Três entradas de diário em que tento identificar
e descrever um momento de virada em minha produção, refletindo sobre ele. O que
primeiro identifico como uma oportunidade para reinventar-me — aprofundando o
meu modelo produtivo, conjugando análise acadêmica e experimentação artística —
logo se revela como um esgotamento, em que esses dois polos parecem cada vez
mais desconectados, desconexos, opostos mesmo. O próprio diário é visto então
como uma espécie de "caderno de crise", servindo também como tubo de ensaio, de
laboratório, para uma prática cotidiana que parece ter definitivamente saído do
eixo.
Fonte > Arquivo torrent da revista.rar
revsta.rar é uma publicação no formato de um arquivo digital compactado, editado por Jandir Jr. e Cás de Mattos. Ela reúne escritos de artistas brasileiros e é distribuída digitalmente no formato compactado .rar e também nas ruas do Rio de Janeiro, impressa em papel sulfite em uma impressora caseira.
A
Fonderie Darling 09.02.20
Há mais de um ano escrevi aqui: “O que significa esse caderno? Tudo exceto um retorno”. Àquela altura, era impossível prever o quão certo eu estava, ainda sem um entendimento preciso do que consistiria esse “não retorno” à Academia. Apenas hoje, um domingo de excepcional calmaria, consigo retomar este caderno e tentar reconstituir minimamente o que se passou este ano. Ou melhor, o que não se passou. Como estar certo e errado a uma só vez: basta dizer “as coisas estão mudando” e tentar controlar essas mudanças. Tudo, de fato, mudou. Estou atualmente em residência na Fonderie Darling, já quase na metade de meu período de três meses. É uma bolsa generosa, atribuída pelo Conselho das Artes de Montreal, que foi o que se salvou de um semestre quase integralmente dedicado ao envio de candidaturas as mais variadas. De resto, todo aquele tempo investido em formulários e formalidades revelou-se tempo perdido; preparei outros tantos projetos de residências, de exposições e mesmo de um possível doutorado, que terminaram caindo por terra. Tudo em antecipação a uma mudança que sentia se aproximar.
Era dezembro de 2018 e eu havia recém-terminado de desmontar minha exposição “As Coisas”. Foi um trabalho de fôlego, que consistiu na coleta, identificação e triagem de todos os meus objetos pessoais fora de uso, acumulados arbitrariamente ao longo dos anos. Baseado nos métodos de classificação obsessiva de Georges Perec, organizei cronológica e alfabeticamente os mais de 3.200 itens localizados em minha casa — objetos perdidos em gavetas, armários e caixas — e os apresentei sem censura como uma grande instalação na galeria. Minha intenção era oferecer ao público minha própria vida, materialmente nua, como um “suporte” para um exercício de autoanálise, a partir do que podem nos dizer nossos objetos. Não apenas afetivamente, mas como sujeitos atravessados por marcadores sociais, de diferenças e identidades, como classe, raça, sexo, gênero etc. Exatamente como havia sugerido, aliás, o próprio Perec em um breve texto chamado “Os lugares de um ardil”, incluído na coletânea Pensar/Classificar, de 1985. Ele escreve ali: “Este pânico de perder meus rastros seguiu-se de uma fúria de conservar e classificar. Eu guardava tudo: as cartas com seus envelopes, ingressos de filmes, passagens aéreas, faturas, talões de cheques, prospectos, recibos, catálogos, convocatórias, jornais diários, canetas-marcadoras secas, isqueiros vazios e até mesmo boletos de contas de gás e eletricidade de um apartamento no qual já não vivia fazia mais de seis anos e, às vezes, passava um dia inteiro a triar e a triar, imaginando uma classificação que preencheria cada ano, cada mês, cada dia da minha vida” [meu itálico].
