The essay proposes a review of the phenomenological reading of Paul Cézanne's work by Maurice Merleau-Ponty, based on the theory of "iconic situations", developed by Swiss philosopher Bruno Haas. Behind Cézanne's obsessive practice, I trace, not an opening to "primordial nature" through the work of perception, but a response to the ghost of 19th century industrial machinery and, in particular, the photographic camera. It is also a retrospective stance at my Master's degree in philosophy of art, presented in Paris in the already distant year of 2011. I try to not only settle the score with that dissertation and its characters, but also ask myself why, after those years, it still seems so important to talk about Cézanne.
Source > Ensaia Magazine #02, august 2016 (Portuguese)
Ele sofreu. Nós não o soubemos.
Ele aguentou até o fim.
Ele poderia ter vivido em Paris
encontrado seus amigos, admiradores,
buscado encorajamentos.
Ele não o quis.
ÉLIE FAURE, sobre Paul Cézanne,
Historia da Arte Moderna, tomo 2, 1923.
No
início de 2015 fui convidado a participar de um programa de falas organizado por
Pedro França, Julia Ayerbe, Marcela Vieira e Roberto Winter, cujas únicas coordenadas
eram: um artista fala uma hora sobre uma
pintura de mais de 100 anos. O evento vinha acontecendo havia um ano em São
Paulo e reunia, em intervalos irregulares, um pequeno grupo de entusiastas — artistas,
curadores e pesquisadores — que só conhecia o nome do palestrante e da pintura em
questão com alguns dias de antecedência. A publicação de um ensaio baseado nas
notas lidas por lá não tem a intenção trair o ideal de efemeridade do encontro
(que não contou com nenhuma forma de registro), mas de agradecer de forma
sonora aos organizadores pela oportunidade de voltar a falar de Cézanne. À
parte um breve curso que ministrei na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, sentia
que não havia retomado seriamente o tema de meu mestrado em filosofia da arte, defendido
em Paris no já longínquo ano de 2011. Confesso que vi aí mais do que um convite
a falar de uma pintura em particular: não somente a oportunidade concreta de
acertar as contas com aquela dissertação e seus personagens; mas também a
ocasião de me perguntar porque, passados esses anos, parecia-me ainda tão importante
falar de Cézanne. É claro que tudo isto excedia em muito o escopo da proposta,
mas foi de onde tirei o intenso fôlego naqueles dias de reclusão estudiosa antes
da fala. Afinal — e isto não é um mea-culpa — eu também era um daqueles entusiastas.
Há algo no interior da pintura que escolhi, comecei dizendo ao público, que parece repelir frontalmente todas as minhas tentativas de análise. Algo de inóspito no interior d’A ponte Maincy, de 1879, algo de uma solidez aterradora, quase instransponível. Arrisco por isso, acrescentei, tomar um longo desvio, o qual me levará, se minhas suspeitas se mostrarem corretas, ao que há de mais central nesta obra.
Começo pelo fim: apenas um ano após a morte do pintor Paul Cézanne na casa que lhe servia de ateliê nas imediações de Aix-en-Provence, seu marchand Ambroise Vollard organiza a primeira retrospectiva pública de sua obra no Salon d’Automnede Paris. O intervalo 1906 -1907 marca uma passagem meteórica: de uma situação de relativo anonimato perante o grande público, o artista provençal é içado ao mais alto ranking da pintura europeia. Outras exposições de sua obra já haviam sido organizadas em Paris, pelo próprio Vollard, em 1895 e 1899, mas é esta mostra, em particular, que permitirá aos habitantes da capital tomar contato direto com esta obra singular, tão diferente da precocemente envelhecida corrente do neoimpressionismo no fim do século 19. Assim, por exemplo, o poeta Rainer Maria Rilke relatará, em uma das missivas enviadas à sua esposa na Alemanha que constituem o volume Cartas sobre Cézanne: “Ontem fomos lá [mais uma vez]. Cézanne não nos deixou ver mais nada. Noto cada vez mais a importância do que acontece aqui”(1). Mas ele notará também, com uma ironia que trai seu desejo de distinção social, que essa tomada de consciência parece estar ocorrendo simultaneamente à sua volta: “E lá fora as pessoas dizem: ‘Cézanne’, os senhores em Paris escrevem seu nome com ênfase, orgulhosos por estarem bem informados”(2). É claro, alguns dos grandes pintores modernos já conheciam seu nome: é o caso notadamente de Gauguin e Van Gogh desde 1880, por intermédio de Pissarro, e também dos nabis desde pelo menos 1890. Mas é apenas no início do século 20 que a comunidade artística parisiense sofre o impacto de seu trabalho, em um momento disruptivo que Alfred H. Barr, historiador e futuro fundador do MoMA de Nova York, cunhou de “Cézanne ou a crise de 1907-1908”(3). Esta crise terá afetado diretamente, diz ele, não somente ao grupo dos fauves: Matisse, Derain, Dufy, Vlaminck, mas também, por exemplo, à Georges Braque, que passa sem transição do Fauvismo ao Cubismo e junta-se assim à Picasso, que havia terminado de pintar, ainda no ano de 1907, o quadro-limite Les Demoiselles D’Avignon.
