Gostei muito do seu trabalho. No meu doutorado, trabalhei a Interpretação dos sonhos, mas também passeei pela literatura, notadamente o Surrealismo(10). Essa ideia de que você tem um campo magnético da linguagem que se desdobra ali no sonho, esse trabalho de linguagem que se dá nos sonhos, condensação, deslocamento, é uma coisa incrível. E essa ideia dos surrealistas que você tem que viver nesse campo magnético, de ficar acordado escrevendo sem parar, não dormir para ficar no limbo... Fiquei pensando nisso, como eles forçaram o corpo ali, como o Breton(11) e o companheiro dele ficaram dias naquele Hotel dos Grandes Homens na praça do Panthéon para produzir alguma coisa nova, um novo trabalho, uma nova poesia, uma nova escrita a partir desse campo magnético. Eles vão criando várias formas, entre as quais a hipnose; Breton começa a hipnotizar o outro para trazer à tona uma outra produção. Eu acho que é também interessante essa ideia de não acordar, porque de algum modo traz a questão do corpo como objeto e a sua relação com o mundo ao redor.
DJ Fico muito feliz que você tenha trazido essa colocação para a conversa, pois minha maior fonte de inspiração na arte talvez venha da literatura. E no meu panteão pessoal estão os surrealistas. Mas é preciso distinguir as coisas: para mim há, ou houve, dois movimentos sob o mesmo nome: , por um lado, o surrealismo dos pintores e cineastas, com Salvador Dalí(12), Yves Tanguy(13), Max Ernst(14), Buñuel(15); por outro lado, o surrealismo dos escritores, ensaístas e poetas, como Breton, Aragon e cia. Me parece que se passou algo de realmente muito sério ali, entre esse pequeno grupo, sobretudo no período inicial do movimento, entre 1925 e 1929. À primeira vista, essas produções literárias parecem ser menos importantes do que a produção artística propriamente dita, pois estão baseadas em metodologias extraídas de jogos baratos e “ciência ocultas”. E, como sabemos, a História da arte oficial não costuma atribuir muita seriedade ao humor, muita dignidade ao Lado B. Pensem nos cadavres exquis(16) que eles faziam, fosse com texto ou desenho, ou ainda aquelas fotografias de grupos tiradas em feiras circenses, em parques de diversões... Eles faziam essas coisas porque viam ali algo de efetivamente relevante, porque estavam encantados com esse novo mundo da “baixa cultura” e do entretenimento modernos. O que eu acho que ocorre na escrita dos surrealistas – e que é basicamente o que eu tenho tentado transpor para o campo das artes visuais – é uma tentativa de intervir diretamente no curso da vida servindo-se de ferramentas literárias. Não se tratava tanto, para eles, de escrever sobre a própria vida; não da forma como os pintores e cineastas tentaram figurar as “imagens oníricas” sobre uma superfície material, fosse a celulose do filme ou a tela de pintura. Antes, eles ousaram lançar a si próprios, despertos, nesse campo magnético de que você falou antes, como se o desejo – aquilo que aparece no inconsciente – fosse o motor mesmo da existência como um todo. Os livros que foram produzidos nessa época, principalmente O camponês de Paris(17), de Louis Aragon(18), e Nadja(19), do Breton, são resultados de tal experiência concreta da vida, feita por meio da literatura. Me parece ser o início do que, hoje em dia, se convencionou chamar de “autoficção”, mas esse me parece ser um termo muito problemático. Porque, justamente, é um gesto que desafia a própria noção de ficção como uma representação, como um outro possível da realidade. Se olharmos com atenção para as primeiras páginas de Nadja, por exemplo, é possível encontrar ali algo da ordem de um manifesto contra a ficção. Breton se pergunta: por que preciso inventar um alter-ego, um duplo literário, se eu posso simplesmente dizer o que quero dizer aqui e agora? Ao fazer o autor e o personagem coincidir em um plano não ficcional, ele está colocando a si mesmo em uma posição extraliterária. Nós tendemos a confundir o surrealismo com a fantasia, com coisas extraordinárias; mas quando voltamos a esses primeiros livros hoje, nos espantamos que nada nunca acontece: “Ah, encontrei algo no mercado de pulgas!”. Certo, mas, e daí? Ora, o ponto é justamente o de dizer: o maravilhoso está no cotidiano, o extraordinário está no banal, a verdadeira arte está fora dos livros, dos filmes, dos quadros. Tem uma palavra que eles mesmos usam para descrever esse modo de escrita não ficcional: é a Mitologia. Penso que a grande intuição dos surrealistas tenha sido de que é possível fazer mitologia sem os Deuses, sem qualquer recurso ao fantástico. Se a mitologia pode prescindir de determinado conteúdo sobrenatural, então ela pode funcionar como uma forma literária, como um dispositivo narrativo específico, distinto da ficção, e passível de ser aplicado às suas (e nossas) próprias vidas.
Antonio Teixeira É o que Barthes faz.(20)
DJ Exatamente, mas ainda com uma leitura bastante negativa nos idos de 1958, quando escreve suas Mitologias(21). Posteriormente, ele vai mudar completamente de ideia, tomando a si próprio como objeto de seus escritos, nos anos 1970 e 80. No entanto, já em 1926, Aragon começava seu livro com um texto emblemático intitulado Prefácio a uma mitologia moderna. Ali, ele atribui-se esse lugar narrativo instável, móvel, mutável, como o centro provisório de um campo magnético de experiências compartilhadas. Isso acontece não porque sua experiência seja absolutamente única, mas, pelo contrário, porque decidiu prestar atenção naquilo que é absolutamente ordinário e, portanto, comum a todos. Podemos falar disso, se quiserem, do que é ficção e do que não é, de como essa retomada da ideia de mitologia tem uma lógica documentária avant la lettre... São questões teóricas que me interessam muito e que, em grande medida, alimentam minha prática artística. Notadamente, no que diz respeito ao lugar do indivíduo e suas representações, pensado a partir de um campo de dados extrassubjetivos, tais como a cidade, as pessoas, as coisas, os encontros etc. Como se, justamente, o inconsciente estivesse fora de nós e não escondido nas profundezas de uma psicologia qualquer.
Lucia Grossi O significante vem de fora.
DJ Essa é a palavra. O significante está trabalhando aqui de forma distinta de quando falamos, por exemplo, de um personagem literário, tal como o Raskolnikov(22). Todo mundo que leu Crime e castigo(23) conhece profundamente o Raskolnikov, e esteve em sua companhia durante muitos dias e muitas noites de leitura. Já o Robert Desnos(24), muitas pessoas o conheceram por meio de seus livros, mas algumas outras puderam ainda conhecê-lo pessoalmente na Paris dos anos 1920. Não em qualquer lugar da cidade, mas naqueles pontos de encontros específicos onde ele se reunia com seus companheiros; sabemos até hoje quais são esses endereços porque eles nos deram essas informações – e isso muda tudo. Os surrealistas estão sempre jogando com esses tipos de significantes indiciais. Não precisamos voltar ao básico: todo discurso é um constructo social, histórico, linguístico e, como tal, não deve ser confundido com o real. Este, por si só, não quer dizer nada, carece de significado. No entanto, o fato de que esse discurso “mitológico” se baseie em referentes extraliterários é de suma importância, pois transforma o sentido mesmo da referência ao real. Daí a importância que eles atribuíam também à fotografia, à presença de imagens em seus escritos. De novo, encontramos a mesma estratégia: não se trata ali de uma fotografia artística, “autoral”. Pelo contrário: a eles, interessava menos a artesania da imagem, a produção, o enquadramento etc., do que o que estava sendo efetivamente mostrado na imagem. No contexto daquelas narrativas “documentais”, o que interessa é que aquela foto comprove a existência dos fatos relatados: aquelas sessões de sono hipnótico, caminhadas, encontros em cafés e parques, e assim por diante. A imagem, nesse contexto de aderência ao real, produz a mesma substituição que se observa com a função de “autoria” dos textos: não se trata tanto de saber quem produziu tal fotografia, mas quem ou o que está ali sendo mostrado, ou melhor, sendo produzindo no ato mesmo de ser mostrado. Por isso os surrealistas estão tão interessados na fotografia instantânea, que é uma novidade na época: eles foram um dos precursores da valorização dos retratos automáticos nas cabines de 3 x 4, que chegam à Europa no fim da década de 1920. A primeira frase de Nadja é: “Quem sou eu?”, mas o nome estampado na capa do livro é o de outra pessoa. É totalmente lógico, porque, no fundo, se trata disto: de perguntar-se quem é o autor a partir do encontro com aquela outra pessoa, cuja existência real está também documentada.
