Ensaio para a seção "Portfolio" da revista Amarello sobre a obra da artista Mariana Serri, a partir do encontro na Residência Artística São João.
Fonte > Revista Amarello, ano 06, número 20, 2015
Hoje me resulta curioso o fato de, ao conhecer Mariana
Serri na última edição da Residência São
João, estar lendo Michel de Certeau. Não que tenhamos falado sobre isso ou
qualquer outro assunto relacionado. Na realidade, nos cruzávamos apenas à noite,
quando ela retornava de seu ateliê improvisado em uma casa abandonada, e eu por
fim me levantava da grande mesa de estudos no centro da casa colonial onde
passei grande parte de meus dias. Mas agora, ao revisar o corpo de obras
selecionadas para a revista Amarello,
cobrindo alguns anos de sua produção, penso entender melhor a lógica precisa
que dirigia aquelas obras cuja realização presenciei apenas de maneira
distante. A ponto mesmo de perceber que havia algo da ordem de uma afinidade
quase secreta entre nossas atividades paralelas naquele já longínquo mês de
setembro de 2014. Esse nosso nexo improvável, não o encontro nas muitas metáforas
e insights poéticos que dão o tom
geral de A invenção do cotidiano 1: artes
do fazer (1980), mas em uma sóbria distinção conceitual, feita rapidamente na
seção dedicada às “práticas do espaço”. Trata-se da distinção entre o percurso e as suas diferentes formas de narrativa.
Esta está relacionada a uma das intuições centrais do livro, a qual tomo o risco de resumir assim: não são os caminhos que dão lugar às caminhadas, mas as caminhadas é que criam os caminhos, traçando no espaço físico das cidades uma rede de significados surdos, porém reais, enunciados pelo próprio corpo: “os jogos dos passos moldam espaços, tecem lugares”, diz de Certeau. E qualquer tentativa de transcrição, transposição ou fixação desses movimentos “espacializantes” em um conjunto de signos articulados implica uma perda fundamental: “os informes de percurso perdem o que foi: o próprio ato de passar [...], e constituem procedimentos de esquecimento. O rastro é substituído à pratica”. Contudo, é somente com a introdução de uma série de inovações técnicas na ciência da cartografia, a partir do século XV, que essa lógica tradutória se radicaliza e a perda, antes inevitável, torna-se a norma. Trata-se, portanto, de uma decisão programática: em seu trabalho de apagamento de todo vestígio da experiência individual, o mapa moderno se distingue de seu símile medieval, que servia aos propósitos de um mundo então em vias de extinção, feito de andarilhos e peregrinações a sítios sagrados. Próximo da estrutura de um relato de viagem, aquele documento antigo conjugava em um mesmo plano elementos heterogêneos, tais como o traçado abstrato da cartografia aos marcadores de um itinerário concreto: indicações de referências claras (uma igreja, um rio, etc.), informações práticas para cada etapa da viagem (onde rezar, onde dormir, etc.) e distâncias calculadas em tempo de marcha (horas, dias, etc.).
Quando hoje penso em Mariana, posso imagina-la tranquilamente percorrendo o caminho que lhe levava até seu ateliê naqueles dias. Tenho uma lembrança vívida daquelas bandas, e creio mesmo já ter visto por ali, em outras ocasiões, certas cenas rurais que seguramente terão chamado sua atenção: colinas com tratores, casas abandonadas, terras com gradações de cores distintas... No entanto, algo vertiginoso se passa quando estou na presença de suas pinturas: minha memória se dissipa e sou incapaz de reconhecer qualquer daquelas cenas, uma a uma. As instruções não me parecem claras; rapidamente me desoriento. Não porque, como era se de se esperar, suas pinturas careçam de referentes; ao contrário, esses estão aí, são absolutamente reconhecíveis e são frequentemente seus temas centrais: uma caixa d’água, uma usina, uma rocha, uma fruta. Tudo está na realidade claríssimo. Tudo se passa como se fosse subitamente confrontado com a evidência de que sou euquem não sabe ler aquelas indicações. Como se não fosse a mim que elas estivessem destinadas em primeiro lugar. Ou não apenas a mim.
