Transcription of the lecture made on the occasion of the film session on the "Reinvention of Daily Life", part of festival organized by Patrícia Mourão at Centro Cultural Banco do Brasil. It is a reflection "in negative" on the theme, that searches for the historical and philosophical origins behind the revaluation of everyday life in the 20th century, testified by various artists and thinkers. When was it really, and for what reasons, that we stopped attaching importance to day-to-day experiences?

Source > Visões da vanguarda catalog, CCBB, São Paulo, 2017 (Portuguese)




                Tomei muito a sério a indicação de que não deveríamos, ou melhor, não precisaríamos falar sobre os filmes dessa sessão. Tão à sério que, a rigor, sequer vou falar de cinema. Queria aproveitar a ocasião de uma mostra que relaciona o cinema com outras artes, e pedir a vocês um voto de confiança (e também um pouco de paciência) para tentar dar a volta ao problema do cotidiano. Pretendo falar de filosofia e um pouco de história da ciência. Não sou especialista em nenhuma dessas áreas — especialista como quem está aqui para provar uma tese —, mas gostaria de apontar para um certo número de coincidências históricas ligadas ao tema dessa noite, que é difícil justamente por ser trivial.

                Muito já se disse sobre o cotidiano ao longo do século passado e, em certo sentido, é natural que o cinema tenha abordado esse assunto. Por isso, ao invés de fazer uma espécie de sobrevoo por essas abordagens variadas, tanto teóricas como fílmicas, decidi tentar procurar pela problemática por trás do tema. Esse passo para trás tem dois aspectos. Por um lado, ele é teórico e coloca uma pergunta bem intuitiva: por que o cotidiano é um assunto de vanguarda? Isto é, o que tem de tão radical, de tão revolucionário e tão vanguardista no ato de narrar coisas do dia a dia, na trivialidade do que acontece na nossa rotina? O que tem de extraordinário, por exemplo, no ato de tomar café, encontrar um amigo, almoçar com a família no domingo, fazer fila no banco ou, como vimos há pouco, praticar jogging? Enfim, a indagação é: por que esse tema interessa em um ciclo de cinema de arte? Mas, por outro lado, é um passo histórico. O próprio nome da sessão, “Reinvenção do cotidiano”, parece apontar para a nossa necessidade de relembrar, refazer e resignificar o cotidiano, como se seu sentido tivesse sido perdido em algum momento. O fio que gostaria de seguir nesta fala, cheia de hipóteses inconclusivas que integram uma pesquisa pessoal ainda em processo, parte da seguinte questão: se precisamos reinventar o cotidiano, quando foi que deixamos de nos surpreender com ele?


I

                Como a Patrícia disse há pouco, eu sou artista e me interesso muito pelo cotidiano, tanto teórica quanto plasticamente. Mas o que talvez ela não saiba é que minha primeira área de interesse como estudante, muito antes da arte ou da estética, foi a teoria do conhecimento ou epistemologia. Não saberia precisar se isso foi uma tentativa de contornar minha inabilidade com números, ou um puro flagelo após uma escolaridade um pouco medíocre. De qualquer forma, foi por onde comecei meus estudos de graduação, e só há pouco tempo consegui reencontrar um interesse novo, um sentido positivo para aquele amontoado de teorias da filosofia da ciência. Ora, essa positividade passa justamente por uma releitura do cotidiano, ou melhor, pela identificação de uma alarmante ausência do tema em determinado momento do pensamento moderno. Lembro que uma das questões que mais me intrigaram na cadeira de epistemologia era o “problema do erro”. Para falar disso, precisamos voltar ao século XVII, quando todas as atenções estão voltadas ao significado das novas descobertas científicas de então e dos dois séculos anteriores.

                Inúmeras descobertas, redescobertas e reavaliações já vinham colocando em xeque dogmas centrais da Igreja e do pensamento escolástico medieval. É o caso, por exemplo, descobrimento do Novo Mundo, por exemplo, que não é uma ilha, mas um continente inteiro, desafia todas as teorias vigentes da cartografia. Ou ainda, da Reforma do cristianismo, promovida por Lutero por meio de uma releitura atenta do texto bíblico, abre mão do intermédio autoritário da Igreja. Mas o caso paradigmático é o do novo modelo cosmológico proposto por Copérnico e defendido por Galileu, no qual o Sol passa a ocupar o centro do Universo, contrariamente ao que havia sido sugerido por Aristóteles e sistematizado por Ptolomeu. Pois ele traz evidências de que não apenas os representantes da tradição escolástica, os filósofos teólogos da Idade Média, estão equivocados, como também as próprias fontes desse cânone: ou seja, os tratados de filosofia antiga, que ainda alimentavam os debates filosóficos nesse período. Em uma palavra: Aristóteles parece ter se enganado, Ptolomeu parece ter se enganado e, com eles, todo o conhecimento acumulado em mais de 2 mil anos de história — e essa é a real gravidade da questão. Saber como os maiores pensadores do passado podem estar errados sobre problemas tão fundamentais se tornará, então, uma espécie de problema-chave da época. E a busca de um método, um procedimento para evitar esse tipo de erro, afastando a onda de ceticismo que vem a reboque desses abalos, é a nova obsessão dos filósofos “modernos”.