Ao fim de um ano exaustivo e recompensador, fui atravessado, contudo, por uma intuição estranha: a de que as coisas “estavam por mudar”. Senti que já não seria possível continuar trabalhando como fizera até ali e que, para seguir adiante, seria preciso, como no Gattopardo de Lampedusa, “mudar algo para que tudo continue como está". E, de fato, não tardou muito para que tal pressentimento se confirmasse. De um dia para o outro, ou melhor, de um ano para o outro, todo o meu modo de trabalho foi colocado à prova. E eu, colocado em xeque. Pois, como numa versão barata de alguma tragédia antiga, tudo que fiz para tentar me subtrair à catástrofe que se anunciava terminou, indiretamente, por exacerbar os seus efeitos. Assim, não só a espera por novas oportunidades de fato se mostrou vã (ao contrário de anos passados, não recebi nenhum convite para trabalho), como também a busca ativa por outras formas de produção se revelou danosa (como resultado, deixei de produzir em absoluto). De modo que, retrospectivamente, aquela primeira metade de 2019 poderia ser resumida assim: uma custosa preparação para uma longa espera que não resultaria em nada. Ou, ao menos, não imediatamente.
Pensei até mesmo que tivesse chegado a hora de retomar os estudos. Após inaugurar um novo caderno, no início de 2019, redigi um primeiro projeto de doutorado. Levou o título de “O mito e a máquina” e foi uma tentativa de condensar em quinze páginas as interrogações que levantei ao longo dos anos acerca da história, das razões e dos usos da ideia de uma mitologia moderna. Fazê-lo era a sequência lógica, natural, daquilo que me propusera apenas algumas semanas antes: ir até o fim do assunto, ou até o início de uma coisa nova. No entanto, bastou um único encontro com B. H. (em Paris, em um desvio de rota que teve seu custo em uma viagem em família) para que tudo fosse por água abaixo. Passamos quatro horas em um café — ele atacando, eu defendendo —, até que eu lentamente começasse a perceber algo que se insinuava no intervalo entre as nossas palavras: no fundo, eu ainda estava pensando esse “não retorno” aos estudos como... um retorno. Ou ainda: como uma fuga da arte, diante da recusa em transformar efetivamente minha forma de produzir. Em vez de encontrar outras maneiras, outros caminhos, outras estratégias, eu estava jogando um “tudo ou nada” contra mim mesmo. Ou continuaria a produzir no mesmo ritmo, escala e intensidade que antes, ou regressaria à academia; inversamente, ou estudaria ali exatamente aquilo que desejava (e da forma que desejava) ou, então, nada feito.
Infelizmente, tal lucidez não me veio naquele café, razão pela qual minha iniciativa seguinte foi realizar exatamente o que me havia sido sugerido por B. H., com vistas a um próximo encontro dali a alguns meses. Ainda focado na pesquisa teórica, reduzi dramaticamente meu escopo e refiz o projeto do zero. O novo esforço resultou em um projeto chamado “Stranger than fiction: o Surrealismo como forma de documentário”, de uma dezena de páginas. Este (relido agora mesmo) flui bastante bem, embora possua mais um tom de artigo do que propriamente de projeto. Junto à redução do escopo, operei uma inversão metodológica: em vez de falar de modo mais geral, de como ressurge a noção de mitologia na virada do século 19 para o 20, comecei olhando para uma de suas instâncias, no campo da literatura: a saber, o modo como texto e imagem interagem nos livros do primeiro Surrealismo francês. Notadamente em Nadja, de André Breton, em O camponês de Paris, de Louis Aragon, e, um pouco mais tarde, em A idade viril, de Michel Leiris. Assim, postulando um uso “fotográfico” da própria escrita surrealista, poderia chegar, ao fim, à hipótese da redescoberta da mitologia como um discurso do real, estruturalmente diferente, portanto, da imaginação ficcional. Escrevi ali: “Uma tal mitologia moderna se caracterizaria então por uma lógica ‘documentária’, que busca recolocar em contexto tudo aquilo que foi antes isolado pela fotografia, a atribuir uma legenda a tudo aquilo que, tendo sido retirado de contexto, deixou de fazer sentido”. Em outro lugar do texto, falo ainda da forma da experiência e da escrita do cotidiano surrealista como a “intuição de uma ciência do particular”.