Nunca tive diante de meus olhos um desses mapas da Idade Média de que fala Certeau, mas sinto que as pinturas de Mariana guardam esse mesmo sentido de uma heterogeneidade radical de elementos. Encontro aí algo dessa confusão de registros narrativos, onde somos ora confrontados à representação naturalista de determinados objetos, ora à descrição quase esquemática de uma paisagem anônima. E onde não é nunca possível decidir qual destas imagens representa uma postura científicae qual aponta, ao contrário, para um olhar mais fenomenológico. Assim como a intenção de representar uma flor em seus mínimos detalhes (que tenderia a afirmar a ideia da presença do artista) está aqui ligada ao projeto de uma catalogação botânica sistemática da natureza (que tem a ausência do artista como ideal), é preciso sempre tomar a palavra “planta” em seus dois sentidos simultâneos — tanto o orgânico como o industrial. Entrelaçamento semântico que parece explicar porque tais catalogações de plantas são praticadas sobre plantas de sistemas hidráulicos, enquanto, em outras imagens, o maquinário industrial parece erguer-se soberano onde antes se esperava encontrar apenas paisagens (supostamente) naturais.
E a questão que se impõe é: onde estou eu quando me é requisitado ora manifestar-me fisicamente, ora desaparecer como um fantasma? Seja como for, uma coisa é certa: quando estou diante dessas imagens nunca estou no presente, a despeito da presença constante desse maquinário moderno. Hesito entre um passado remoto ou um futuro longínquo, no qual todas as marcas do homem com as quais nos acostumamos — dispositivos de sinalização, armazéns, instrumentos e ferramentas variadas — deixaram de ter ou ainda não tem qualquer sentido aí. Por isso, é igualmente possível dizer da caixa d’água que figura no primeiro plano de Pântano #3 que foi há muito abandonada ou recém instalada aí. E que, por uma ou outra razão, pode inspirar tanto melancolia como fascínio quanto ao projeto de ordenação e controle total da natureza. Há, num caso como no outro, um efeito de profundo estranhamento acerca do papel do homem moderno em meio a essas paisagens, revelando suas mais claras intervenções sob uma luz incerta. Essa me parece ainda ser a função ambígua da cor branca, ora mais acinzentada ora mais brilhante, empregada em grande parte de suas telas. Sem nunca fugir ao universo cromático coerente que rege a paleta geral, ela faz algo distinto das outras cores: ela não entra em acordo, complementa, compensa, mas demarca, delimita, destaca.
Entretanto, esse desacordo pontual não é apenas um efeito do branco. É antes, essa cor que está a serviço de um estranhamento estrutural que se desprende de todas as coordenadas da pintura: fatura, composição, figuração, estruturação do espaço. O que vemos acontecer, por exemplo, em Paisagem-resistência, ainda sob o signo do branco, parece dar-se de outras maneiras, mas com o mesmo sentido, com o fundo vermelho em Áporo japonês ou ainda no pequeno elemento gráfico lilás de Aquário. A saber: algo que deveria funcionar como um elemento entre outros entra em súbito desacordo e converte-se em uma barreira, interrompendo bruscamente a sensação de profundidade, e trazendo o olho do espectador de volta à superfície literal do quadro. Esse é o paradoxo: o acesso ao mais longínquo é barrado pela própria pintura em favor do mais próximo; sem que, todavia, tenha sido permitido ao espectador, melancólico ou fascinado, abandonar por completo o espaço da metáfora. Estamos lá, portanto, perdidos em meio à cena atmosférica, e estamos cá, situados a dois palmos das camadas de tinta que cobrem a tela. Estrábicos, extraviados, cindidos. Estamos presos na oscilação constante entre percepção e legibilidade, entre as dimensões da experiência e do relato, da memória e do esquecimento, do próprio e do outro. Ou como diria de Certeau, se acaso me fosse permitido falar de uma pintura como ele fala de um mapa, no intervalo entre “duas linguagens simbólicas e antropológicas do espaço, [entre] dois polos de experiência”.
