Artigo escrito em colaboração com Flora Leite sobre a pressão de produtividade nos primeiros dias de quarentena do novo coronavirus no Brasil. Os autores se valem da interrupção extraordinária das atividades presenciais para refletir sobre a suposta "normalidade" do meio da arte. E formular questões simples sobre práticas naturalizadas no passado, como: era mesmo necessário produzir tanto? Expor tanto? Expor-se tanto? Mas também para nos projetarmos no futuro, nessa já tão antecipada "retomada": ao final da quarentena, o quanto essas dinâmicas de visibilidade terão corroborado uma capitalização da tragédia que vivemos? E, neste caso, a quem terão beneficiado? E a quem não terão?

Fonte > Revista SeLect, São Paulo, abril 2020 
Fonte > Revista Mañana, Lima, abril 2020 (espanhol)




                 Assim como todos no meio da arte, vimos nossos melhores planos para 2020 evaporar de um dia para o outro. Eram exposições, feiras, aulas, palestras, publicações, lançamentos; tudo cuidadosamente planejado para acontecer ao longo dos próximos meses. Até o confinamento forçado arrastar consigo cronogramas, oportunidades, prioridades, enfim, tudo o que era, até ontem, essencial. Até mesmo a urgência na palavra deadline parece ter sido tragada de um plano simbólico para o de uma literalidade crua e rasteira.

                 Como muitos, temos procurado refletir sobre o papel da arte numa conjuntura extraordinária como esta. Por um lado, é certo que esse período de isolamento prolongado trará uma evidência, mesmo aos mais cínicos detratores da classe artística: o que nós fazemos importa. Por outro lado, é de se supor que os inúmeros livros que serão lidos, os discos escutados e os filmes e séries vistos este ano, estejam entre aqueles que já existiam antes da pandemia. Mas o que acontece com a arte agora?

                De nossos confinamentos, temos também acompanhado com grande entusiasmo o surgimento de diversas iniciativas feitas para manter acesa a chama da produção. Artistas documentando seus ateliês no Instagram, espaços independentes exibindo cursos e seminários em lives, museus disponibilizando seus acervos on-line, feiras disponibilizando portfólios e realizando vendas via redes sociais — ferramentas que já estavam disponíveis antes, é claro, e eram utilizadas com frequência para a circulação de imagens de trabalhos, imagens de artistas, imagens de vernissages. Agora, se avolumam em quantidade e velocidade. Curadores já começaram também a interessar-se por “arte feita na quarentena”, e instituições de pequeno e grande porte foram rápidas em anunciar incentivos extraordinários a projetos relevantes produzidos “agora”.

                Tais esforços são realmente louváveis, e mostram a vitalidade de um meio artístico que está buscando reinventar-se, apesar de uma de suas principais ferramentas históricas — a exposição — ter sido temporariamente inviabilizada. No entanto, cabe perguntar o quanto desse esforço é orgânico e corresponde, de fato, a demandas reais dos produtores e do seu público em quarentena. E o quanto, por oposição, é a tentativa de transpor para a segurança de um espaço virtual um sistema especulativo e excessivo, e que acredita estar ao abrigo de qualquer tipo de crise.

                É justamente em tempos como este que os pontos cegos dos sistemas “normais” se deixam ver com maior nitidez. Assim como a quemservem e como servem. Enquanto algumas dessas iniciativas on-linevisam a criação de redes de apoio financeiro aos artistas — que foram dos primeiros a sentir os efeitos econômicos da crise — outras reproduzem os mesmos modelos e práticas que já precarizavam os produtores antes da pandemia. Entre estas estão o trabalho muitas vezes não remunerado, o estímulo à competição pelas escassas possibilidades de financiamento e vendas, e o uso irrestrito de suas imagens como capital simbólico (e por que não, financeiro). 

                Como se sabe, a ideia de oferecer “visibilidade” em troca da exposição de trabalhos de arte (ou de suas imagens) nada tem de novo. Exceto, talvez, seu novo suporte virtual, desmaterializado. Ora, na tentativa de obter alguma legitimação em um meio que exige credenciais institucionais, artistas sempre trabalharam de graça, financiando sua produção com fontes alternativas de renda. Isso na esperança de que essa visibilidade gere novas oportunidades de trabalho, e assim sucessivamente, até que, finalmente, seja possível pagar as contas. Mas isso é ilusório, pois o circuito da arte, tal como existiu até agora, dependeu precisamente dessa desvinculação entre retorno simbólico e retorno financeiro como contrapartida ao trabalho artístico. O dinheiro circulava, mas nunca chegava de fato ao produtor.

                Hoje como ontem pede-se ao artista que produza as imagens de um mundo por vir, deixando de lado a questão de saber como ele está vivendo seu presente. Por trás dessa demanda está um ideário já antigo, vindo do Romantismo, que faz do artista um outsider e do próprio trabalho artístico algo excepcional. Os verdadeiros artistas seriam, assim, aqueles que trabalham de forma autônoma, pelo puro prazer (ou necessidade) de se expressar. Por mais anacrônica que seja, essa separação entre a realização pessoal e remuneração financeira é mantida hoje de forma estratégica. E tem como efeito prático situar o produtor na vanguarda de um capitalismo eminentemente simbólico, cujo maior ativo é a “criatividade”. Ou seja, o poder de inventar soluções, mesmo diante das maiores adversidades produzidas pelo próprio sistema. Não à toa, as motivações que antes eram atribuídas quase exclusivamente aos artistas se tornam componentes centrais dos discursos empresarial e publicitário.