Ainda que bem-intencionado, esse novo projeto — escrito às vésperas de minha partida para uma outra residência, em Como — foi ainda menos longe que o primeiro. Isso, mesmo tendo tomado a precaução, desta vez, de entrar em contato com outros possíveis orientadores. Não consegui localizar B. H., que, como da outra vez, desapareceu por dias a fio, e meu encontro com J. L. foi pífio, para dizer o mínimo: após me dizer que já não podia mais aceitar orientandos, levantou-se “esquecendo” meu projeto sobre a mesa do café. Teve a gentileza de, na sequência, me pôr em contato com F. P., mas este jamais retornou o e-mail. Não insisti. Nem mesmo no envio do projeto a E. A., que conheci por acaso na nova residência. É que algo ali, naqueles dias, entre aquelas pessoas, operou mais do que as negativas anteriores e terminou de me convencer de que eu estava errado. E que seguiria errando, mesmo que fizesse tudo certo — isto é, ainda que conseguisse fazer bons projetos, bons artigos, boas palestras, ainda que encontrasse um programa de doutorado e seguisse até o fim, por anos a fio, sem olhar para trás. Porque o fantasma da academia, para mim, é justamente esse: não tanto de falhar, mas de lograr. E, no caminho, de ser engolido pelo vórtice da pesquisa teórica e deixar de lado a minha produção de arte.
Por isso, não deveria estar buscando transformar a minha forma de produção (digamos, ao voltar a realizar pesquisa formal), mas, sim, encontrar novas (e melhores) condições de realizá-la. Pois foi fundamentalmente isto que encontrei ali: contexto. Os mesmos trabalhos, recebidos antes de maneira mais ou menos morna, encontraram subitamente um lugar, um eco, uma câmara de ressonância. E foi com esse compromisso renovado comigo mesmo que voltei para casa. Passei, em seguida, todo o segundo semestre de 2019 movido por um furor produtivo que teve por objetivo terminar uma série de coisas — e, pela primeira vez em muitos anos, não necessariamente para determinada data, edital ou evento, mas pelo simples compromisso de levá-las a cabo, isto é, de levá-las adiante até que encontrem um contexto que as faça significar. Agora, minhas coisas estão todas guardadas em um storage em São Paulo, estou sem casa ou escritório, a não ser por este ateliê na outra ponta da América, por mais um mês e meio. Eu tinha razão, tudo ia mudar. Apenas, eu achei que pudesse me preparar, me antecipar, ou então fugir, ao passo que a única coisa que me cabia de fato era respirar fundo, fechar os olhos e mergulhar.
B
Biblioteca Mário de Andrade 21.01.19
Esta é minha primeira visita à Biblioteca em algum tempo; vim algumas vezes ao longo do ano passado, para preparar aulas, fazer projetos para editais, escrever um texto ou outro. Mas é a primeira vez que venho com a ideia de voltar regularmente, de voltar a ler e estudar com uma regularidade que não está pautada nas ocasiões de produzir isto ou aquilo, mas em um desejo de fazer algo que tem a ver com a própria biblioteca — tomada não como um meio, mas como um fim em si mesma. Algo que tem a ver com o próprio suporte dessa atividade: o caderno.
Se é bem verdade que segui pesquisando todos esses anos longe da academia, segundo uma lógica que talvez pudesse ser chamada de rigorosamente selvagem, é também certo que deixei de lado a escrita. Não tanto como produto, pois tudo o que fiz nos últimos anos esteve baseado na escrita (e na leitura); mas como prática, isto é, como modo de registrar, criar, manipular ideias. Meu último caderno data de 2014, e mesmo este já era uma tentativa de retomar algo interrompido em 2011, quando deixei de frequentar (diariamente) bibliotecas. Há apenas duas entradas em 12 e 13, que se leem exatamente nessa chave, de se retomar algo perdido: um jeito de pensar, de parar, de se concentrar. Estes são os anos de metamorfose, em que tudo o que era angústia difusa começou a tomar forma, a sair do caderno. Essa saída foi também da academia, e é fora dela que as minhas obras e as aulas começaram. Estão ligados para mim, portanto: Academia, Biblioteca, Caderno. Penso agora que esse último elemento tenha se apresentado como um instrumento de contrapeso ao primeiro, a fim de administrar a insatisfação que me acompanhou ao longo dos meus anos de mestrado, primeiro na filosofia e, depois, na história da arte. Pois naqueles cadernos não estavam (não estão) simplesmente notas de leituras ou de aulas, mas precisamente o que excedia esse quadro mais estrito. Eles preparavam, desde o início, sem que eu pudesse imaginar, é claro, minha saída da biblioteca.