Yolanda Vilela Em algum momento o diálogo de vocês me remeteu à obra de Michel Butor(25), que tem uma proposta diferente, mas que, de alguma forma, pode se aproximar disso ao trazer a questão do sonho, da matéria do sonho, a questão do devaneio. Sua questão é: como compartilhar o devaneio, a literatura como devaneio compartilhado? Nesse sentido, me lembrei de uma entrevista que Butor concedeu a um psicanalista, Jacques-Alain Miller(26), onde há uma discussão sobre a importância de se tentar fazer isso. O que ficou para mim é a questão: é preciso fazer o quê? Compartilhar um devaneio, um estado que a literatura propicia, onde está em questão o sonho, e a vida compartilhada, aquilo que se compartilha nesse estágio limítrofe entre o sono e a vigília e o sonho, e que é o devaneio... É apenas uma associação, algo a ser investigado, mas que me remeteu ao trabalho de Butor, que frequentou até certo ponto os surrealistas e passou a trabalhar com os objetos. Enfim, foi alguém que começou a fabricar objetos a partir de um certo momento.
DJ Não sou um grande leitor de Michel Butor, mas gosto da ideia de buscarmos um lugar para esse tipo específico de narrativa na qual está em jogo a tentativa de fazer a literatura fazer, uma espécie de dizer-fazer. É uma literatura que abre mão de certa profundidade, de certa densidade, tanto psicológica quanto histórica, filosófica, em prol de uma superficialidade atestada. É válido nos perguntarmos por que isso acontece. A mim parece que esses escritores estão, de fato, apostando todas as fichas no poder do documentário – formato que tendemos a associar apenas com o cinema –, mas que existe também na fotografia e na escritura, tentando apresentar uma palavra que, não apenas nos faz pensar, mas nos faz fazer algo também. Breton, após o itinerário percorrido em Nadja, já não é a mesma pessoa: aquilo o transformou subjetivamente, porque ele passou por uma experiência no processo criativo, mas também socialmente. Agora, aqueles que encontram Breton na rua vão poder investir naquela pessoa tudo o que foi narrado naquele livro. Por estar calcada em um mundo existente, esse tipo de obra termina por intervir diretamente nesse mesmo mundo, transformando-o. A razão pela qual essas obras operam no nível de certa superficialidade é que o mundo mesmo é essa superfície sobre a qual as ferramentas da arte incidem, e não papel, tela ou película. Mas essa superficialidade é apenas a ponta do pavio de algo que pode estourar a qualquer momento, e de maneira muito rica. Em um instante, estamos falando sobre as coisas mais banais e, subitamente, acabamos tocando no que há de mais importante na vida das pessoas – e não apenas dos artistas ou de seu público restrito.
Laura Rubião A partir desse raciocínio, volto ao seu trabalho O sono louco. Sei que não houve uma cura – e não era esse o objetivo –, mas me pergunto se não houve um despertar, justamente nesse momento de fazer o que se tem que fazer e de dizer o que se tem que dizer. Sobretudo, no que diz respeito a essa exigência pela sociedade de produtividade, onde você talvez se aliena nesse significante do preguiçoso, do dorminhoco. Me pergunto se não houve uma tentativa de dizer: não. Talvez haja um despertar aí, nessa recusa, no sentido em que você está dizendo que uma singularidade, mesmo fugindo à norma, à expectativa, à média, ainda assim pode capturar o outro a partir da arte.
DJ Perfeito, é exatamente isso. O trabalho não produziu cura porque ele não estava buscando cura em momento nenhum, mas é um trabalho que fez alguma coisa.
Laura Rubião Que disse o que tinha de dizer.
DJ E ele também disse isso com o corpo. Senti que não era suficiente ficar apenas elaborando teorias sobre a minha experiência subjetiva a partir de Freud. Aquilo tinha que ser operado fisicamente para produzir algum efeito. Pois, da mesma maneira que palavras, sob certas condições e contextos específicos, podem produzir efeitos reais, certas ações também podem criar sentido. Você termina por transformar o pensamento ao realizá-lo, ao concretizá-lo – para o bem como para o mal. Por exemplo, a cada vez que vejo um trocadilho cretino escrito em algum lugar, eu penso: “não acredito que alguém de fato materializou isso”. Mas às vezes, pelo contrário, a coisa pode dar frutos: certas ideias, ao serem realizadas, efetivadas, postas em prática, ganham uma materialidade, uma intensidade completamente distinta.
Laura Rubião E tocam o outro.
DJ Isso, tocam o outro de uma maneira completamente distinta daquilo que está simplesmente circulando na intersubjetividade. Meus trabalhos têm, sim, uma função terapêutica, de promover uma forma de autoanálise constante. Quando eu consigo – ou melhor, tento – me esquadrinhar a partir de outras perspectivas, eu sinto que minha compreensão de mim mesmo evolui ou se transforma sensivelmente. De fato, o trabalho do Sono trouxe uma compreensão melhor sobre os meus processos internos, sobre o que pode haver de uma eventual recusa em acordar, talvez uma vontade de não confrontar determinadas coisas, ou de estar feliz em gozar com o sintoma. Agora, para todos os efeitos, eu sou essa pessoa que não consegue acordar, tornei-me mais ou menos conhecido pelo problema que apresentei. São riscos, sobretudo em uma sociedade que tende a medicalizar tudo, mas o trabalho me fez evoluir na lida com o sintoma. Hoje em dia, por exemplo, se tenho que acordar cedo, como hoje, excepcionalmente, para estar aqui, eu consigo. No entanto, se eu tivesse que estar aqui dois dias seguidos, eu poderia eventualmente conseguir; já três ou quatro, certamente não. O que faço com isso? Primeiro, ter claro que meus compromissos fixos devem ser assumidos pela tarde ou à noite. O que mudou depois desse trabalho é que antes eu acordava às 10, 11, 12, 13, 14 horas sentindo uma angústia terrível: “Meu Deus, eu perdi o dia, está tudo acabado!” E eu não conseguia usar o restante das horas de que eu dispunha no dia. Hoje, sinto que consegui tomar as rédeas do meu dia, descartando a culpa. Talvez pelo gozo do sintoma? É possível. Embora eu continue tentando acordar certa hora – todo dia tem um despertador tocando –, eu agora me levanto a hora que for e me pergunto: “Certo, quantas horas eu tenho ainda? Vamos ver o que dá para fazer com isso?” Eu desenvolvi uma rotina em que trabalho de maneira consistente entre meio-dia e dez da noite, e que considero estar de bom tamanho. Então, de certa forma, você tem razão, esse trabalho me ajudou muito. Ele tem um aspecto terapêutico forte, assim como outros trabalhos que realizei nos últimos anos, que é basicamente o de extirpar a culpa, que é a pior coisa que existe no mundo. Pior que a inveja, muito pior que a raiva. A culpa é uma espécie de ego trip, em que começamos a pensar: não estou conseguindo dar conta das coisas, todos são melhores que eu, meu trabalho é uma fraude. Não, calma. Porque não é sobre você o tempo todo, e mesmo quando é sobre você, é sobre muito mais do que você como indivíduo. A perspectiva de que a culpa é também um fenômeno coletivo me traz certa tranquilidade, me permite certo distanciamento dessa perspectiva autocentrada.