E Mariana, onde estará enquanto pinta essas paisagens? Quando lhe perguntei por onde andava, ela me passou seu endereço. Quando fui lhe visitar em São Paulo, algumas semanas após o termino da residência, confiei no senso de orientação do motorista de taxi. Ao chegar, encontrei-a onde esperava: perfeitamente instalada em sua sala tomada por material de pintura e por quadros, ilustrações e serigrafias em andamento, tal como uma planta em sua ambiente de origem. Mas ao me deparar agora, um ano mais tarde, com a reprodução de uma de suas pinturas mais recentes, da Série Topográfica (Hibiscus mutabilis), começo a duvidar de minha sensação de conforto ao encontrá-la ali. Era realmente o bastante dizer que Mariana estava ali? Mas onde exatamente fica o bairro de Perdizes, onde exatamente fica a rua Cayowaá? Não, a Mariana que pintou esse quadro não pode ser a Mariana da minha memória em seu ateliê. Ou melhor, não pode ser apenas aquela Mariana. Serão duas — ela também — a equilibrar ali diversos pontos de vista. Não só quando me diz estar buscando tornar compatíveis diferentes perspectivas de uma mesma natureza, questão que antes se colocava na forma de dípticos, trípticos e politípicos, e agora no interior de um mesmo quadro. Mas, sobretudo, quando me mostra, já realizada em um mesmo plano, a justaposição paradoxal de perspectivas de naturezas distintas: aqui, uma visão aérea de sua rua e outra da árvore vista pela sua janela. Noto que o ponto exato onde essas duas visões incompossíveis se imbricam, no qual as raízes da árvore tocam e se afundam no cimento do canteiro da rua, existe, mas está, sintomaticamente, fora de quadro. Pois esse x não pode ser visto por apenas uma pessoa. Seja por mim, seja pela própria Mariana. Mas é justamente na confusão deliberada dessas lógicas de notação tão distintas que o efeito disruptivo de suas pinturas se mostra com maior clareza ao espectador: não se trata tanto de sugerir uma exaustividade na descrição de todas as facetas de uma mesma coisa, mas no desdobramento perspectivo de todas as faces possíveis de quem a observa.
Quem somos nós quando vemos o ateliê de Mariana, visto a uma só vez de fora para dentro e de dentro para fora? Questão que aceitamos a cada vez que nos postamos diante da tela, sob o risco de perdermos, no “agora” indefinível de sua pintura, juntamente com nossos passos, também nossa própria identidade, assim como aquele personagem de Samuel Beckett que abria o monólogo de O inominável (1949) com essas palavras: “Onde agora? Quando agora? Sem me perguntar. Dizer eu. Sem pensar. Chamar isso de perguntas, hipóteses. Ir adiante, chamar isso de ir, chamar isso de adiante. Pode ser que um dia, primeiro passo, vai, eu tenha ficado simplesmente ali, onde, em vez de sair, segundo um velho hábito, passar dia e noite tão longe de casa quanto possível, não era longe”.
Esta está relacionada a uma das intuições centrais do livro, a qual tomo o risco de resumir assim: não são os caminhos que dão lugar às caminhadas, mas as caminhadas é que criam os caminhos, traçando no espaço físico das cidades uma rede de significados surdos, porém reais, enunciados pelo próprio corpo: “os jogos dos passos moldam espaços, tecem lugares”, diz de Certeau. E qualquer tentativa de transcrição, transposição ou fixação desses movimentos “espacializantes” em um conjunto de signos articulados implica uma perda fundamental: “os informes de percurso perdem o que foi: o próprio ato de passar [...], e constituem procedimentos de esquecimento. O rastro é substituído à pratica”. Contudo, é somente com a introdução de uma série de inovações técnicas na ciência da cartografia, a partir do século XV, que essa lógica tradutória se radicaliza e a perda, antes inevitável, torna-se a norma. Trata-se, portanto, de uma decisão programática: em seu trabalho de apagamento de todo vestígio da experiência individual, o mapa moderno se distingue de seu símile medieval, que servia aos propósitos de um mundo então em vias de extinção, feito de andarilhos e peregrinações a sítios sagrados. Próximo da estrutura de um relato de viagem, aquele documento antigo conjugava em um mesmo plano elementos heterogêneos, tais como o traçado abstrato da cartografia aos marcadores de um itinerário concreto: indicações de referências claras (uma igreja, um rio, etc.), informações práticas para cada etapa da viagem (onde rezar, onde dormir, etc.) e distâncias calculadas em tempo de marcha (horas, dias, etc.).