É paradoxal que o momento em que decido voltar a escrever seja também o que começo a preparar — com todos os cuidados possíveis — uma volta à academia? Este novo caderno talvez responda ao desafio: como voltar à pesquisa formal sem deixar de lado o que construí sozinho nestes últimos anos? Pois não tenho nenhuma nostalgia do formalismo “tripartite” acadêmico ou de qualquer outra formalidade para-textual. Foi também por considera-la uma fôrma fechada demais que pensei em buscar refúgio na arte. Mas não parava por aí, me incomodava também, e sobretudo, seu caráter endógeno: isto é, tudo ali parecia ser feito para ser consumido apenas pelos membros da própria comunidade acadêmica (embora raramente o fosse); nunca pelos “de fora”. Tudo o que pretendi fazer depois, seja em minhas aulas, seja em minhas obras, foi o inverso disso: permitir o acesso, idealmente a qualquer pessoa, a objetos teóricos densos; aplicar aos objetos concretos, à minha experiência do cotidiano, esse mesmo fôlego analítico que a academia vota, via de regra, unicamente aos conceitos; encontrar, enfim, esse ponto de contato entre teoria e prática — ou, ainda mais longe, entre vida e obra.
O que significa então esse caderno? Tudo exceto um retorno. É a tentativa de sistematizar a pesquisa informal que venho fazendo (desde meados de 2009) sobre a mitologia como forma discursiva, de aprofundar a intuição documentária que alimenta minha produção. É esse equilíbrio, ou entrecruzamento de palavra e coisa — por meio da obra —, que se trata de alcançar. Há apenas alguns dias, recusei o convite, em realidade irrecusável, de K. C. para fazer um doutorado na Universidade da Flórida, por achar que não seria ainda o programa certo, o lugar certo, para o tipo de trabalho que quero fazer. Falei também há pouco ao telefone, e por mais de uma hora, com B. H. em Paris, e compartilhei minhas dúvidas em relação a que tipo de programa buscar. Tenho o receio de que um doutorado para artistas, com foco na prática, se mostre raso em termos teóricos; ele concorda. Mas também, inversamente, temo que um doutorado unicamente teórico vá inviabilizar minha prática artística; ele discorda. É preciso, ignoro como ou onde, encontrar algum programa, com essas pessoas, mas que me dê as condições certas — tempo, financiamento, motivação — de fazer o que já faço: apenas, melhor. Muito melhor. Esse novo caderno começa no lugar de uma mudança de curso, que me traz de volta à biblioteca (e também à academia?), sem que nada disso seja um retorno, mas um desenvolvimento lógico. As coisas estão mudando. Repetir a fórmula de anos passados é simplesmente estagnar. Sinto que é preciso formular — com urgência — novas estratégias que me permitam continuar, ainda que de outra forma, seguindo à risca aquela recomendação que fiz a mim mesmo em meu primeiro caderno, do ano de 2008: “Levar as ideias até o limite”.
É o que também recomendava a si próprio Georges Perec, em Espécies de Espaço, de 1974, que li na preparação de minha exposição “As Coisas”. Nesse livro, sobre a morfologia do espaço — da página, da cama, do bairro, do cosmos —, ele observa, na forma de notas metodológicas: “É preciso ir mais devagar, quase estupidamente. Se forçar a escrever o que não tem interesse, o que é o mais evidente, o mais comum, o mais maçante” [p. 100]. E, logo adiante, o que poderia ser lido como um imperativo para todo o meu trabalho: “Não dizer, não escrever ‘etc.’. Forçar-se a esgotar o assunto, mesmo que possa parecer grotesco, fútil ou estúpido. Ainda não olhamos para nada, não fizemos senão identificar o que já havíamos identificado há muito tempo” [p. 101]. Esse caderno quer, portanto, levar a sério essa pesquisa que me assombra há dez anos, sobre as formas mitológicas de escrita, quer que eu pare de dizer ou de escrever ‘etc.’ a seu respeito, quer ir até o fim do assunto — ou até o início de uma coisa nova.