Paula Brant Gostaria de fazer uma última pergunta: retomando aquela relação com o mundo do trabalho, me parece que esse seu trabalho pode ser lido como um elogio ao intervalo entre o despertador – que é o patrão – e o despertar. Me pergunto então se fazer durar esse intervalo, entre o despertador e o despertar, estaria em uma posição de subversão dessa lógica do capital – do despertador como esse objeto emblemático do capitalismo – e o despertar como uma posição subjetiva, algo do sujeito do inconsciente. Laura colocou que não se trata de uma alienação ao significante dorminhoco, pelo contrário, transcende, pois eleva esse objeto a uma dignidade de coisa, que tem a ver com todos nós. Ora, se o elogio ao intervalo, se é que se trata disso, implica em dilatar um pouco esse transitivismo, o intervalo não estaria justamente em conseguir dilatar esse espaço entre eu e o outro?
DJ Essa ideia de olhar para si próprio como se fosse o outro, isso acontece num espaço de intervalo. Me preocupei em construir o Sono Louco de forma a evitar recair na tentação de recorrer a oposições, mesmo as aparentemente mais saudáveis. Por exemplo: o capitalismo é uma construção que desregula o nosso biorritmo, ele é uma coisa nefasta; sim, mas por outro lado, ele é constitutivo de uma série de coisas que nos constituem hoje, entre as quais a psicanálise está incluída. O capitalismo é produtor da noção de sujeito moderno, via a construção do indivíduo burguês, e essas são coisas que não vamos explodir de uma hora para a outra. Posso dar um exemplo bem banal, que mostra como essas coisas estão entranhadas no nosso cotidiano, no modo como pensamos as coisas: no avião vindo para cá eu estava lendo aquela revista de bordo, e a reportagem falava de aplicativos que facilitam a vida dos moradores de prédios e condomínios. Um desses aplicativos permitia que todos os condôminos estivessem conectados a todo momento em salas de bate-papo. E imaginem só isso: uma reunião de condomínio interminável. Queríamos evitar esse encontro, mas agora essas questões vão entrar no interior das nossas casas, nas nossas camas, nos nossos poros. A mesma coisa com as câmeras: abrimos mão de nossa privacidade pelo bem comum do condomínio. Todos estão sendo agora vigiados o tempo todo. Mas, de forma inocente, pensei: Ah, se agora todos podem vigiar todos os lugares, então não há mais necessidade de um vigia. Mas, não! A ideia do aplicativo era de que todos pudessem agora vigiar a ronda dos vigias através das câmeras de segurança pelo aplicativo. A tecnologia muda, mas é exatamente a mesma situação das fábricas do século XIX. Os vigias já não viram mais chaves em um relógio de ponto, agora eles escaneiam em seus telefones um QR Code que está na parede. É a mesmíssima coisa: agora todos somos os patrões. É claro que eu tenho muito mais empatia pelo proletário, que está ainda hoje lá fazendo isso, do que pelo patrão. Mas é interessante notar que o próprio Freud, em sua análise dos sonhos e do sono, está absolutamente preso dentro desse jogo de vigilância do capitalismo. Por isso, o mesmo Jonathan Crary(27), de quem falei antes, vai acusar a psicanálise freudiana de ter “privatizado” o sonho, de reduzir todo o espectro do sonho a uma coisa que o indivíduo resolve pagando alguém, numa sala, em um escritório, em uma transação comercial privada. De fato, podemos dizer que o sonho não é isso, o sonho é todo um imaginário de uma comunidade, há um aspecto social relevante no sonho. Por outro lado, sabemos que quando Freud fala do inconsciente, não se trata do “meu” inconsciente. Ao contrário: “eu” sou a função do inconsciente, “eu” sou aquele que está controlando o fluxo energético do inconsciente. Desse modo, podemos pensar que mesmo aquele patrão dormindo, que acredita controlar todo mundo por meio do relógio de ponto; mesmo esse patrão é também, em certa medida, um proletário de si mesmo. Pois ele é também o encarregado de vigiar o funcionamento da maquinaria da sua própria psique. Era esse tipo de leitura mais ambígua do capitalismo (e da opressão) que eu estava procurando nos escritos de Freud; e foi por isso que pensei ser interessante utilizá-los no contexto do trabalho do Sono. Esse método é tenebroso, ele foi criado para isso, para esse controle tenebroso do outro, mas tento utilizar o mesmo método às avessas, a fim de fazê-lo significar outra coisa: se eu mesmo me infligir esse método de controle, posso esquivar a figura do patrão, eu mesmo posso tentar ter algum controle sobre o que está acontecendo comigo. Todos os meus trabalhos tentam lidar com essa dinâmica ambígua, de troca, de permuta, com a possibilidade de pensarmos as coisas de diversos ângulos, sem jamais abandonar nossa própria experiência. Por isso, posso estar aqui falando com vocês há um bom tempo, sobre uma boa quantidade de coisas, mais ou menos interessantes, mas ainda assim sigo sem poder conseguir acordar pelas manhãs. Essa é a minha experiência, e é inalienável.
Sandro Boaventura Que bom que você dorme muito Daniel, porque você trabalha bastante quando está acordado.
DJ Mas, se pensarmos bem, e forçando ainda um pouco mais essa ambiguidade do capitalismo, essa obra foi também uma tentativa de trabalhar mesmo enquanto estava dormindo. [risos]
Yolanda Vilela Gostaria de agradecer ao Daniel, mais generoso que eu poderia supor, agradecer o seu bem-dizer. Vamos encontrar as ressonâncias desse encontro, que terá certamente muitos desdobramentos. Não sei como te agradecer.
DJ Já está mais do que agradecido. Agora minha vez: obrigado a todas e a todos pela paciência.
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Daniel Jablonski é artista, professor – ele atualmente leciona e coordena o curso de Histórias da Arte Moderna e Contemporânea, no Museu de Arte de São Paulo – e também pesquisador independente. Em sua produção multifacetada encontram-se instalações, performances, fotografias e publicações impressas, entre outros formatos. Daniel já assinou algumas traduções e é também autor de ensaios. Mas por que uma conversa com esse artista, precisamente neste momento, e em torno desta obra em particular? É preciso lembrar que O sono louco, obra que nos interessa aqui, tem como base uma “experiência caseira” realizada pelo artista em 2013. A fim de se autodiagnosticar portador de uma “disfunção” de sono ainda desconhecida, consistindo na impossibilidade de acordar na hora certa, Daniel dormiu durante um mês amarrado a um antigo relógio de ponto portátil. Usado desde meados do século XIX para assegurar que os vigias noturnos realizavam suas rondas em fábricas e galpões, tal dispositivo serviria a Daniel como uma forma de manter um registro mecânico de sua atividade noturna. Posteriormente, em um ensaio homônimo publicado na Revista Poiésis, da Universidade Federal Fluminense, o artista fez ainda da psicanálise um instrumento ativo de sua investigação, buscando interpretar os resultados daquele experimento à luz dos escritos de Freud. Os significantes postos em movimento aqui, como o sono, o sonho, o tempo, o despertar, a loucura e a vigília, remeteram-me aos dois grandes temas de trabalho da EBP-MG em 2019: o tempo, que é o tema de trabalho da Jornada prevista para novembro, cujo título é Num claro instante: o tempo na experiência analítica, e o tema do sonho, proposto para o próximo congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), que acontecerá em Buenos Aires, em abril de 2020: O sonho: sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano. É com muita alegria que te recebemos hoje, Daniel Jablonski. Fazemos parte desse público tocado por sua produção artística, que leva a lugares inesperados essas experiências, em aparência banais, de que estão repletas nosso quotidiano. Sua narrativa nos despertou, de alguma forma, ainda que por um breve instante, antes que nos abandonássemos novamente ao sono.
Frederico Feu Daniel, gostaria de colocar três questões que vieram de imediato: você se curou? A experiência modificou algo de seu sintoma?
Daniel Jablonski Não. [risos]
Frederico Feu A segunda pergunta: é possível despertar? Pensando em um campo mais amplo, inclusive da política? E a terceira: eu queria pensar como você se inclui no trabalho artístico, pensando na sua trajetória, em direção à arte. Você tem um percurso na filosofia, na filosofia da ciência, na história da arte, enfim, mas como você chega ao trabalho do artista? Entre fazer sonhar e despertar, levando em conta a sua trajetória, como você situaria o trabalho do artista?