                Francis Bacon, não o pintor visceral do século XX, mas o filósofo da ciência do século XVII, faz da questão do “erro” o carro-chefe de seu pensamento. Ele chama de “ídolos” todas as formas de preconceitos, crenças e dogmas que, em sua visão, obstruem o progresso do conhecimento científico. E chega inclusive a propor uma tipologia dos ídolos, ou seja, de todas as formas de erro que somos passíveis de cometer, com suas respectivas fontes. Enquanto os ídolos da “tribo” correspondem, por exemplo, à uma educação falha, os da “caverna” correspondem à influência de alguma autoridade política. Mas ele inclui também a possibilidade de usarmos a linguagem de maneira inadequada (ídolos do “mercado”) ou mesmo — e isso é fundamental — de nos submetermos a algum sistema filosófico do passado, perfeitamente lógico, mas ainda assim equivocado (ídolos do “teatro”). Nesse sentido, quando Bacon publica seu Novum organum(1620), uma alusão direta ao Organum de Aristóteles, entendemos qual é o ponto que ele deseja marcar: este, como a maior parte dos tratados da filosofia antiga, segundo ele, não passaria de um sistema de saber vazio. Gostaria de entrar um pouco mais em detalhe na discussão desse livro porque considero que pode ser útil para pensarmos o problema que nos interessa hoje. Reitero o pedido de confiança.

                Grosso modo, seu objetivo é apresentar as duas formas centrais de raciocínio de que dispomos; é um tratado de lógica que, como ele mesmo reconhece, apresenta problemas conhecidos desde a Antiguidade. Por um lado, está o raciocínio dedutivo, o qual, após extrair diretamente os universais a partir de uma experiência rápida dos particulares, deriva daí todos os axiomas intermediários; por outro, está o pensamento indutivo, que parte da experiência dos particulares para, apenas então, abstrair um presumido universal. A novidade consiste em afirmar que o tipo de raciocínio mais seguro “logicamente” nem sempre é o mais “correto”: o primeiro, de tipo dedutivo, apesar de garantir a coerência, não garante a verdade. A única função “do sistema da lógica” seria mostrar que, se uma coisa geral é verdade, outra coisa particular que se encaixe nessa categoria intermediária também será verdade necessariamente. Mas se a premissa for falsa, diz ele, essas leis não farão mais que alimentar o erro inicial, e o que é pior: sob a aparência do raciocínio correto. Trata-se, assim, de um formalismo que nada faz para se desviar dos ditos ídolos que assombram nosso pensamento.

                Contra a autoridade do discurso “vazio” da tradição, baseado em premissas puramente especulativas, diz Bacon, é recomendável nos apoiarmos em um conhecimento indutivo radical, construído a partir da experiência do indivíduo. No entanto, quando continuamos a ler o Novum organum deparamos também, entre os erros a se evitar, com os “ídolos da tribo”, isto é, aqueles que são inerentes à natureza humana. Pois “é falsa”, diz ele, “a afirmação de que os sentidos humanos são a medida da natureza das coisas”.(1)Por isso, é necessário que um novo método científico experimental construa “seus axiomas com base nos sentidos e nas coisas particulares, ascendendo de modo contínuo e regular até chegar finalmente aos axiomas mais gerais”.(2) Ou seja, o método precisa atentar não apenas aos objetos, mas também à própria forma da experiência, refinando a maneira como vemos o mundo, e dando, assim, “solidez na superestrutura do pensamento”. Ao confiar em nossa capacidade de examinar os fatos por nós mesmos, ele elenca ainda uma série de invenções técnicas, relativamente recentes em sua época, que parecem dar fôlego à ideia de uma renovação de nossa visão do mundo, da conquista de um novo olhar desobstruído dos preconceitos do passado. A perspectiva na arquitetura e na pintura, o telescópio na astronomia, a bússola na navegação, por exemplo, são instrumentos que parecem levar mais longe a observação, a medição e a orientação em um espaço que é agora prioritariamente humano, e não mais divino.