C
Grande Bibliothèque de Montréal 12.02.20
Parece que sabia que domingo passado seria o último dia antes da tempestade. Consegui então vencer a premência das demandas imediatas e atender a uma necessidade outra, que responde a uma temporalidade também muito distinta das demais: aquela do Caderno. Foi a primeira vez em um ano, a segunda em muitos anos. Escrever aqui é, entre muitas outras coisas, uma tentativa de reencontrar esse outro arco temporal, que se dá o tempo de olhar para trás, de reavaliar, de examinar, de entender o que tem acontecido, o que tem me acontecido, e que excede muitas vezes a esfera da compreensão e, portanto, a minha capacidade de responder em tempo real. Nesse sentido, ao dizer ano passado que meus cadernos sempre me serviram de contrapeso à academia, eu talvez devesse ter ido mais longe na análise. Pois este aqui serve ainda à mesmíssima finalidade dos demais: ele é uma espécie de tubo de ensaio, de laboratório, para uma prática que parece estar saindo do eixo. Antes, era a academia, agora é a arte. (Por um instante, pensei que seria a academia de novo). São todos, enfim, cadernos de crise, cuja função é buscar pistas sobre isso que falta, que escapa, que foge. Noto: minha incapacidade de subordinar essa temporalidade mais imediata a outras, mais profundas, mais dilatadas, é o sinal cada vez mais nítido de uma perda de foco. É uma crise de orientação: já não sei onde estou, por isso, já não consigo fazer planos; mas é também uma crise de direção: já não sei para onde deveria estar indo, por isso, já não sei onde teria de estar.
Os últimos dois dias foram uma explicitação quase pedagógica disso: após retomar o caderno, fui atropelado por demandas de todos os tipos, relativas às obras da feira que se aproxima, ao trabalho a ser a ser apresentado aqui na residência, projetos grandes para os próximos meses, questões de materiais, organização, pagamentos, tudo surgindo de uma hora para outra, mas igualmente “urgente”. Onde estavam, afinal, todos esses problemas no fim de semana? Ora, mesmo que dê conta dessas demandas — que são demandas do tempo dos outros —, ainda assim, e talvez por isso mesmo, seguirei aprofundando meu problema. Já não é mais a questão, tão antiga em meus diários, de meu atraso em relação ao mundo, mas da incapacidade de atender a qualquer demanda que exceda esse tempo do agora. Tem sido o caso, notadamente, do projeto que vim realizar aqui. É uma sequência de “As Coisas”, de 2018, em que tomo agora um único objeto, escolhido arbitrariamente entre tantos outros, como prisma para a reconstituição metonímica de cada um de meus anos de vida (1985-2018). Quero falar de mim mesmo, na primeira pessoa (eu), mas como se fosse outra pessoa, na terceira pessoa (ele). Quero produzir esse estranhamento na voz, essa fricção, esse desdobramento de “si”, para além do “mesmo”. Não partir das memórias, ideias, opiniões que se tem, que tenho, mas deixá-las de lado, colocá-las entre parênteses, a fim de tentar descobrir quem se é, ou fui, a partir desses restos. São fotografias, carnês de vacinação, revistas pornográficas, walkmans, óculos quebrados, passagens aéreas, objetos variados que trouxe numa mala abarrotada para Montreal. Mas, um mês e meio passado do início do ano, tendo trabalhado muito, mas sempre em outra coisa (ensaios, editais, publicações). Preciso começar a abrir espaço para a leitura, para o estudo, para a escrita, ou seja, para o verdadeiro trabalho que vim realizar aqui.