DJ Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Yolanda, pela leitura atenta do ensaio e pela descrição, pelo menos para mim, muito clara, do que foi esse experimento. Agora, tentando responder a sério a primeira pergunta do Frederico: se me curei? Não, pois nunca se tratou disso. Meu objetivo não era alcançar uma cura, mas, antes disso, identificar um problema, abrir um campo de questionamentos. Campo que pudesse dizer respeito não apenas a mim, à minha experiência pessoal, mas também à de outras pessoas. “– Garoto, levanta da cama e vai trabalhar! Deixa de preguiça, vamos fazer as coisas!” Foi o que eu sempre ouvi, a vida inteira. E, após anos tentando (e falhando miseravelmente em) acordar na hora certa, me ocorreu o seguinte pensamento: e se isso que estou vivendo todos os dias de manhã, na minha própria cama, de pijama, descabelado, for mais que uma anedota? E se for uma espécie de patologia, ou doença, ou distúrbio do sono desconhecido? Afinal, há sempre um primeiro caso... Ora, se isto for verdade, então significa que outras pessoas podem estar passando por algo muito similar. Pois uma doença é, por definição, um fenômeno coletivo: ela pode ter atingido apenas uma pessoa no mundo inteiro, mas, ainda assim, ela tem uma estrutura que a torna repetível, iterável. Padecer de algo, por mais solitário e angustiante que possa ser para esse ou aquele indivíduo, é também uma forma de pertencer a uma coletividade. Por isso, resolvi fazer essa experiência usando o relógio de ponto, que geralmente delegamos a outros, e também de usar a psicanálise como ferramenta interpretativa para minha condição. Pois estava em busca de uma chave de leitura, de um saber, enfim, de um campo de atividades que fosse contemporâneo a essa época de ouro do relógio de ponto: a emergência do capitalismo industrial, com suas neuroses do trabalho, como o controle do tempo, a vigilância etc. Esse protocolo foi também uma maneira de situar a experiência, mais além do campo da medicina – onde eu seria objeto de uma análise alheia –, no da psicanálise, onde a ideia de uma autoanálisepoderia aplicar-se em algum ponto. Nesse sentido, formular (e tentar responder) uma questão a partir de minha própria experiência foi uma tentativa de olhar para mim mesmo da perspectiva de um outro, ou melhor, de olhar para mim mesmo como se fosse um outro. Gesto que é efetivamente político, pois situa o despertar – assim como sugeriu Walter Benjamin(2) no seu Livro das passagens – na esfera da coletividade, com suas implicações diretas à organização do mundo do trabalho e o lugar do indivíduo na luta de classes, ontem e hoje. Mas fundamentalmente, ao me desdobrar em objeto e sujeito da investigação, eu queria fazer da minha experiência um ponto de apoio para que outros pudessem se identificar. Queria que outras pessoas pudessem ver esse trabalho e dizer: – “Ah, eu sei o que é isso, também tenho esse sintoma! Você conseguiu formular uma coisa que eu achei que era só minha, que fazia parte somente do meu quadro de problemas, sem nome, insignificante”.
Não procurar a resposta, às vezes, é a chave para encontrá-la. Sei que pode parecer um truísmo, mas, antes de mais nada, é preciso ter clareza sobre a natureza da pergunta. Essa é uma maneira de pensar que, de fato, tem a ver com minha formação prévia. Quando nos confrontamos com a longa e complexa história da filosofia ocidental, fica muito claro que nenhum problema foi jamais resolvido, por mais brilhantes que tenham sido seus intérpretes. Isso não é necessariamente ruim. Ao contrário, a genialidade desses indivíduos consistiu no fato de terem conseguido formular a questão adequada ao seu próprio tempo. Ao reconfigurar os questionamentos do passado, ao reler os clássicos de modo a encontrar sua atualidade, eles encontraram sua eficácia para o tempo presente, eles deram voz a toda uma época. (Hoje, diga-se entre parênteses, ninguém está mais se perguntando sobre a imortalidade da alma, que foi questão central durante quase todo o período da escolástica; bem, pelo menos não em filosofia.) Mas, vejam bem, não estou me incluindo nesse cânone, de forma alguma, tenho inúmeras restrições em relação à filosofia – notadamente suas pretensões universalistas, essa sua maneira demasiado distanciada, aparentemente segura, de pensar as coisas. Aliás, foi uma dessas restrições que me levou ao campo da arte. Me parecia que a filosofia, em sua obstinação a separar o essencial do contingente, terminava por perder de vista a própria vida, descolando-se daquilo que realmente nos atravessa, no dia a dia, como indivíduos concretos. Minha passagem ao campo da arte tem muito a ver com uma vontade de prestar atenção em coisas que, de um ponto de vista estritamente filosófico, não são “dignas de serem pensadas”. O que tenho tentado fazer em meus trabalhos de arte é identificar situações onde aparentemente não há qualquer necessidade para teoria, na experiência do mais trivial, do que há de mais rasteiro em nosso cotidiano. E isso, me servindo justamente dos métodos de análise, de autoanálise, de hermenêutica com os quais tive contato antes, a fim de tecer uma relação com o mundo que me diga respeito para além de um ponto de vista meramente intelectual. No mundo acadêmico, aprendemos todos a produzir um trabalho, um ensaio, um artigo, que trata de tal leitura X do conceito Y do autor Z em uma perspectiva W. Mas eu tinha essa angústia muito forte na época: “Certo, mas o que eu tenho a ver com isso?” Já no campo da arte, esse círculo vicioso se traduz de outra maneira, totalmente oposta à academia, mas igualmente problemática; muitas vezes vejo coisas sendo justificadas: “porque eu acho, porque eu sinto, porque a minha sensibilidade é essa”. Ora, é preciso perguntar-se honestamente: importa mesmo ao outro como vocêvê as coisas? Qualquer estudante de primeiro ano de graduação de filosofia sabe que a resposta é, na maior parte dos casos, não. Nesse sentido, considero que minha chegada “tardia” ao campo da arte tenha sido benéfica para minha produção (embora não tanto para minha carreira de “jovem artista”). Como artista, não estou em busca de uma subjetividade mais “autêntica”, mas, pelo contrário, de uma certa “objetividade” de que goza o pesquisador quando age como um operador de ideias e conceitos que, como tal, podem ser manipulados, aplicados e, portanto, também questionados por seus pares. Fazer arte como pesquisa é uma tentativa de conjugar uma preocupação acadêmica – o que diz respeito a todos nós – com uma preocupação talvez um pouco egoísta, mas que dá conta de uma série de desejos que são perfeitamente válidos – que é perguntar-se: quem sou eu? Na academia, eu tinha impressão de que não poderia realizar um cruzamento desses, uma teoria aplicada à experiência. Curiosamente, foi ainda no mestrado em Filosofia que encontrei a definição mais bonita (e radical) do que podia ser a arte. Tive aí um professor um pouco sui generis, que também era secretamente artista, e que dizia o seguinte: “Arte é um jeito de prestar atenção”. A arte não tem qualidades intrínsecas, não é bela ou feia, radical ou complacente, não é nada disso, não necessariamente; é apenas um jeito de prestar muita atenção em alguma coisa por certo período de tempo. Nós não sabemos de antemão do que se trata; pode ser qualquer coisa, uma situação, um objeto, um lugar, uma pessoa. Mas vista como se valesse a pena, como se tudo à nossa volta dependesse daquilo. De maneira a fazer algo despertar para nós.
Cristina Vidigal Daniel, eu também vim aqui pessoalmente atravessada pelo texto que você escreveu. Pensei em várias coisas, sendo a primeira: por que você elegeu esse nome para o seu problema de sono? “Transtorno transitivo” me remeteu a Amar, verbo intransitivo(3)... Porque você não disse simplesmente um “transtorno transitório”, para o qual você vai buscar um tratamento. Eu, por exemplo, sofri um transtorno – um dia eu fiquei tonta e caí. Mas foi transitório, era algo que ia passar, que ia eventualmente se curar. Mas o que você disse foi transitivo, e adorei isso, pois o transitivo é algo que pede um complemento, uma sequência, sem necessariamente anunciar um fim. Outra coisa que me atravessou de um ponto de vista pessoal: vocês sabem que eu sou mãe, e mãe de um dorminhoco. Conheço bem alguém lá em casa que se recusa a acordar de manhã, não aguenta, não consegue. Assim, eu venho processando essas coisas, também estou nesse trabalho do despertar.