Quando hoje penso em Mariana, posso imagina-la tranquilamente percorrendo o caminho que lhe levava até seu ateliê naqueles dias. Tenho uma lembrança vívida daquelas bandas, e creio mesmo já ter visto por ali, em outras ocasiões, certas cenas rurais que seguramente terão chamado sua atenção: colinas com tratores, casas abandonadas, terras com gradações de cores distintas... No entanto, algo vertiginoso se passa quando estou na presença de suas pinturas: minha memória se dissipa e sou incapaz de reconhecer qualquer daquelas cenas, uma a uma. As instruções não me parecem claras; rapidamente me desoriento. Não porque, como era se de se esperar, suas pinturas careçam de referentes; ao contrário, esses estão aí, são absolutamente reconhecíveis e são frequentemente seus temas centrais: uma caixa d’água, uma usina, uma rocha, uma fruta. Tudo está na realidade claríssimo. Tudo se passa como se fosse subitamente confrontado com a evidência de que sou euquem não sabe ler aquelas indicações. Como se não fosse a mim que elas estivessem destinadas em primeiro lugar. Ou não apenas a mim.
Nunca tive diante de meus olhos um desses mapas da Idade Média de que fala Certeau, mas sinto que as pinturas de Mariana guardam esse mesmo sentido de uma heterogeneidade radical de elementos. Encontro aí algo dessa confusão de registros narrativos, onde somos ora confrontados à representação naturalista de determinados objetos, ora à descrição quase esquemática de uma paisagem anônima. E onde não é nunca possível decidir qual destas imagens representa uma postura científicae qual aponta, ao contrário, para um olhar mais fenomenológico. Assim como a intenção de representar uma flor em seus mínimos detalhes (que tenderia a afirmar a ideia da presença do artista) está aqui ligada ao projeto de uma catalogação botânica sistemática da natureza (que tem a ausência do artista como ideal), é preciso sempre tomar a palavra “planta” em seus dois sentidos simultâneos — tanto o orgânico como o industrial. Entrelaçamento semântico que parece explicar porque tais catalogações de plantas são praticadas sobre plantas de sistemas hidráulicos, enquanto, em outras imagens, o maquinário industrial parece erguer-se soberano onde antes se esperava encontrar apenas paisagens (supostamente) naturais.
E a questão que se impõe é: onde estou eu quando me é requisitado ora manifestar-me fisicamente, ora desaparecer como um fantasma? Seja como for, uma coisa é certa: quando estou diante dessas imagens nunca estou no presente, a despeito da presença constante desse maquinário moderno. Hesito entre um passado remoto ou um futuro longínquo, no qual todas as marcas do homem com as quais nos acostumamos — dispositivos de sinalização, armazéns, instrumentos e ferramentas variadas — deixaram de ter ou ainda não tem qualquer sentido aí. Por isso, é igualmente possível dizer da caixa d’água que figura no primeiro plano de Pântano #3 que foi há muito abandonada ou recém instalada aí. E que, por uma ou outra razão, pode inspirar tanto melancolia como fascínio quanto ao projeto de ordenação e controle total da natureza. Há, num caso como no outro, um efeito de profundo estranhamento acerca do papel do homem moderno em meio a essas paisagens, revelando suas mais claras intervenções sob uma luz incerta. Essa me parece ainda ser a função ambígua da cor branca, ora mais acinzentada ora mais brilhante, empregada em grande parte de suas telas. Sem nunca fugir ao universo cromático coerente que rege a paleta geral, ela faz algo distinto das outras cores: ela não entra em acordo, complementa, compensa, mas demarca, delimita, destaca.