                Assim, se por um lado acreditamos ser necessário fazer tudo passar pela prova da experiência, por outro, esse mesmo critério de prova pode nos levar ao engano. A confiante premissa do Renascimento retomada de Protágoras, segundo a qual o homem é a medida de todas as coisas, já não parece mais válida no século XVII assombrado pelo erro. O homem deixa de ser aquele microcosmo perfeito de Da Vinci, refletindo em si a ordem cósmica, e a possibilidade do engano passa agora a ser perfeitamente natural. Nesse sentido, é interessante que o próprio Bacon, o inventor de uma concepção de ciência ligada à técnica, não visse no heliocentrismo de Copérnico mais do que uma hipótese meramente especulativa. Ou seja: o indivíduo que dá o ponto de partida para a ciência moderna está em desacordo com o primeiro grande marco teórico dessa mesma ciência. Isso não é um acidente de percurso, mas a prova de que lhe escapa o sentido dessa relação propriamente moderna entre a possibilidade do engano (que também se dá) através da experiência dos sentidos e a nova verdade científica baseada no sujeito do conhecimento. Por que digo isso? Porque, ao contrário do que Bacon afirma, os antigos não se equivocaram por não olhar bem o suficiente o mundo visível, e sim por olhar perfeitamente bem o mundo visível. Justo porque sempre observaram os astros a partir do seu ponto de vista é que deduziram, de maneira lógica, diga-se de passagem, que o sol girava ao redor da terra.

                Muito se falou — e com razão — de um trauma provocado pela chamada “revolução copernicana”. É certo, a criação divina não está mais no centro do universo. Porém, ainda mais grave que o abalo ao dogma da Igreja, talvez seja a perda de uma correspondência natural entre a nossa visão das coisas, a forma como experimentamos o mundo cotidiano, e a nova razão científica, que é abstrata e impessoal. O filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk marca bem esse ponto, ao enfatizar o sentido de impotência do sujeito da experiência diante de uma limitação incontornável de sua visão: “O choque copernicano demonstrou que não percebemos o mundo como é, mas que precisamos imaginar a sua realidade pela reflexão contrariando a impressão dos sentidos para compreender como ela é, eis o dilema, quando o sol se levanta, o solnão se levanta”.(3) Ora, diante desse corte entre visão e razão, de nada adianta tentar aprofundar nossa visão das coisas para evitar aqueles ídolos que Bacon chamava de “ídolos da tribo”. Pelo contrário, o que se coloca, ou se administra, aqui de maneira traumática, não é apenas a possibilidadedo erro, mas a sua inevitabilidade. É estrutural de nossa percepção enganar-nos. Diante do quê, muda também o sentido daqueles instrumentos listados há pouco: eles não servem para nos fazer ver mais longe ou melhor, mas para corrigir a distorção natural de nossa visão. Em uma palavra: eles nos fazem ver o que nunca veríamos em nosso cotidiano. E o que é vemos, por assim dizer, no escuro? A verdadeira estrutura geométrica do espaço, a verdadeira estrutura cósmica dos astros, e a verdadeira estrutura magnética da Terra; realidades propriamente invisíveis aos olhos.

                É claro que na revolução científica há uma nova ênfase na experiência; e de fato, a luta contra os dogmas da tradição passou pela coleta de dados e pela observação de “fatos” empíricos. No entanto, em termos estritamente filosóficos, é fundamental que Copérnico tenha lançado o seu modelo como hipótese, ou seja, como consequência hipotética de uma série de cálculos matemáticos. Ora, ao propor algo assim, ele não mostrava, mas demonstravaalgo. E quando Galileu, por sua vez, já no século XVII, aponta seu novo telescópio para os astros, ele não pretende observar nada em particular, mas comprovar uma coisa muito específica: a hipótese do astrônomo anterior que sequer viu aquilo sobre o que estava falando. Essa mudança de perspectiva teórica, que não elimina a observação, mas a põe em segundo plano, submetida a dispositivos de controle e correção da visão natural, parece ter deixado marcas profundas no que chamamos de modernidade. De fato, surge toda uma nova estrutura da investigação científica aqui, na qual primeiro vem a ideia (hipótese, modelo) e somente depois a experiência, na forma de verificação. A partir de então, já não faz mais sentido falar de uma experiênciapropriamente dita, ligada à percepção pessoal, mas sim de uma experimentação ou de experimentos científicos sistemáticos, feitos com o maior número de parâmetros controlados. Em rigor, agora, já não temos mais uma experiência, mas fazemos um experimento.