DJ Este trabalho é também, potencialmente, sobre seu filho. Ele poderia usar o meu método para testar seu próprio sono. E isso, para mim, é fundamental: que a experiência possa ser replicada, que outros possam se apropriar do sistema, testá-lo e tirar suas próprias conclusões. Claro, tenho consciência das dificuldades: primeiro, de se encontrar um desses antigos relógios de ponto de vigia noturno; e, mais além, de aplicar o procedimento, que é bastante inconveniente, para dizer o mínimo. Explico: ele consiste em dormir, por certo período de tempo (eu usei um mês), amarrado a um relógio que pesa uns quatro quilos, o que torna impossível se mexer durante a noite. Mas esse inconveniente é também significativo, pois nos ajuda a imaginar o que significava carregar isso amarrado em torno de si, como faziam os vigias noturnos em suas rondas nas fábricas, uma e outra vez, de um lado para o outro, todas as noites. O sistema original funcionava assim: a cada hora, ou meia hora, o vigia introduzia e girava uma chave nesse dispositivo, o qual imprimia a hora e o local em uma bobina que estava no seu interior. As chaves estavam espalhadas pela fábrica, obrigando-os a seguir um itinerário pré-determinado. No dia seguinte, pela manhã, o patrão abria o dispositivo com outra chave e conferia a bobina; se estivesse faltando algum intervalo de horário, isso significava que o empregado havia dormido e ele estaria demitido automaticamente. Cabe aqui perguntar: para que servia isso exatamente? E a resposta é: para nada, pelo menos não em termos práticos. Mas essa “não-serventia” diz muito também sobre certa neurose estruturante do capitalismo. No fundo, esse dispositivo servia “apenas” para que o patrão, o dono da fábrica, pudesse ter certeza que o vigia esteve mesmo vigiando a fábrica durante a noite. Ele servia, portanto, para que este, mesmo enquanto dormia confortavelmente em sua cama, pudesse vigiar o seu vigia, garantindo que aquele não dormisse hora nenhuma. Como sabemos, relógios são (e sempre foram) dispositivos de controle, peças-chave no processo da divisão do trabalho, mas esse relógio de ponto leva esse princípio a um paroxismo: é realmente um método sádico de coerção corporal. A virada desse meu trabalho está, talvez, no fato de que, ao submeter-me a este sadismo, eu posso ser simultaneamente o patrão, aquele que está dormindo, e o vigia, aquele que está lutando contra o sono.
Sobre o caráter transitivo do trabalho: você sublinha esta palavra, e com razão. Pois bem, com ela, eu estava querendo evitar essa ideia de que o transtorno pudesse ser transitório, algo que fosse simplesmente passar. Eu tenho esse problema desde a mais tenra infância e, de certa forma, estou convencido de que não vai passar. Recentemente, eu cheguei mesmo a reinterpretar toda a minha escolaridade à luz dessa questão. Afinal, por que outra razão eu teria detestado a escola se, no fundo, sempre gostei de ler e tinha ótimos amigos, se não sofria bullying, se não tinha nada de errado na minha infância? Então cheguei à conclusão: o problema era que tinha que estar ali naquele maldito pátio todos os dias às oito da manhã, e esse horário era simplesmente impossível para mim, eu não conseguia me adequar. Quando comecei a fazer esse trabalho, parti da premissa de que era algo fadado a se reproduzir, todos os dias. Ao invés de seguir com esse calvário, de tentar lutar contra o despertador todas as manhãs, um dia eu decidi olhar a coisa de frente – isto é,como uma questão a ser pensada e não apenas em um problema a ser superado. E foi pensando a respeito que cheguei à palavra “transitivo”. Pois não me parecia ser uma questão “quantitativa”, esse vício da ciência moderna de ficar medindo todas as coisas, nem mesmo “qualitativa”, no sentido de me interrogar sobre o caráter suficientemente restaurador do sono. Minha intuição de partida era de que se tratava de um problema de transição entre estados; assim como a insônia, em que a dificuldade está justamente na passagem da vigília ao sono, que parece não vir nunca.
Cristina Vidigal Eu conheço bem.
DJ Pois é, eu não, só por descrições alheias. Não sei o que é, nunca experimentei essa sensação, comigo simplesmente não acontece. Fiquei então me perguntando: o que seria o inverso da insônia? Como se dá essa transição do despertar, em que passamos de um momento de certa inconsciência para a vigília, para essa primeira fase, ainda turva, da consciência? Se trata de uma questão complexa, pois, em todo rigor, nós não estamos lá nesse momento, pelo menos não em termos de consciência, de “eu”. Talvez aí resida outro sentido da ideia de transitividadeque você levanta, pois a experiência do despertar é importante, fundamental mesmo, mas ela sozinha não se basta. Como qualquer outra experiência, ela exige uma interpretação, uma leitura, um sentido. Ela exige atenção. Há uma pichação, do Maio de 1968, se não em engano, que me parece paradigmática: “Exagerar; eis a arma!” É para mim quase um lema. E diante de minhas obras, sempre tem alguém que comenta: “Será que você não está exagerando um pouco? Será que não está sobrevalorizando uma coisa que não tem nenhuma importância?” Ora, o que estou tratando de dizer é: “Sim, mas perceba quanta coisa sai dessa matéria ínfima!”. O trabalho do Sonoparte dessa mesma premissa: um momento absolutamente trivial, que se repete a cada dia, em que estou na cama dormindo e me vejo obrigado a acordar, como todo mundo. No meu caso específico, havia uma excepcionalidade, um sintoma, poderíamos dizer. Mas ela se joga contra um quadro de expectativas “padrão”, em que percebo estar inserido em um sistema de trabalho, das expectativas de horas de produção, de controle e de autocontrole, ao qual eu preciso responder. (Aliás, diga-se também entre parênteses, fui demitido do único emprego fixo que tive na vida por não conseguir chegar lá todo dia às 11 horas da manhã.) Assim, é perfeitamente possível estar vivendo uma experiência sozinho na cama, babando, e ao mesmo tempo estar atravessado por questões complexas de biopolítica, como a alienação, o automatismo, o controle corporal. Da mesma forma como os estudantes na França, em 1968, pareciam estar falando “apenas” sobre as condições do acesso de meninas às suas acomodações universitárias. Mas era também, e sobretudo, sobre a natureza mesma do desejo e sobre os mecanismos que a sociedade da época lançava para tolhê-lo.
Cristina Vidigal Acho que isso foi muito inspirador no seu texto. Fiquei pensando que, articulado ao sono, estão os sonhos. Você diz no seu texto que se lembra muito pouco dos sonhos, e nós sabemos que os sonhos têm esse trabalho importantíssimo e maravilhoso, e cujo valor é reconhecido pelas pessoas, também a partir de uma experiência. Aliás, já fizeram uma experiência inversa: a de interromper o sonho, de não deixar a pessoa sonhar. Isso gerou fenômenos alucinatórios na vigília. Não deixar sonhar é uma experiência hipertranstornante para o ser humano. Achei muito bem posta a colocação de articular o sono, o despertar e o sonho ligada a essa ideia da interpretação, que eu acho fundamental neste trabalho, no trabalho que é a vida cotidiana. Viver dá trabalho, não é?
DJ Não tem nada mais cansativo do que viver. E você tem razão também quando fala da interrupção do sono como causa de transtornos, não apenas psíquicos como fisiológicos. Essa experiência já foi inclusive realizada em contextos militares. O Jonathan Crary(4), um filósofo norte-americano, escreveu um livro interessante chamado 24/7 - Capitalismo tardio e os fins do sono(5), no qual relata a privação de sono sendo utilizada como método de tortura pelo exército de seu país. E, de fato, também me interessou ver no próprio texto de Freud a importância que o sono tem na Psicanálise. Isso complica as coisas de uma maneira muito interessante, a qual nos leva muito além de certa vulgata, que fala apenas do papel dos sonhos. Claro, é o próprio Freud quem disse: fragmentos do inconsciente surgem durante a noite, determinadas coisas se manifestam devido a uma censura menos rígida que durante o dia. Por outro lado, diz ele ainda, o sonho serve também para ludibriar o inconsciente, pois nenhum desejo está sendode fato realizado durante a noite; há ali uma espécie de simulação em jogo, e essa falsa atividade permite com que o inconsciente tenha a impressão de que está realizando coisas, quando não está realizando absolutamente nada. Mas permitindo, no entanto, nesse intervalo de tempo, que o corpo repouse. Estamos diante de um sistema dialético: não apenas dormimos para poder sonhar, como também sonhamos para poder dormir.