Embora seja relativamente fácil perceber a extensão da crise instaurada pela obra de Cézanne na arte moderna, não é tão simples compreender porque ela não dá origem a uma “escola” propriamente dita. Ou, para ir direto ao ponto, porque nenhuma das grandes obras que devem à Cézanne sua existência parece se inserir em uma continuidade estética com ela? O exemplo da trajetória de Matisse é aqui especialmente instrutivo: o mesmo Barr fala dele em 1951 como um “cézanista prematuro”, por haver identificado antes de seus pares (e sobretudo antes de Picasso) a importância da obra de Cézanne, mas aponta também para a “direção pós-cezaniana”(4) que toma sua própria obra já em 1907. Como nos lembram seus biógrafos, Matisse adquire do próprio Vollard em 1899 o pequeno quadro de Cézanne intitulado Três Banhistas(1879-1882), por aproximadamente 1600 francos, quase a metade de sua renda anual. Mais tarde, ao recordar seus dias de estudante de arte, o artista consagrado justificaria seu investimento (ele penhorou um anel de esmeralda de sua mulher, Amélie) dizendo: “Nos trinta e sete anos que fiquei com esse quadro, vim a conhecê-lo razoavelmente bem, ainda que sem esgotá-lo [...]. Ele me proporcionou apoio moral em momentos críticos de minha trajetória como artista; dele extraí a minha fé e a minha perseverança”(5). Dele, Matisse extraiu também o tema de base para toda uma série de desenhos privilegiando o tema do “nu de costas”, produzidos ao fim de seu período fauve, justamente entre 1906 e 1907. Fantasma iconográfico que continuará a reaparecer ao longo de toda sua obra, das mais diversas formas e até seus últimos recortes e papeis colados nos anos 1940 e 1950. Contudo, não é exatamente no universo das formas que a lição de Cézanne parece ter fixado suas raízes em Matisse. Esta se revela, mais profundamente, no próprio corpo do pintor, como uma postura inicial dúbia frente ao quadro, a qual lhe engendra, em seguida, uma confiança “moral” inabalável em seu sucesso: “Nos momentos de dúvida”, recorda ele, “em que ainda estava me procurando, espantado por minhas descobertas, eu sabia que Cézanne não estava enganado”(6). E espelhando-se claramente em sua imagem refletida nas Três banhistas, Matisse acrescenta: “Que ninguém se espante que Cézanne tenha tão longamente meditado e hesitado. De minha parte, a cada vez que me encontrava diante de minha tela, me parecia que era a primeira vez que pintava. Havia tantas possibilidades para Cézanne que, antes de tudo, ele precisava colocar em ordem em o cérebro”(7).