II

                Mas por que eu estou falando disso tudo? É que, por trás dessa coisa meio codificada do “problema do erro”, existe na época um sentimento comum de desconfiança em relação ao mundo. Diante desse sentimento, não é mais o caso de refinar nossa experiência do sensível, mas, pelo contrário, de suspendê-la (ainda que temporariamente) em favor de um movimento declarado de introspecção, de revelação de um universo interior, o que, convenhamos, não é algo muito intuitivo. Pois o Renascimento havia sido anunciado, rompendo com a Idade Média, como a descoberta de um mundo propriamente humano, com as características e medidas do homem. No entanto, o que se opera em seguida, na revolução científica, é um progressivo afastamento da ordem das coisas terrenas. Quando o mundo finalmente deixa de ser divino, ele não passa a ser terreno, físico ou profano de imediato, mas se torna, antes, um mundo subjetivo, reflexivo, racionalizado. Uma vez mais: um mundo incompatível com a experiência sensível. Entendemos, assim, que a questão da modernidade não é, ou não é só, a negação da tradição escolástica. Em primeiro lugar, porque o mundo medieval já possuía a ideia do corpo como prisão da alma, já escalonava os planos da existência (e os antigos, muito antes, já apontavam para a ideia da transitoriedade do mundo sensível, da mutabilidade e da inconstância das aparências, em contraste com uma noção de substância ou de um primeiro motor imóvel). Em segundo lugar porque muitas vezes as discussões medievais se mostravam mais sofisticadas do que as versões modernas das mesmas: havia ali um nível de argumentação impressionante e os indivíduos levavam até as últimas consequências a ideia do debate como disputa intelectual. O que há, então, de propriamente “moderno” nesse mundo moderno, que não é mais divino ou humano? A novidade não me parece residir no simples rebaixamento de um mundo partilhado, social, material, produzido pela experiência comum, pela linguagem e pelas trocas no comércio, mas em sua projeção total na mente do indivíduo. Nunca antes na história da filosofia, a suspeita em relação ao mundo sensível se colocou de maneira tão aberta, manifesta e estratégica, quase uma declaração de guerra, como na possibilidade da falsidade integral ou ainda da inexistência do mundo real. Da mesma forma, nunca antes se pediu tanto da reflexão individual, a ponto de conter a chave integral ou potencial da prova da verdadeou da existência desse real.

                Essas serão as hipóteses radicais de Descartes, filósofo mais ou menos contemporâneo de Bacon que representa a faceta complementar desse espírito científico moderno. Com sua “dúvida sistemática”, ele descreve ao leitor — na primeira pessoa do singular — que está em sua casa, vestindo um roupão, perto da lareira, com seus papéis em mãos, se perguntando se pode ter certeza do que está ao seu redor. Não preciso entrar em detalhes aqui, a trama das Meditações é clássica: afastado tudo o que é duvidoso, incluindo seu próprio corpo, só lhe resta a própria dúvida, que é indubitável. A partir daí, desse ponto de segurança, ele vai reconquistar o mundo exterior, passo a passo. E essa reconquista não é menos essencial que o movimento de dúvida. Em outras palavras: o mundo não deixa de ser importante para a filosofia moderna, é dele que se fala o tempo todo, mas o método de segurança diz que é primeiro preciso suspendê-lo para que volte a aparecer. Ora, quando isso acontece, ele aparece transformado. Tudo aquilo que era da ordem da experiência, da repetição do dia a dia, do saber e do saber fazer empírico, será substituído por uma certeza de uma outra ordem, não mais da vidência, da visão repetida das coisas, mas de sua evidênciafulgurante, de origem intelectual. Para o sujeito da ciência moderna, a experiência já não vem de fora para dentro, na forma de coisas vividas, mas de dentro para fora, como coisaspensadas.

                Mas como se sabe, a dúvida de Descartes é metodológica, não ideológica, pois prefere o cinismo da dúvida forçada à ingenuidade da crença impensada. Ele não acredita de fato na inexistência do mundo, mas levanta essa hipótese porque as mais absurdas hipóteses têm agora uma nova dignidade intelectual. Mas, se no fim de seu livro ele reencontra o mundo, é porque esse era realmente o seu objetivo. É um happy ending. A redescoberta desse mundo é também essencial para afastar o fantasma do solipsismo, a ideia assustadora de que estamos sós em nossas mentes. Apesar da experiência do mundo não ser acessória na modernidade, ela é sempre indireta, derivada, mediada pela reflexão e pela investigação do próprio sujeito conhecedor e pensante. Em seu Discurso do método Descartes retoma ainda, de forma emblemática, a metáfora de Galileu sobre a natureza como um livro escrito em linguagem matemática: “Mas, depois de ter empregado alguns anos estudando assim no livro do mundo e procurando adquirir alguma experiência, tomei um dia a decisão de estudar também a mim mesmo e de empregar todas as forças de meu espírito escolhendo os caminhos que deveria seguir”.(4) Há dois pontos fundamentais aqui: primeiro, a ideia de que a natureza se expressa na forma de um livro, que é um objeto cultural ao qual acedemos a sós, geralmente em espaços fechados, em nossos quartos. Nós não amamos, não odiamos, não tememos, mas nós lemos o mundo; a leitura está aqui em primeiro lugar. E segundo, que a chave interpretativa dessa leitura está presente em um âmbito ainda mais fechado, em nós mesmos, de modo que a ênfase não reside só no fato de que lemos o mundo, mas de que nóslemos o mundo; também aqui o sujeito aparece em primeiro lugar. Diante dessa nova decisão, ele põe em perspectiva suas viagens pelo mundo, igualmente destinadas a relativizar o peso da tradição: “O que me deu melhor resultado, ao que me parece, do que se nunca tivesse me afastado nem de meu país, nem de meus livros”.(5)