No mais, foi uma experiência incrível reler Freud. Eu já tinha tido contato com alguns ensaios dele sobre a cultura, “Além do princípio do prazer”(6), Totem e tabu(7) etc., mas, dessa vez, decidi ler a Interpretação dos sonhos(8). Fiz isso durante aquele mesmo mês em que realizei as medições noturnas, e tive uma impressão que vivenciei poucas vezes na vida: a de sentir que estava lendo um texto “inaugural”, que marca um antes e um depois de alguma coisa. Ele tem consciência disse e, por isso, adultera a data de seu texto, para “inventar” o século XX. Mas confesso que fiquei ainda mais feliz em encontrar, em sua reflexão sobre o papel do sono, um Freud que foi também um homem de seu próprio tempo, fortemente marcado pelo contexto da Revolução Industrial no século XIX. As suas metáforas são maquínicas, e não apenas quando fala do “aparelho” psíquico. Encontramos ali comparações com válvulas de pressão, válvulas de escape, quantidades de energia – ele mesmo está pensando em termos quantitativos, e não creio que isso se deva apenas a sua formação como médico. Ele descreve o corpo como uma máquina e deixa muito claro que não é possível manter durante a noite a mesma quantidade de energia investida na censura diurna; a censura tem, então, que mudar de operação ou de “fase” durante a noite. E para dizer isso, ele se utiliza de uma metáfora que considero particularmente bonita: durante o dia, nós lemos ali, o pré-consciente funciona como uma barragem, represando o inconsciente. E, de fato, o inconsciente é este fluir, este fluxo, esta pressão incessante que é, de algum modo natural, que não depende do indivíduo. A este cabe apenas o controle do dispositivo, que de dia é barragem, e de noite se transforma em uma espécie de moinho. Como moleiros noturnos, nós agora controlamos a passagem do fluxo ao invés de barrar, segmentando as partes, fazendo a água passar de maneira controlada. É precisamente esse mecanismo de controle do fluxo de saída da água que caracteriza a atividade do vigia noturno, e por isso Freud dirá explicitamente no texto Sobre os sonhos(9) que o sonho funciona como uma espécie de vigia noturno do sono. É uma metáfora e tanto, temos de convir.
Lucia Grossi Gostei muito do seu trabalho. No meu doutorado, trabalhei a Interpretação dos sonhos, mas também passeei pela literatura, notadamente o Surrealismo(10). Essa ideia de que você tem um campo magnético da linguagem que se desdobra ali no sonho, esse trabalho de linguagem que se dá nos sonhos, condensação, deslocamento, é uma coisa incrível. E essa ideia dos surrealistas que você tem que viver nesse campo magnético, de ficar acordado escrevendo sem parar, não dormir para ficar no limbo... Fiquei pensando nisso, como eles forçaram o corpo ali, como o Breton(11) e o companheiro dele ficaram dias naquele Hotel dos Grandes Homens na praça do Panthéon para produzir alguma coisa nova, um novo trabalho, uma nova poesia, uma nova escrita a partir desse campo magnético. Eles vão criando várias formas, entre as quais a hipnose; Breton começa a hipnotizar o outro para trazer à tona uma outra produção. Eu acho que é também interessante essa ideia de não acordar, porque de algum modo traz a questão do corpo como objeto e a sua relação com o mundo ao redor.
DJ Fico muito feliz que você tenha trazido essa colocação para a conversa, pois minha maior fonte de inspiração na arte talvez venha da literatura. E no meu panteão pessoal estão os surrealistas. Mas é preciso distinguir as coisas: para mim há, ou houve, dois movimentos sob o mesmo nome: , por um lado, o surrealismo dos pintores e cineastas, com Salvador Dalí(12), Yves Tanguy(13), Max Ernst(14), Buñuel(15); por outro lado, o surrealismo dos escritores, ensaístas e poetas, como Breton, Aragon e cia. Me parece que se passou algo de realmente muito sério ali, entre esse pequeno grupo, sobretudo no período inicial do movimento, entre 1925 e 1929. À primeira vista, essas produções literárias parecem ser menos importantes do que a produção artística propriamente dita, pois estão baseadas em metodologias extraídas de jogos baratos e “ciência ocultas”. E, como sabemos, a História da arte oficial não costuma atribuir muita seriedade ao humor, muita dignidade ao Lado B. Pensem nos cadavres exquis(16) que eles faziam, fosse com texto ou desenho, ou ainda aquelas fotografias de grupos tiradas em feiras circenses, em parques de diversões... Eles faziam essas coisas porque viam ali algo de efetivamente relevante, porque estavam encantados com esse novo mundo da “baixa cultura” e do entretenimento modernos. O que eu acho que ocorre na escrita dos surrealistas – e que é basicamente o que eu tenho tentado transpor para o campo das artes visuais – é uma tentativa de intervir diretamente no curso da vida servindo-se de ferramentas literárias. Não se tratava tanto, para eles, de escrever sobre a própria vida; não da forma como os pintores e cineastas tentaram figurar as “imagens oníricas” sobre uma superfície material, fosse a celulose do filme ou a tela de pintura. Antes, eles ousaram lançar a si próprios, despertos, nesse campo magnético de que você falou antes, como se o desejo – aquilo que aparece no inconsciente – fosse o motor mesmo da existência como um todo. Os livros que foram produzidos nessa época, principalmente O camponês de Paris(17), de Louis Aragon(18), e Nadja(19), do Breton, são resultados de tal experiência concreta da vida, feita por meio da literatura. Me parece ser o início do que, hoje em dia, se convencionou chamar de “autoficção”, mas esse me parece ser um termo muito problemático. Porque, justamente, é um gesto que desafia a própria noção de ficção como uma representação, como um outro possível da realidade. Se olharmos com atenção para as primeiras páginas de Nadja, por exemplo, é possível encontrar ali algo da ordem de um manifesto contra a ficção. Breton se pergunta: por que preciso inventar um alter-ego, um duplo literário, se eu posso simplesmente dizer o que quero dizer aqui e agora? Ao fazer o autor e o personagem coincidir em um plano não ficcional, ele está colocando a si mesmo em uma posição extraliterária. Nós tendemos a confundir o surrealismo com a fantasia, com coisas extraordinárias; mas quando voltamos a esses primeiros livros hoje, nos espantamos que nada nunca acontece: “Ah, encontrei algo no mercado de pulgas!”. Certo, mas, e daí? Ora, o ponto é justamente o de dizer: o maravilhoso está no cotidiano, o extraordinário está no banal, a verdadeira arte está fora dos livros, dos filmes, dos quadros. Tem uma palavra que eles mesmos usam para descrever esse modo de escrita não ficcional: é a Mitologia. Penso que a grande intuição dos surrealistas tenha sido de que é possível fazer mitologia sem os Deuses, sem qualquer recurso ao fantástico. Se a mitologia pode prescindir de determinado conteúdo sobrenatural, então ela pode funcionar como uma forma literária, como um dispositivo narrativo específico, distinto da ficção, e passível de ser aplicado às suas (e nossas) próprias vidas.