Entretanto, esse desacordo pontual não é apenas um efeito do branco. É antes, essa cor que está a serviço de um estranhamento estrutural que se desprende de todas as coordenadas da pintura: fatura, composição, figuração, estruturação do espaço. O que vemos acontecer, por exemplo, em Paisagem-resistência, ainda sob o signo do branco, parece dar-se de outras maneiras, mas com o mesmo sentido, com o fundo vermelho em Áporo japonês ou ainda no pequeno elemento gráfico lilás de Aquário. A saber: algo que deveria funcionar como um elemento entre outros entra em súbito desacordo e converte-se em uma barreira, interrompendo bruscamente a sensação de profundidade, e trazendo o olho do espectador de volta à superfície literal do quadro. Esse é o paradoxo: o acesso ao mais longínquo é barrado pela própria pintura em favor do mais próximo; sem que, todavia, tenha sido permitido ao espectador, melancólico ou fascinado, abandonar por completo o espaço da metáfora. Estamos lá, portanto, perdidos em meio à cena atmosférica, e estamos cá, situados a dois palmos das camadas de tinta que cobrem a tela. Estrábicos, extraviados, cindidos. Estamos presos na oscilação constante entre percepção e legibilidade, entre as dimensões da experiência e do relato, da memória e do esquecimento, do próprio e do outro. Ou como diria de Certeau, se acaso me fosse permitido falar de uma pintura como ele fala de um mapa, no intervalo entre “duas linguagens simbólicas e antropológicas do espaço, [entre] dois polos de experiência”.
E Mariana, onde estará enquanto pinta essas paisagens? Quando lhe perguntei por onde andava, ela me passou seu endereço. Quando fui lhe visitar em São Paulo, algumas semanas após o termino da residência, confiei no senso de orientação do motorista de taxi. Ao chegar, encontrei-a onde esperava: perfeitamente instalada em sua sala tomada por material de pintura e por quadros, ilustrações e serigrafias em andamento, tal como uma planta em sua ambiente de origem. Mas ao me deparar agora, um ano mais tarde, com a reprodução de uma de suas pinturas mais recentes, da Série Topográfica (Hibiscus mutabilis), começo a duvidar de minha sensação de conforto ao encontrá-la ali. Era realmente o bastante dizer que Mariana estava ali? Mas onde exatamente fica o bairro de Perdizes, onde exatamente fica a rua Cayowaá? Não, a Mariana que pintou esse quadro não pode ser a Mariana da minha memória em seu ateliê. Ou melhor, não pode ser apenas aquela Mariana. Serão duas — ela também — a equilibrar ali diversos pontos de vista. Não só quando me diz estar buscando tornar compatíveis diferentes perspectivas de uma mesma natureza, questão que antes se colocava na forma de dípticos, trípticos e politípicos, e agora no interior de um mesmo quadro. Mas, sobretudo, quando me mostra, já realizada em um mesmo plano, a justaposição paradoxal de perspectivas de naturezas distintas: aqui, uma visão aérea de sua rua e outra da árvore vista pela sua janela. Noto que o ponto exato onde essas duas visões incompossíveis se imbricam, no qual as raízes da árvore tocam e se afundam no cimento do canteiro da rua, existe, mas está, sintomaticamente, fora de quadro. Pois esse x não pode ser visto por apenas uma pessoa. Seja por mim, seja pela própria Mariana. Mas é justamente na confusão deliberada dessas lógicas de notação tão distintas que o efeito disruptivo de suas pinturas se mostra com maior clareza ao espectador: não se trata tanto de sugerir uma exaustividade na descrição de todas as facetas de uma mesma coisa, mas no desdobramento perspectivo de todas as faces possíveis de quem a observa.
Quem somos nós quando vemos o ateliê de Mariana, visto a uma só vez de fora para dentro e de dentro para fora? Questão que aceitamos a cada vez que nos postamos diante da tela, sob o risco de perdermos, no “agora” indefinível de sua pintura, juntamente com nossos passos, também nossa própria identidade, assim como aquele personagem de Samuel Beckett que abria o monólogo de O inominável (1949) com essas palavras: “Onde agora? Quando agora? Sem me perguntar. Dizer eu. Sem pensar. Chamar isso de perguntas, hipóteses. Ir adiante, chamar isso de ir, chamar isso de adiante. Pode ser que um dia, primeiro passo, vai, eu tenha ficado simplesmente ali, onde, em vez de sair, segundo um velho hábito, passar dia e noite tão longe de casa quanto possível, não era longe”.