                Tudo isso está em manuais escolares de filosofia, mas achei necessário mencionar para pensarmos nesse movimento de transformação do mundo em um mundo lido e um mundo próprio. E do sujeito da experiênciaem sujeito da reflexão. Talvez a minúscula contribuição que desejo dar a todo esse debate, que inclusive poderia nos ajudar a refletir sobre esses filmes que vimos há pouco, seja a seguinte: pensar essa metáfora do “mundo-livro” como algo sintomático. Gostaria de apontar para o “livro” como um dos objetos paradigmáticos desse momento histórico, como um dos “operadores” dessa transformação, desse apagamento do cotidiano que vai nos custar tanto desfazer no século XX. Mas é preciso ir um pouco mais longe e precisar sobre que livro me refiro, um tipo específico de livro e de escrita, cuja função parece ser justamente fazer o mundo visível desaparecer por um momento para reaparecer como texto. E que aparece no momento em que Descartes escreve: estou falando do romance.

                Primeiro, o que que eu não estou dizendo: não acredito que Descartes esteja fazendo uma forma de ficção, mas gostaria de sugerir — e isso é realmente hipotético — que tanto a literatura quanto a ciência moderna possuem a mesma estrutura de argumentação, essencialmente hipotéticae dedutiva. O que não seria, de forma alguma, um demérito para ciência ou para a literatura, mas um modo de dizer que, na modernidade, o pensamento dedutivo, longe de ser apagado pela experiência pessoal ou afastado em prol de uma reconquista do mundo, prevalecerá sobre o pensamento intuitivo. A diferença é que ele não é mais dogmático como na tradição, não se aceita mais o pressuposto simplesmente porque ele é antigo, ele agora é abertamente posto à crítica. Ao invés de postularmos a verdade imediata, a veracidade a priori daquilo que nos é dito, admitimos seu caráter condicional, provisório, isto é, de teoria, hipótese ou visão possível do mundo. E cada um que faça o próprio teste.

                Tenho a impressão de que é mais ou menos o que acontece no romance, gênero literário que coincide historicamente com o amadurecimento desse tipo de escrita que chamamos de ficção, o qual se constitui lentamente entre os séculos XVII e XIX. Essa narrativa não exigirá mais dos leitores uma confiança inicial como antigamente, e sim a suspensão da fé para que alguma coisa “possa acontecer”. Se lemos um romance atribuindo verdade factual ao que nos é dito, em todo rigor, não entendemos uma só palavra (como foi o caso de muitos leitores nesses séculos de consolidação do gênero). Na ficção ou na ciência moderna nunca somos demandados a acreditar imediatamente naquilo que os outros nos mostram ou dizem. Nem por nós mesmos. Pelo contrário, a beleza e até mesmo “evidências” delas — sabemos que a literatura tem também suas evidências — são de ordem reflexiva, pessoal, ou seja, indireta, espelhada. Assim como em um escrito de Galileu, um romance não mostra o mundo, mas demonstra algo sobre ele, nos faz pensar através de uma representação, a partir de um descolamento momentâneo da experiência, que pode ser verossimilhante ou não (naturalista ou não).

                Essas duas formas argumentativas, cujos desenvolvimentos coincidem historicamente, supõem um corte com a experiência ordinária do cotidiano. Mas é um corte metodológico, como vimos, que visa o reencontro posterior com o real. E é sintomático que Descartes chame, por exemplo, suas ideias de “quadros” ou “imagens”. Pois não são simplesmente conceitos abstratos, mas representações pictóricas, que (no melhor dos casos, vale dizer) coincidiriam uma a uma com as coisas exteriores. Reencontramos, assim, a experiência recuperada em nossa mente por meio de quadros que são “janelas” para o mundo. O pensamento de Descartes, no entanto, é apenas o mais acabada desse tipo no século XVII. É possível encontrar muitos outros exemplos, não só na filosofia ou na ciência, como também na literatura. Esse seria um outro capítulo a se estudar em profundidade, isto é, como a própria ideia de ficção surge como modalidade literária moderna, com história própria, transformando o pressuposto anterior: de um texto pensado como relato fiel de uma experiência ou um fato, passamos a um texto que só produz efeitos quando cessamos de acreditar nele. Nessa transição conceitual (e contratual), poderíamos pensar no surgimento das “utopias” a partir do século XVI como formas de “protoficções”. O livro de Thomas Morus que nomeia esse movimento explica seu objetivo com clareza desde o título: Sobre o melhor estado de uma república que existe na nova ilha utopia. O autor situa a sua hipótese de uma república perfeita em uma ilha, mas para o leitor trata-se de um mero “recurso” literário, pois essa ilha, como o próprio nome já diz, não está em “lugar algum”.  A “revolução copernicana” de Morus é a ideia de se escrever sobre lugar nenhum para falar sobre lugares muito específicos. Ao invés de fazer uma crítica direta às monarquias e a outros regimes totalitários de seu tempo, ele o faz indiretamente e, talvez por isso, de maneira mais sofisticada. Ou seja, esse descolamento é o que permite a reflexão chegar a lugares e “não lugares” inéditos, os quais não correspondem ponto a ponto à nossa experiência mundana.