Cézanne parece estar aí para Matisse não quando este termina a sua tela, mas quando começa, isto é, sempre que voltar a postar-se, independente de sua experiência acumulada ao longo dos anos, frente a uma tela virgem. Cézanne parece representar, assim, mais uma postura do que uma receita, mais uma forma de disciplina do que um resultado específico. E, a julgar pelas reiteradas declarações de impotência do pintor provençal, mais uma perspectiva de fracasso do que de sucesso. Assim, toda a questão se resumiria a entender como é possível que o mais essencial de sua lição tenha sido precisamente a sua dúvida. Ou ainda, o que Matisse queria dizer quando declarava: “se Cézanne estava certo, então eu estou certo”(8).
Isso não é pouco, recordo haver dito à plateia. O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, para tomar um exemplo que me é caro, construiu toda a sua teoria da arte sobre essa questão. E quiçá todo seu pensamento, para além da referência óbvia (e correta) à fenomenologia de seu mestre Edmund Husserl. Hipótese que talvez explique a persistência deste pintor como modelo exemplar, desde o artigo a Dúvida de Cézanne de 1943 (publicado ao fim da 2a Guerra, em 1945), até o longo ensaio de estética destinado a ilustrar as profundas transformações pelas quais passava a sua filosofia, O olho e o espírito (1960).
É bem verdade que, como a grande maioria dos filósofos interessados em processos estéticos, Merleau-Ponty faz um uso bastante aproximativo das obras de arte propriamente ditas. Mas é compreensível, pois ele afirma estar menos interessado em objetos ou artefatos culturais, do que no ato mesmo da criação: isso é, na série de imprevisíveis “metamorfoses” ou “transmutações” (são termos técnicos) que se estabelecem entre o mundo e a tela na gênese de uma obra de arte. E este “sistema de equivalências” (é um termo técnico) instaurado pelo movimento do corpo do pintor no espaço encontra seu respaldo, por sua vez, na teoria fenomenológica do “corpo próprio” e na noção de “carne” (são também termos técnicos). Não cabe entrar aqui em detalhes sobre a origem desses termos e conceitos em Husserl, nem sobre sua transformação na dita virada “ontológica” do pensamento tardio de Merleau-Ponty. Basta, por ora, dizer que a atividade do artista é, para esse último, o melhor exemplo de uma das intuições centrais da fenomenologia — o ideal da suspenção do juízo — e Cézanne, com sua decisão de levar até as últimas consequências as exigências de uma obra laboriosa, a ilustração perfeita do que deveria fazer um filósofo. “Suspender o juízo” significa deixar de lado, pôr entre parêneses, ainda que por um minuto, todo o sistema natural de convicções, hábitos e crenças que temos sobre o mundo. Isto, não para negar as certezas do senso comum ou pôr a existência do mundo em xeque, mas como nos explica Merleau-Ponty no clássico Prefácio à Fenomenologia da Percepção, porque “para ver o mundo e apreendê-lo como paradoxo, é preciso romper nossa familiaridade com ele”(9). Em suma, interromper o fluxo perceptivo de nossa vida cotidiana, não significa afundar-nos na cegueira de nossos próprios pensamentos, mas tomar uma distância que nos permita ver as coisas tais como elas são em sua origem, reencontrar o frescor do olhar infantil que vê tudo como se fosse a primeira vez. Ora, esse exercício é, por definição, sem fim:
O filósofo [...] é alguém que perpetuamente começa. Isso significa que ele não considera como adquirido nada do que os homens ou os cientistas acreditam saber. Isso também significa que a filosofia não deve considerar-se a si mesma como adquirida naquilo que ela pôde dizer de verdadeiro, que ela é uma experiência renovada de seu próprio começo, que toda ela consiste em descrever este começo e, enfim, que a reflexão radical é consciência de sua própria dependência em relação a uma vida irrefletida que é sua situação inicial, constante e final(10).