Antonio Teixeira É o que Barthes faz.(20)
DJ Exatamente, mas ainda com uma leitura bastante negativa nos idos de 1958, quando escreve suas Mitologias(21). Posteriormente, ele vai mudar completamente de ideia, tomando a si próprio como objeto de seus escritos, nos anos 1970 e 80. No entanto, já em 1926, Aragon começava seu livro com um texto emblemático intitulado Prefácio a uma mitologia moderna. Ali, ele atribui-se esse lugar narrativo instável, móvel, mutável, como o centro provisório de um campo magnético de experiências compartilhadas. Isso acontece não porque sua experiência seja absolutamente única, mas, pelo contrário, porque decidiu prestar atenção naquilo que é absolutamente ordinário e, portanto, comum a todos. Podemos falar disso, se quiserem, do que é ficção e do que não é, de como essa retomada da ideia de mitologia tem uma lógica documentária avant la lettre... São questões teóricas que me interessam muito e que, em grande medida, alimentam minha prática artística. Notadamente, no que diz respeito ao lugar do indivíduo e suas representações, pensado a partir de um campo de dados extrassubjetivos, tais como a cidade, as pessoas, as coisas, os encontros etc. Como se, justamente, o inconsciente estivesse fora de nós e não escondido nas profundezas de uma psicologia qualquer.
Lucia Grossi O significante vem de fora.
DJ Essa é a palavra. O significante está trabalhando aqui de forma distinta de quando falamos, por exemplo, de um personagem literário, tal como o Raskolnikov(22). Todo mundo que leu Crime e castigo(23) conhece profundamente o Raskolnikov, e esteve em sua companhia durante muitos dias e muitas noites de leitura. Já o Robert Desnos(24), muitas pessoas o conheceram por meio de seus livros, mas algumas outras puderam ainda conhecê-lo pessoalmente na Paris dos anos 1920. Não em qualquer lugar da cidade, mas naqueles pontos de encontros específicos onde ele se reunia com seus companheiros; sabemos até hoje quais são esses endereços porque eles nos deram essas informações – e isso muda tudo. Os surrealistas estão sempre jogando com esses tipos de significantes indiciais. Não precisamos voltar ao básico: todo discurso é um constructo social, histórico, linguístico e, como tal, não deve ser confundido com o real. Este, por si só, não quer dizer nada, carece de significado. No entanto, o fato de que esse discurso “mitológico” se baseie em referentes extraliterários é de suma importância, pois transforma o sentido mesmo da referência ao real. Daí a importância que eles atribuíam também à fotografia, à presença de imagens em seus escritos. De novo, encontramos a mesma estratégia: não se trata ali de uma fotografia artística, “autoral”. Pelo contrário: a eles, interessava menos a artesania da imagem, a produção, o enquadramento etc., do que o que estava sendo efetivamente mostrado na imagem. No contexto daquelas narrativas “documentais”, o que interessa é que aquela foto comprove a existência dos fatos relatados: aquelas sessões de sono hipnótico, caminhadas, encontros em cafés e parques, e assim por diante. A imagem, nesse contexto de aderência ao real, produz a mesma substituição que se observa com a função de “autoria” dos textos: não se trata tanto de saber quem produziu tal fotografia, mas quem ou o que está ali sendo mostrado, ou melhor, sendo produzindo no ato mesmo de ser mostrado. Por isso os surrealistas estão tão interessados na fotografia instantânea, que é uma novidade na época: eles foram um dos precursores da valorização dos retratos automáticos nas cabines de 3 x 4, que chegam à Europa no fim da década de 1920. A primeira frase de Nadja é: “Quem sou eu?”, mas o nome estampado na capa do livro é o de outra pessoa. É totalmente lógico, porque, no fundo, se trata disto: de perguntar-se quem é o autor a partir do encontro com aquela outra pessoa, cuja existência real está também documentada.
Yolanda Vilela Em algum momento o diálogo de vocês me remeteu à obra de Michel Butor(25), que tem uma proposta diferente, mas que, de alguma forma, pode se aproximar disso ao trazer a questão do sonho, da matéria do sonho, a questão do devaneio. Sua questão é: como compartilhar o devaneio, a literatura como devaneio compartilhado? Nesse sentido, me lembrei de uma entrevista que Butor concedeu a um psicanalista, Jacques-Alain Miller(26), onde há uma discussão sobre a importância de se tentar fazer isso. O que ficou para mim é a questão: é preciso fazer o quê? Compartilhar um devaneio, um estado que a literatura propicia, onde está em questão o sonho, e a vida compartilhada, aquilo que se compartilha nesse estágio limítrofe entre o sono e a vigília e o sonho, e que é o devaneio... É apenas uma associação, algo a ser investigado, mas que me remeteu ao trabalho de Butor, que frequentou até certo ponto os surrealistas e passou a trabalhar com os objetos. Enfim, foi alguém que começou a fabricar objetos a partir de um certo momento.
DJ Não sou um grande leitor de Michel Butor, mas gosto da ideia de buscarmos um lugar para esse tipo específico de narrativa na qual está em jogo a tentativa de fazer a literatura fazer, uma espécie de dizer-fazer. É uma literatura que abre mão de certa profundidade, de certa densidade, tanto psicológica quanto histórica, filosófica, em prol de uma superficialidade atestada. É válido nos perguntarmos por que isso acontece. A mim parece que esses escritores estão, de fato, apostando todas as fichas no poder do documentário – formato que tendemos a associar apenas com o cinema –, mas que existe também na fotografia e na escritura, tentando apresentar uma palavra que, não apenas nos faz pensar, mas nos faz fazer algo também. Breton, após o itinerário percorrido em Nadja, já não é a mesma pessoa: aquilo o transformou subjetivamente, porque ele passou por uma experiência no processo criativo, mas também socialmente. Agora, aqueles que encontram Breton na rua vão poder investir naquela pessoa tudo o que foi narrado naquele livro. Por estar calcada em um mundo existente, esse tipo de obra termina por intervir diretamente nesse mesmo mundo, transformando-o. A razão pela qual essas obras operam no nível de certa superficialidade é que o mundo mesmo é essa superfície sobre a qual as ferramentas da arte incidem, e não papel, tela ou película. Mas essa superficialidade é apenas a ponta do pavio de algo que pode estourar a qualquer momento, e de maneira muito rica. Em um instante, estamos falando sobre as coisas mais banais e, subitamente, acabamos tocando no que há de mais importante na vida das pessoas – e não apenas dos artistas ou de seu público restrito.
Laura Rubião A partir desse raciocínio, volto ao seu trabalho O sono louco. Sei que não houve uma cura – e não era esse o objetivo –, mas me pergunto se não houve um despertar, justamente nesse momento de fazer o que se tem que fazer e de dizer o que se tem que dizer. Sobretudo, no que diz respeito a essa exigência pela sociedade de produtividade, onde você talvez se aliena nesse significante do preguiçoso, do dorminhoco. Me pergunto se não houve uma tentativa de dizer: não. Talvez haja um despertar aí, nessa recusa, no sentido em que você está dizendo que uma singularidade, mesmo fugindo à norma, à expectativa, à média, ainda assim pode capturar o outro a partir da arte.
DJ Perfeito, é exatamente isso. O trabalho não produziu cura porque ele não estava buscando cura em momento nenhum, mas é um trabalho que fez alguma coisa.
Laura Rubião Que disse o que tinha de dizer.
DJ E ele também disse isso com o corpo. Senti que não era suficiente ficar apenas elaborando teorias sobre a minha experiência subjetiva a partir de Freud. Aquilo tinha que ser operado fisicamente para produzir algum efeito. Pois, da mesma maneira que palavras, sob certas condições e contextos específicos, podem produzir efeitos reais, certas ações também podem criar sentido. Você termina por transformar o pensamento ao realizá-lo, ao concretizá-lo – para o bem como para o mal. Por exemplo, a cada vez que vejo um trocadilho cretino escrito em algum lugar, eu penso: “não acredito que alguém de fato materializou isso”. Mas às vezes, pelo contrário, a coisa pode dar frutos: certas ideias, ao serem realizadas, efetivadas, postas em prática, ganham uma materialidade, uma intensidade completamente distinta.
Laura Rubião E tocam o outro.