Ora, se algo pode, e tem de, ser dito é que finalmente tenho as ferramentas certas. É a primeira vez que me foram dadas as condições materiais, a estrutura (ainda que simples) e, sobretudo, o tempo adequado para executar esse projeto. Além disso, por uma dessas felizes coincidências que têm me guiado nos últimos anos, trouxe comigo no avião o livro certo: Anos de formação: os diários de Emílio Renzi (1957-1967), de Ricardo Piglia. Além do uso arrojado da forma literária do diário íntimo, ele traz ainda importantes reflexões sobre um tipo de escrita, atrelada a um tipo de experiência de pensamento, que me interessa investigar. Mais até do que em Perec, me impressiona (e também assusta) encontrar em Piglia descrições tão precisas do que considero ser a “minha” busca. Mas não é só teoria: ao ler seus diários — o que faço todas as noites antes de dormir — tenho a estranha sensação de estar vivendo uma vida repetida, de ser eu mesmo um duplo do escritor, de estar perseguindo um objeto que já foi buscado 60, 70 anos antes. (Mas já foi encontrado? E se a mesma pergunta for feita por duas pessoas diferentes, em lugares diferentes, em épocas diferentes, a resposta será a mesma?) Transcrevo aqui a descrição do seu procedimento autobiográfico, anunciado ainda no início do livro — que agora tenho todo rasurado, sublinhado, anotado:
“Sua vida poderia ser narrada seguindo essa sequência ou qualquer outra parecida. Os filmes a que assistiu, com quem foi ao cinema, o que fez depois; tinha tudo registrado de modo obsessivo, incompreensível e idiota, em minuciosas descrições datadas, com sua trabalhosa letra manuscrita: estava tudo anotado naquilo que agora decidira chamar de ‘seus arquivos’, as mulheres com quem vivera ou passara uma noite (ou uma semana), as aulas que dera, os telefonemas de longa distância, notações, sinais, não era inacreditável? Seus hábitos, seus vícios, suas próprias palavras. Nada de vida interior, somente fatos, ações, lugares, circunstâncias que, repetidas, criavam a ilusão de uma vida. Uma ação — um gesto — que insiste e reaparece, e diz mais do que tudo que eu possa dizer de mim mesmo” [p. 16].
Assim como em Perec, o recurso aos “fatos, ações, lugares, circunstâncias” não é um delírio de objetividade, mas um estratagema para burlar essa instância da “vida interior”. Passar pelo que é exterior, pelo que parece ser mais contingente, é uma forma de fazer o sujeito se atentar para tudo aquilo que existe e que independe, em maior ou menor grau, do que ele ou ela acha, opina, sente, lembra etc. Ater-se às ações (ou coisas) concretas significa também olhar para si próprio, mas como faria um analista ou, ainda, um detetive, buscando aquilo que excede as determinações do “eu”, aquilo que é propriamente inconsciente, aquilo que fazemos (e somos) sem prestar atenção ou atribuir importância. Trata-se, portanto, de uma experiência de desdobramento, em sujeitoe objeto, do que seria supostamente indivíduo, isto é, não divisível. Mas Piglia vai mais longe e se aproxima ainda mais dessa “minha” experiência (mas como, se a vivo depois?) ao situar seu projeto de autobiografia sob a sombra de um fantasma: “Ando preocupado com minha predisposição a falar de mim como se estivesse cindido e fosse duas pessoas. Uma voz íntima que monologa e divaga, uma espécie de trilha sonora que me acompanha o tempo todo e que às vezes se infiltra naquilo que leio ou escrevo aqui. Ontem pensei que deveria ter dois cadernos diferentes. O A e o B” [p. 142]. Ou ainda mais explicitamente: “No meu caso, poderia dizer: entrei na minha autobiografia quando consegui viver em terceira pessoa” [p. 199].
