Interview by Wagner Nardy on the occasion of the exhibition Who watches the watchman? at Duas Galerias, Belo Horizonte, on 16.04.19




Wagner Nardy        Daniel, seu trabalho é baseado em experiências pessoais, autobiográficas. Em “Quem vigia o vigia?” qual o ponto de partida para a realização da obra?

Daniel Jablonski        O ponto de partida dessa obra é uma experiência cotidiana, em aparência muito banal: desde criança, tenho grande dificuldade de acordar cedo pela manhã. Às vezes, isso leva poucos minutos, às vezes, horas inteiras. Um dia pensei: e se outras pessoas tiverem o mesmo problema? E se eu for o portador de um distúrbio de sono desconhecido, consistindo na dificuldade de passar do sono para a vigília? Algo que fosse o inverso da insônia? Inventei então uma experiência caseira: dormi durante um mês amarrado a um antigo relógio de ponto de vigia noturno. Antes da chegada das câmeras de vigilância, esses vigias tinham que bater ponto várias vezes por noite ao longo de suas rondas em fábricas galpões.

Ao introduzir uma chave no aparelho portátil, uma bobina de papel imprimia automaticamente a hora e o local em que eles se encontravam. Minha ideia era a seguinte: ao me submeter voluntariamente a esse sistema de controle corporal, vigiar a mim mesmo, registrando assim meus próprios intervalos de sono. Nesse “estudo de caso” em primeira pessoa, eu seria alternadamente o patrão e o vigia, assim como o analista e o portador desse novo transtorno de sono. Eu estaria, em minha própria cama, vivendo uma experiência potencialmente coletiva, compartilhável.



WN        Diferente de uma concepção “modernista” de arte obra, na qual a obra comenta ou reflete apenas sobre si própria, sua produção parece remeter a uma ideia de criação “aberta” à significações exteriores ao próprio campo da arte. Como isto se manifesta na eleição dos suportes e qual a sua visão sobre as portas de acesso à obra pelo público?

DJ        Me parece fundamental que uma obra de arte possa comunicar diretamente com o seu público, e isso, justamente, sem saber a priori quem é esse público. No meu caso, isso se traduz de duas formas: primeiro, fazendo com que minha produção esteja ancorada em situações corriqueiras, do cotidiano, que dizem respeito a todos. Por exemplo, dormir e acordar, questão simples mas que envolve muitas camadas politicas, econômicas, sociais. Por outro lado, insisto também na natureza “narrativa” de meus projetos. Eles podem tomar distintas formas — tal como fotografias, instalações, performances, objetos, ou mesmo textos e palestras — porque, no fundo, são histórias. As quais o próprio público pode passar adiante, da forma que bem entender, dispensando a mediação privilegiada, seja do artista ou de um crítico ou curador: “Sabe o Daniel, aquele que tem a doença do sono?”



WN        Essa narrativa em particular está enraizada em leituras que você fez da Psicanálise de Freud. Em Sobre os sonhos, de 1901, lemos que “Os sonhos agem como um vigia noturno consciencioso, que primeiro cumpre seu dever pela supressão das perturbações, para que os cidadãos não sejam despertados, mas depois continua a cumpri-lo, indo ele próprio acordar os cidadãos, quando as causas da perturbação lhe parecem graves e de um tipo que ele não pode enfrentar sozinho”. Gostaria que falasse um pouco sobre isso.

DJ        É interessante que o próprio Freud utilize essa metáfora: “o sonho é o guardião do sono”. Isso vai além da vulgata que temos da psicanálise: pois, ainda que os sonhos possam constituir uma via de acesso privilegiada ao inconsciente, essa não é para Freud a sua única função. Ao dar ao sonhador a ilusão de realizar um desejo durante a noite, os sonhos retomam o controle sobre o fluxo de energia do inconsciente, garantindo assim a realização de outro desejo muito concreto: o desejo de dormir. Esse sonho que age como um “vigia noturno” deve, não apenas cuidar do nosso sono, mas também nos despertar pela manhã, quando nossas energias estiverem restauradas. Por isso, o correto seria afirmar: para Freud, nós não descansamos apenas para poder sonhar, mas sonhamos também para poder descansar.



WN        Noto ainda outra camada de seu trabalho que toca em questões extremamente politicas como a crise do sujeito moderno e as formas de dominação e poder nos tempos atuais. É possível relacionar “quem vigia o vigia?” com os discursos neoliberais que tanto tem assombrado a América Latina?

DJ        Mais que uma simples metáfora de Freud, o vigia noturno é a peça central que garante o funcionamento de toda a sociedade industrial, da qual somos os herdeiros diretos. E o relógio que ele carrega consigo todas as noites em torno do corpo fala muito dessa neurose tão característica do capitalismo, segundo a qual “tempo é dinheiro”. A grande preocupação do patrão no século 19 já não é tanto que alguém esteja vigiando sua fábrica durante a noite, mas que ele possa vigiar seu vigia, mesmo enquanto dorme. Sem o auxílio do relógio de ponto, como ele poderia saber que não estava sendo enganado, pagando um vigia para dormir? Essa cadeia de vigilâncias, que segue hoje com câmeras de segurança, relógios de ponto digitais e sistemas de rastreamento de nossos dispositivos eletrônicos, já não se limita mais ao local e tempo de trabalho, mas está alastrada por todas as dimensões de nossas vidas. O equipamento que utilizei na obra é antigo, a questão que levanto não.



WN        Daniel, o curador Hans Ulrich Obrist em suas conversas sempre indaga aos artistas qual é o projeto que eles nunca concluíram. Parafraseando o curador gostaria que me dissesse qual o maior projeto que almeja construir.

DJ        Considero que minhas obras estejam sempre em processo, e possam sempre surgir de novas maneiras, a depender de cada novo contexto. Da mesma forma como é possível, por exemplo, recontar uma mesma história de forma sempre distinta. Embora elas nunca encontrem um acabamento total, elas constituem partes, por assim dizer, de uma mesma história. Tenho como horizonte de trabalho a longo prazo a criação de um tecido de obras, formal e tematicamente variadas, mas que constitua uma espécie de autobiografia. Não exatamente da pessoa Daniel, com suas questões interiores e singularidades irredutíveis, mas do Daniel como um sujeito genérico, atravessado por inúmeras situações corriqueiras, dessa aparente banalidade do cotidiano, a qual esconde problemáticas complexas; e com as quais justamente qualquer um pode se identificar. E, idealmente, se ver aí também representado.