                Mas talvez a obra que realmente marque essa virada, um exemplar muito precoce desse raciocínio “indireto”, seja o Decameronde Boccaccio. Não à toa ele é considerado por muitos especialistas como um dos textos modernizadores da literatura ocidental: escrito em 1348, o ano em que a peste negra dizima um terço da população da Europa — e um quinto dos habitantes da cidade do autor, Florença, incluindo seu pai —, o livro se apresenta simultaneamente como sintoma e superação da crise da civilização. Boccaccio narra a história de indivíduos que decidem abandonar a cidade pestilenta e, reunidos em uma casa de campo idílica, contam histórias sobre o mundo exterior que deixou de existir moral e fisicamente. Esse “quadro” não é só uma convenção da literatura da época, mas uma maneira de criar um “quarto” no interior do qual todo um mundo feito de palavras substitui em um mundo de vivências, inaugurando esse corte radical do pensamento em relação à experiência. Os personagens transformam, assim, esse mundo sensível — que não é ainda digno de suspeita como será em Descartes, mas é sem sombra de dúvidas mortífero — em texto. Reconstituem a possibilidade da vida em livro, associando a antigo cotidiano com a morte.


III

                Essa foi a volta, por assim dizer, “rocambolesca” que precisei dar para medir o esforço dessa reconquista, dessa reconstrução do cotidiano que assistimos ao longo do século passado, de formas muito variadas. Com essa dupla hipótese da ficção como gênero literário que apaga as evidências do cotidiano e do método científico moderno não correspondendo ponto por ponto à experiência sensível, proponho voltar à questão inicial: por que o cotidiano é algo que interessa tanto às vanguardas no século XX? O que tem, afinal, de tão vanguardista em relatar nossas banalidades do dia a dia? Se correta, essa hipótese sugeriria que o cotidiano não interessa por si mesmo, mas sim quando permite a redescoberta de um modo de reflexão ou adesão ao mundo no século XX, o qual havia sido completamente descartado pela ciência moderna. Esse modo de reflexão seria o daindução, raciocínio a partir do exame das coisas que se repetem. Ou seja, retorna a ideia de que pode existir uma ciência feita a partir de coisas particulares, de que há um saber extraído da experiência direta do mundo e não mais drasticamente mediada por modelos, como ocorria na ciência moderna, cujo valor era tirado justamente desse intervalo.

                Não acredito ser coincidência que o novo interesse pelo trivial aconteça em paralelo à crise das ciências e da filosofia moderna e também ao surgimento e o amadurecimento (relativamente rápido) de outros campos do saber que funcionam de maneira essencialmente indutiva. Penso, por exemplo, na psicanálise, que nasce no final do século XIX atenta aos sintomas singulares do paciente. E penso ainda na antropologia, que está atenta às particularidades de outras culturas, com objetos, ritos específicos e modos específicos de pensar o mundo. A própria filosofia nessa época, seguindo o lema de Edmund Husserl, deseja escapar à sua crise, dita da “representação”, indo na direção “das coisas mesmas”. E quer fazê-lo de forma essencialmente descritiva, isso é, não especulativa. Ou seja, há uma espécie de retomada da especificidade e da presença das coisas particulares nesse momento histórico, contrária à tendência abstrata elaborada na modernidade. É a vida cotidiana ela mesma, com seus objetos particulares, indivíduos singulares, seus acasos mais ou menos imprevisíveis e seus lugares mais ou menos comuns, que trará de volta, também para as vanguardas artísticas da época, a chave da descoberta (ou redescoberta) de um tipo de narrativa que estruturalmente vai na contramão da ficção: o documentário.