Essa possibilidade de permuta entre os pronomes pessoais se avizinha à operação que está na base de minhas obras, que consiste em me perguntar: quando é que, em atividades aparentemente banais, desimportantes da minha vida cotidiana, estou vivendo uma experiência de ordem potencialmente coletiva? Mas é ainda mais revelador que o escritor diga querer, não apenas falar ou escrever, mas “viver” como um outro. Pois a verdadeira questão por trás dessa ideia é que não se trata apenas de uma ideia. Por isso, não basta pensar a respeito dela, é preciso operá-la em sua própria vida. Porque já se enxerga como um duplo, um certo Ricardo Emilio Renzi Piglia escreve esses diários, sem nunca permitir ao leitor decidir quem está falando, e sobre quem se está falando: “Reler meus ‘cadernos’ é uma experiência nova, talvez se possa extrair dessa leitura uma narrativa. O tempo todo me espanto como se fosse um outro (e é isso que sou)” [p. 224]
D
Grande Bibliothèque de Montréal 12.02.20 [sequência]
A verdadeira vida não é essa que fabricamos em nossos pensamentos, não é a narrativa reconfortante que nos contamos todas as manhãs diante do espelho: “Este sou eu”. É, pelo contrário, a narrativa que, às vezes, e sempre com espanto, lemos nas linhas de nossas rugas, no fundo de nossas olheiras: “Este sou eu?” É apenas olhando para si como um outro, olhando para si do ponto de vista do Outro, que podemos começar a elaborar a questão de nossas identidades pessoais. Já não me surpreendo ao encontrar em Piglia uma elaboração da função dos objetos, das coisas, nessa busca indireta de si. Apenas tomo nota:
“O pior é quando encontro rastros do passado, hoje um anel, quando uma lembrança se impõe e aí parece que vivêssemos [é como se vivêssemos?] fora do tempo. Não se pode mudar o passado. Não se pode mudar o passado? Jogar fora o anel [...]. É preciso encontrar um objeto qualquer que permita dizer pela metade o que nunca deve ser dito diretamente, por exemplo o anel que dei de presente a Inés, uma água marinha muito pura que ela me devolveu porque não queria se emocionar ao ver que ainda levava com ela. Ela está aqui sobre a minha mesa como um rastro de algo que morreu e é, portanto, um fetiche que não perdeu sua emoção. (Não joguei fora, está aqui sobre a mesa)” [p. 266, meu colchete, meu itálico].
O anel é de fato um fetiche, cumpre funções simbólicas, tem propriedades míticas. Pois é um objeto que existe simultaneamente no presente e no passado; é também, a uma só vez, o que há de mais contingente e de mais essencial daquela relação amorosa. Não se muda o passado jogando fora os objetos guardados, mas, pelo contrário, tirando-os de suas gavetas, caixas e armários; interrogando-os: o que são? E o que foram? E eu, quem sou? Quem era então? Nesse sentido, penso agora que o Diário seja também um desses objetos exemplares — pois ele é também um quando escrito e radicalmente outro quando lido. Ainda que (ou ainda mais quando) relido por seu autor, que retorna ao passado-presente do relato em busca de uma dimensão sintomática, significante, propriamente inconsciente de sua experiência. Ora, se o diário for mesmo essa espécie de “epi-objeto”, então seria preciso dizer que, no auge da minha confusão mental, da minha perda de foco, de rumo, de tempo, eu já havia encontrado meu campo de estudos privilegiado, minha bússola, meu compasso, meu relógio, aqui mesmo nestas páginas vazias. Estariam ligados, para mim, portanto: Academia, Biblioteca, Caderno... e Diário. Mas eu não tinha como saber enquanto escrevia. E a questão é toda essa: eu não tenho como saber enquanto escrevo. Nem antes, nem agora. Escrevemos sempre às cegas, registramos, anotamos, estupidamente mesmo, esperando que um dia nos apareça, na leitura dessas linhas, como num clarão, a certeza daquilo que fomos, daquilo que somos, daquilo que um dia aspiramos ser. Paradoxo de uma identidade construída e diferida que justifica, talvez, esta derradeira citação do autor (que, para minha surpresa, substitui Perec nessa investigação, sem exatamente tomar o lugar dele): “Tudo muda quando leio as notas e começo a descobrir conexões, repetições, a insistência de certos motivos que reaparecem e definem a entonação dessas páginas. Em suma, aqui se recombinam os fatos, os personagens, os lugares e os estados da alma; a particularidade é que tudo isso está presente ao mesmo tempo que se narra um dia após o outro. Nisso, um diário se parece com os sonhos” [p. 193].