DJ Isso, tocam o outro de uma maneira completamente distinta daquilo que está simplesmente circulando na intersubjetividade. Meus trabalhos têm, sim, uma função terapêutica, de promover uma forma de autoanálise constante. Quando eu consigo – ou melhor, tento – me esquadrinhar a partir de outras perspectivas, eu sinto que minha compreensão de mim mesmo evolui ou se transforma sensivelmente. De fato, o trabalho do Sono trouxe uma compreensão melhor sobre os meus processos internos, sobre o que pode haver de uma eventual recusa em acordar, talvez uma vontade de não confrontar determinadas coisas, ou de estar feliz em gozar com o sintoma. Agora, para todos os efeitos, eu sou essa pessoa que não consegue acordar, tornei-me mais ou menos conhecido pelo problema que apresentei. São riscos, sobretudo em uma sociedade que tende a medicalizar tudo, mas o trabalho me fez evoluir na lida com o sintoma. Hoje em dia, por exemplo, se tenho que acordar cedo, como hoje, excepcionalmente, para estar aqui, eu consigo. No entanto, se eu tivesse que estar aqui dois dias seguidos, eu poderia eventualmente conseguir; já três ou quatro, certamente não. O que faço com isso? Primeiro, ter claro que meus compromissos fixos devem ser assumidos pela tarde ou à noite. O que mudou depois desse trabalho é que antes eu acordava às 10, 11, 12, 13, 14 horas sentindo uma angústia terrível: “Meu Deus, eu perdi o dia, está tudo acabado!” E eu não conseguia usar o restante das horas de que eu dispunha no dia. Hoje, sinto que consegui tomar as rédeas do meu dia, descartando a culpa. Talvez pelo gozo do sintoma? É possível. Embora eu continue tentando acordar certa hora – todo dia tem um despertador tocando –, eu agora me levanto a hora que for e me pergunto: “Certo, quantas horas eu tenho ainda? Vamos ver o que dá para fazer com isso?” Eu desenvolvi uma rotina em que trabalho de maneira consistente entre meio-dia e dez da noite, e que considero estar de bom tamanho. Então, de certa forma, você tem razão, esse trabalho me ajudou muito. Ele tem um aspecto terapêutico forte, assim como outros trabalhos que realizei nos últimos anos, que é basicamente o de extirpar a culpa, que é a pior coisa que existe no mundo. Pior que a inveja, muito pior que a raiva. A culpa é uma espécie de ego trip, em que começamos a pensar: não estou conseguindo dar conta das coisas, todos são melhores que eu, meu trabalho é uma fraude. Não, calma. Porque não é sobre você o tempo todo, e mesmo quando é sobre você, é sobre muito mais do que você como indivíduo. A perspectiva de que a culpa é também um fenômeno coletivo me traz certa tranquilidade, me permite certo distanciamento dessa perspectiva autocentrada.
Paula Brant Gostaria de fazer uma última pergunta: retomando aquela relação com o mundo do trabalho, me parece que esse seu trabalho pode ser lido como um elogio ao intervalo entre o despertador – que é o patrão – e o despertar. Me pergunto então se fazer durar esse intervalo, entre o despertador e o despertar, estaria em uma posição de subversão dessa lógica do capital – do despertador como esse objeto emblemático do capitalismo – e o despertar como uma posição subjetiva, algo do sujeito do inconsciente. Laura colocou que não se trata de uma alienação ao significante dorminhoco, pelo contrário, transcende, pois eleva esse objeto a uma dignidade de coisa, que tem a ver com todos nós. Ora, se o elogio ao intervalo, se é que se trata disso, implica em dilatar um pouco esse transitivismo, o intervalo não estaria justamente em conseguir dilatar esse espaço entre eu e o outro?
DJ Essa ideia de olhar para si próprio como se fosse o outro, isso acontece num espaço de intervalo. Me preocupei em construir o Sono Louco de forma a evitar recair na tentação de recorrer a oposições, mesmo as aparentemente mais saudáveis. Por exemplo: o capitalismo é uma construção que desregula o nosso biorritmo, ele é uma coisa nefasta; sim, mas por outro lado, ele é constitutivo de uma série de coisas que nos constituem hoje, entre as quais a psicanálise está incluída. O capitalismo é produtor da noção de sujeito moderno, via a construção do indivíduo burguês, e essas são coisas que não vamos explodir de uma hora para a outra. Posso dar um exemplo bem banal, que mostra como essas coisas estão entranhadas no nosso cotidiano, no modo como pensamos as coisas: no avião vindo para cá eu estava lendo aquela revista de bordo, e a reportagem falava de aplicativos que facilitam a vida dos moradores de prédios e condomínios. Um desses aplicativos permitia que todos os condôminos estivessem conectados a todo momento em salas de bate-papo. E imaginem só isso: uma reunião de condomínio interminável. Queríamos evitar esse encontro, mas agora essas questões vão entrar no interior das nossas casas, nas nossas camas, nos nossos poros. A mesma coisa com as câmeras: abrimos mão de nossa privacidade pelo bem comum do condomínio. Todos estão sendo agora vigiados o tempo todo. Mas, de forma inocente, pensei: Ah, se agora todos podem vigiar todos os lugares, então não há mais necessidade de um vigia. Mas, não! A ideia do aplicativo era de que todos pudessem agora vigiar a ronda dos vigias através das câmeras de segurança pelo aplicativo. A tecnologia muda, mas é exatamente a mesma situação das fábricas do século XIX. Os vigias já não viram mais chaves em um relógio de ponto, agora eles escaneiam em seus telefones um QR Code que está na parede. É a mesmíssima coisa: agora todos somos os patrões. É claro que eu tenho muito mais empatia pelo proletário, que está ainda hoje lá fazendo isso, do que pelo patrão. Mas é interessante notar que o próprio Freud, em sua análise dos sonhos e do sono, está absolutamente preso dentro desse jogo de vigilância do capitalismo. Por isso, o mesmo Jonathan Crary(27), de quem falei antes, vai acusar a psicanálise freudiana de ter “privatizado” o sonho, de reduzir todo o espectro do sonho a uma coisa que o indivíduo resolve pagando alguém, numa sala, em um escritório, em uma transação comercial privada. De fato, podemos dizer que o sonho não é isso, o sonho é todo um imaginário de uma comunidade, há um aspecto social relevante no sonho. Por outro lado, sabemos que quando Freud fala do inconsciente, não se trata do “meu” inconsciente. Ao contrário: “eu” sou a função do inconsciente, “eu” sou aquele que está controlando o fluxo energético do inconsciente. Desse modo, podemos pensar que mesmo aquele patrão dormindo, que acredita controlar todo mundo por meio do relógio de ponto; mesmo esse patrão é também, em certa medida, um proletário de si mesmo. Pois ele é também o encarregado de vigiar o funcionamento da maquinaria da sua própria psique. Era esse tipo de leitura mais ambígua do capitalismo (e da opressão) que eu estava procurando nos escritos de Freud; e foi por isso que pensei ser interessante utilizá-los no contexto do trabalho do Sono. Esse método é tenebroso, ele foi criado para isso, para esse controle tenebroso do outro, mas tento utilizar o mesmo método às avessas, a fim de fazê-lo significar outra coisa: se eu mesmo me infligir esse método de controle, posso esquivar a figura do patrão, eu mesmo posso tentar ter algum controle sobre o que está acontecendo comigo. Todos os meus trabalhos tentam lidar com essa dinâmica ambígua, de troca, de permuta, com a possibilidade de pensarmos as coisas de diversos ângulos, sem jamais abandonar nossa própria experiência. Por isso, posso estar aqui falando com vocês há um bom tempo, sobre uma boa quantidade de coisas, mais ou menos interessantes, mas ainda assim sigo sem poder conseguir acordar pelas manhãs. Essa é a minha experiência, e é inalienável.
Sandro Boaventura Que bom que você dorme muito Daniel, porque você trabalha bastante quando está acordado.
DJ Mas, se pensarmos bem, e forçando ainda um pouco mais essa ambiguidade do capitalismo, essa obra foi também uma tentativa de trabalhar mesmo enquanto estava dormindo. [risos]
Yolanda Vilela Gostaria de agradecer ao Daniel, mais generoso que eu poderia supor, agradecer o seu bem-dizer. Vamos encontrar as ressonâncias desse encontro, que terá certamente muitos desdobramentos. Não sei como te agradecer.
DJ Já está mais do que agradecido. Agora minha vez: obrigado a todas e a todos pela paciência.