                Essa afirmação implica dar um passo além dessa falsa dicotomia, dessa antítese plenamente moderna segundo a qual a ficção seria o oposto do real. Como sugerido antes, a ficção funcionaria antes como espelhamento do real, como seu duplo, não seu contrário. Quando as ditas “vanguardas históricas” afirmam sua intenção de reconciliar a Arte e a Vida — é quase um leitmotiv—, elas não propõem uma dissolução completa da uma na outra. Pelo contrário, elas parecem buscar uma forma de narrativa outraque permita dar conta de um regime de experiência essencialmente distinto daquele que vinha sendo construído e confirmado ao longo de muitos séculos. Por isso, para entendermos a radicalidade de suas reivindicações, precisamos ir além inclusive daquela ideia pós-moderna de “graus de invenção” narrativa, que inversamente faz de todos os discursos um tipo de ficção. É preciso aqui postular ao menos a possibilidade — novamente um ato de fé — da criação ou da recriação de um discurso de gênero discursivo distinto da ficção. Nesse sentido, quando o pensamento pós-moderno nos diz que “tudo é ficção”, que o documentário é uma forma que não quer admitir sua própria essência construtiva, sua montagem, sua edição, suas escolhas, ele é perfeitamente moderno. Ele é uma continuação da modernidade, pois amplifica um elemento que é característico desta. Ora, se aceitarmos a possibilidade de um discurso que não seja nem a ficção nem o real, entramos em territórios estranhos e somos obrigados a admitir que existe algo de fundamentalmente anti-moderno nas vanguardas históricas, algo que poderíamos chamar de “primitivo” entre muitas aspas ou ainda de pré-científico no sentido filosófico. A questão radical imputada pelas vanguardas à modernidade seria a seguinte: por que a ficção deve ter o monopólio da construção linguística ou da imaginação estética? E a pergunta que poderíamos fazer na sequência seria: se a ficção tem data e local de nascimento, como afirmam alguns historiadores e teóricos da linguagem, então por que não podem haver outros tipos de discursos, igualmente construídos, mas de outras maneiras? Como funcionaria um discurso que não conta com esse corte radical em relação ao mundo, um discurso feito a partir de elementos reais, concretos, particulares? Ou, em uma só palavra: um discurso feito a partir de documentos, um documentário.

                Neste ponto, poderíamos falar dos situacionistas, de quem vimos um filme estimulante há pouco [Sobre a passagem de umas poucas pessoas através de uma breve unidade de tempo, Guy Debord, 1959], mas antes deles vieram os surrealistas, os quais diziam claramente querer romper com a literatura e “praticar a vida”. Esse movimento, que anunciou o fim da arte autônoma, a dissolução das convenções das belas-artes em uma nova forma de vida expandida foi, como se sabe, taxado pela crítica posterior de “ingênuo”. Mas, quando voltamos aos textos do primeiro surrealismo, mais surpreendentes que os filmes, e certamente mais surpreendentes que os quadros, encontramos livros cujos personagens são os próprios autores e seus amigos. Estes relatam coisas absolutamente triviais e acontecem em lugares aleatórios, mas que são registrados e documentados como se fossem fenômenos e sítios de grande interesse — muitas vezes através de fotografias. Quando perguntam a André Breton, líder autoproclamado do surrealismo, “Por que você escreve, por que faz literatura?”, ele primeiro fala algo ambíguo, dizendo que adoraria poder responder: “Escrevo porque é ainda o que faço de melhor” .(6) Mas rapidamente afirma: “Não é o caso e creio que a poesia, que é tudo que jamais me sorriu na literatura, emane mais da vida dos homens, escritores ou não, do que daquilo que escreveram ou de que supomos que poderiam escrever”. E então conclui: “É ainda, eu não sei por que, nos domínios vizinhos à literatura e à arte que a vida, assim concebida, tende a sua verdadeira realização”.(7) Talvez em 1924 isso não estivesse claro, pois até hoje a palavra parece mal escolhida: é evidente que ele faz literatura, visto que produz textos. O que ele e seus colegas pareciam não quer mais fazer na época é ficção. E mesmo sem saber por que, eles de fato fizeram essa outra coisa que não é ficção, um tipo de discurso que funciona em uma lógica de fé em relação ao mundo e se vale de documentos para comprová-la.

                Com essa decisão de não fazer ficção, surge toda uma nova ideia, filosófica mesmo, se quisermos pensar a coisa em termos interdisciplinares, do sujeito: um indivíduo que aparece, para além do próprio quarto e raciocínio fechados, para além de sua subjetividade psicológica, a qual vai ser taxada por eles, talvez de forma leviana, de “burguesa”. Os surrealistas propõem, literariamente, creio, a ideia de um sujeito antimoderno no seio da modernidade, talvez no momento mesmo em que a narrativa da modernidade se acelera; um sujeito que está aberto ao mundo, aos objetos particulares e aos encontros imprevisíveis, aberto a uma ideia da vida que não é unicamente deduzível do seu raciocínio, que não é apenas uma ideia. E que, portanto, não é apenas sua. Ainda mais interessante, se levarmos em conta a sugestão do livro e do espaço privado como os paradigmas da modernidade, é que Breton situe seu esforço no interior de um quarto aberto, um quarto de vidro, transparente. As primeiras páginas de Nadja (1927-28) são uma espécie de manifesto contra a ficção, um elogio rasgado do “maravilhoso cotidiano” — não de coisas maravilhosas que aconteceriam no cotidiano, mas do próprio cotidiano como algo maravilhoso.