                A presente crise só torna mais evidente a perversidade dessa situação: o artista opera como um fornecedor de “autenticidade” para uma engrenagem articulada por agentes intermediários, agregando com suas obras “valor de prestígio” às instituições-marcas que as exibem. E continua a fazer exatamente isso quando esse valor produzido, exposto e claro, vendido, é sua própria personalidade: artista jovem, artista maldito, artista engajado, artista periférico, artista queer. E agora, artista confinado, cujo ritmo de produção, sem os “entraves” do mundo exterior, pode ser até mesmo beneficiado pela quarentena.

                As chamadas que circulam na internet esses dias dão a entender que a criação desse “imaginário da crise” é urgente. Não é. Que temos poucos dias para produzir uma obra relevante, pungente e reveladora. Não temos. Artistas não têm a obrigação (ou os meios) de dar conta dessa demanda por “sentido” de uma sociedade à deriva, que perdeu a capacidade de projetar-se no futuro. Se há uma “classe” que está em medida de dar uma resposta efetiva à crise, esta é a dos cientistas, médicos, enfermeiros, lixeiros, atendentes, caixas de supermercado, e sim, políticos; todos que estão (ou deveriam estar) nas linhas de frente da luta contra a pandemia.

                Como todos os trabalhadores de serviços “não-essenciais”, o melhor que fazemos agora é ficar em casa. Não precisamos deixar de ser artistas; trabalhar pode ser uma forma de nos mantermos sãos e ativos em meios a esse "entre ato" de duração indefinida. Mas podemos também aproveitar a interrupção forçada das atividades para refletir sobre nossa suposta “normalidade”. E formular questões simples sobre práticas naturalizadas no passado, como: era mesmo necessário produzir tanto? Expor tanto? Expor-se tanto? Mas também para nos projetarmos no futuro, nessa já tão antecipada “retomada”: ao final da quarentena, o quanto essas dinâmicas de visibilidade terão corroborado com uma capitalização da tragédia que vivemos? E, neste caso, a quem terão beneficiado? E a quem não terão?

                E “agora”, o que é que precisamos de verdade? De mais views? De likes? De thumbs up? Por favor, apenas parem.

                Artistas, parem de estetizar a quarentena e a si mesmos. Tal demanda corresponde efetivamente a seu desejo de expressão ou à necessidade do meio de seguir circulando seu capital nas redes sociais? Por que não, pelo contrário, parar de produzir por um tempo? Abraçar essa mentalidade competitiva que recompensa a produtividade como única moeda de troca na crise só nos fará mal. Já estamos sozinhos; não é hora de competir por um lugar ao sol. Importa, pelo contrário, criar redes de proteção e de auxílio. De trocas de serviços e trabalhos. De escuta. 

                Curadores, parem de selecionar obras sobre a quarentena. Tal demanda não fará aumentar a angústia dos artistas que, temendo a invisibilidade profissional, terão de criar obras que se adaptem sem fricção ao "novo" modo de circulação e exposição, exclusivamente virtual? Por que não, pelo contrário, fazer exposições virtuais com trabalhos já existentes? Estes não faltam. Seguir alimentando essa lógica de produtividade e auto-exposição, como se a crise fosse apenas uma “ocasião para criar”, serve para aprofundar um processo já antigo de alienação do artista, mas agora com graves consequências psicológicas.

                Instituições, parem de premiar artistas que trabalhem na quarentena. Tal demanda não estimulará a criação de obras de qualidade duvidosa, geradas unicamente pelo medo de se verem privados dos parcos recursos destinados a esses “editais emergenciais”? Por que não, pelo contrário, comprar obras dos artistas ou doar diretamente seu dinheiro? Sem esquecer, é claro, de garantir nesse período a remuneração dos demais profissionais da arte que trabalham nas exposições, a exemplo dos produtores, educadores e montadores. Prêmios agora não fazem mais do que espetacularizar o espírito “winner-takes-all” do circuito da arte, que faz com que pouquíssimos ganhem muito e a maioria esmagadora ganhe muito pouco ou menos que nada.

                E jornalistas, parem de escrever matérias sobre obras-primas produzidas na quarentena. Tal demanda não contribui para o aprofundamento da mística do artista como indivíduo excêntrico, excepcional e autônomo — impermeável às condições sociais? Por que não escrever sobre como artistas no Brasil sempre produziram em condições adversas, mesmo antes da pandemia? Shakespeare, de fato, criou obras-primas durante a peste bubônica, mas ele tinha poderosos mecenas que lhe permitiram viver confortavelmente enquanto os teatros estavam fechados. Não é o nosso caso.