                Alguém sugeriu a um autor conhecido meu, a propósito de uma obra sua que ia ser lançada e cuja heroína podia ser perfeitamente reconhecida, que pelo menos mudasse a cor dos cabelos dela. Loura, ela teria a possibilidade, ao que parece, de não trair uma mulher morena. Pois bem, não acho isso pueril, acho escandaloso. Persisto em reclamar os nomes, a só me interessar pelos livros escancarados, e dos quais não temos de procurar a chave. Por sorte, os dias da literatura psicológica com fabulação romanesca estão contados [...]. De minha parte, continuarei a habitar minha casa de vidro, de onde se pode ver a todo instante quem vem me visitar, onde tudo que está pendurado nos tetos ou nas paredes se sustém como que por encanto, onde repouso à noite, sobre um leito de vidro com lençóis de vidro, onde quem eu sou aparecerá cedo ou tarde, gravado à diamante.(8)

                Ainda hoje surpreende quando nos damos conta de que o surrealismo literário é, de certa forma, muito mais plausível do que qualquer ficção naturalista do século XIX. São textos perturbadores em que não acontece absolutamente nada. Constrangidos pelo seu caráter de documentário, eles são aderentes ao real, constituem uma espécie de hiperrealidade extrema. Ou seja, a partir do surrealismo não conseguimos ir muito longe nas profundezas reflexivas que podemos aceder através da ficção. Seu interesse é outro e Breton está consciente disso: ele é da ordem da reflexão da própria luz do sol na superfície reluzente dos cristais.

                Enfim, como prometido, não falei de cinema. Mas talvez pudesse ter falado de fotografia, pois o pensamento, a história e as técnicas da fotografia e do cinema estão intrinsecamente ligados aos esforços das vanguardas. Sem dúvida a invenção da primeira é um lembrete bastante eficaz, em meados século XIX, da existência autônoma e indubitável de um mundo exterior solar. Se existissem fotografias no século XVII, Descartes talvez tivesse mais dificuldade em sua crítica radical da experiência, de fazer desaparecer o mundo para transformá-lo em livro (ou em quadros). Pois, quando fotografamos, não obtemos uma “representação” ou um quadro fiel da coisa, mas “revela-se” a nós um pedaço, um rastro, um índice da coisa mesma. Por isso, a invenção da fotografia também tem a ver com a crise das ciências europeias e da autossuficiência do mundo pensado, e não é casual que ela se faça presente na antropologia, na psicanálise, na literatura — se não materialmente, ao menos como modelo para o pensamento. É que, por mais moderna que seja, ela nos traz de volta um senso de realidade perdido séculos atrás, e com ele, um modelo de raciocínio primitivo: a ideia de que primeiro vem, não o conceito de cadeira, mas uma cadeira; não o conceito de pessoa, mas uma pessoa. E não apenas uma ou outra, mas sempre esta ou aquela cadeira ou pessoa. A fotografia, reprodutível ou não, segue proliferando no mundo coisas particulares, ou melhor, singulares. E subitamente estamos cercados de coisas fora de contexto, fora do pensamento, as quais não sabemos o que são ou o que significam ao certo. Coisas que não estavam previstas em nosso raciocínio seguro, mas que sem dúvida estão ou estiveram aí: coisas que vieram de fora, do real, em nossa direção, como um raio de luz.

                Agora, saber por que o cinema ainda parece demorar para abraçar a ideia do documentário, visto que as lentes das câmeras só têm acesso ao particular e nunca ao universal; enfim, por que o cinema, mesmo após um início promissor com os irmãos Lumière, parece recuperar tão prontamente essa ideia moderna de ficção; foi uma questão que preferi deixar para mais tarde, e que talvez abordemos agora mesmo nas perguntas, ou talvez em outra hora.

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1    Francis Bacon, “Novum Organon e Nova Atlântida, livro 1, § 41, in Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

2    Id., ibid., § 19; grifo nosso.

3    Peter Sloterdijk, Mobilização copernicana e desarmamento ptolomaico, trad. Heidnm Krieger Olinto. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, p. 56; grifo nosso.

4    René Descartes, Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 14.

5    Id., ibid.

6    André Breton, “Clairement”, in Les Pas perdus [1924]. Paris: Gallimard, 1969, p. 107; tradução nossa tradução.

7    Id., ibid; grifo nosso.

8    Id., Nadja, trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 26.