Fenomenologia: a filosofia entendida como uma arte da descrição, sempre renovada, do grau zero da experiência. Não é de se espantar que Cézanne tenha interessado tanto à Merleau-Ponty: ele representa, de fato, o protótipo do homem comum que decide um belo dia abandonar todas as comodidades de sua vida de pequeno-burguês, sua família, seus amigos e colegas, e dedicar-se a um jogo secreto consistindo na descrição obsessiva de paisagens rurais do sul da França. Longe de ver aí uma “fuga do mundo humano, a alienação de sua humanidade”(11), Merleau-Ponty enxerga na decisão individual do pintor, sustentada dia após dia durante anos, o mesmo compromisso radical do filósofo em relação a essa verdade primeira, a qual só pode ser alcançada através de um corte na experiência. É na figura de um trabalhador da pintura — humilde e paciente, porém excepcionalmente obstinado — que o filósofo concebe seu par perfeito nas artes visuais: “O próprio pintor é um homem que trabalha e reencontra todas as manhãs a mesma interrogação na figura das coisas, o mesmo apelo ao qual nunca terminou nunca de responder”(12). Mas esse homem comum, sujeito ao fracasso, se mostra também excepcional, pois o encara de frente. Cézanne, mais uma vez é o modelo: justamente porque é um pintor desprovido, não de talento, mas deste “gênio” infalível celebrado pelos escritores românticos alemães, que ele pode ter tantas dúvidas, que pode hesitar diariamente quanto aos rumos de seu trabalho: “Em nove de cada dez dias”, escreve Merleau-Ponty, “ele vê a seu redor somente a miséria de sua vida empírica e de suas tentativas frustradas...”(13). Mas aqui está o twist do argumento pois, para que algo possa acontecer um desses dez dias é preciso trabalhar todos eles, e assim, a insolvente sensação de impotência de Cézanne será convertida no selo que comprova uma vida de ruminação resoluta do mundo visível. Por isso, caberia dizer: para Merleau-Ponty, a hesitação do pintor frente ao visível é o seu método de trabalho, e a sua dúvida em relação ao progresso de sua obra, a prova de que ele permaneceu fiel às regras do jogo.
É com orgulho que ele oferece ao leitor de seu artigo de 1945, um trecho das correspondências de Cézanne — bastante triste, em verdade — onde este confessa a Émile Bernard que continuava a duvidar da pertinência de seu trabalho. Apesar de, como nos informa suas cartas, ter encontrado um relativo reconhecimento de seus colegas impressionistas, ter sido louvado por jovens teóricos da arte, e ver seus quadros serem vendidos em Paris por valores recorde para colecionadores estrangeiros. Esta é do dia 21 de setembro de 1906 e lê-se assim: “Encontro-me num tal estado de perturbações cerebrais, numa perturbação tão grande que temo, a qualquer momento, que minha frágil razão me abandone [...]. Parece-me que sigo melhor e que penso com exatidão na orientação de meus estudos. Chegarei à meta tão buscada e há tanto tempo perseguida?”(14). Ele morreria no dia 23 de outubro do mesmo ano, e sua última carta enviada pede pressa a um fornecedor que ainda não lhe havia entregue uma tinta.
Ora, que a última palavra de um filósofo como este seja sobre “arte e, especialmente a pintura”(15), já não é surpreendente. Afinal, a exigência fenomenológica da “descrição” do visível terá marcado profundamente sua trajetória intelectual. Mas isso não é tudo: pois, para escrever essa última palavra sobre a pintura, Merleau-Ponty decide também deixar a capital, seu local de trabalho, suas leituras, seus debates com os colegas de profissão. É claro, são as férias escolares na França, e até mesmo os filósofos merecem descansar ao sol. Mas há aqui também uma tragédia à espreita: ele morreria de um ataque do coração fulminante, alguns poucos meses após seu retorno, deixando entre parênteses a redação daquela que seria considerada, apesar de seu inacabamento, sua obra-prima filosófica: O visível e o invisível (1964).Além disso, são bem conhecidas suas críticas da época à “historicidade de morte(16)” dos Museus e à visitas das obras iluminado pela “luz fraca dos interiores”(17)dos apartamentos parisienses. Por isso, não seria abusivo supor que tenha lhe parecido lógico, para compreender esta verdadeira profundidade da pintura, ter sob os seus próprios olhos esse horizonte do pintor ao trabalho: a montanha marcada pelo olhos de Cézanne. O que sabemos ao certo é que ele aluga uma casa de pintor na localidade rural de Le Tholonet, perto de Aix-en-Provence e passa aí todo o verão de 1960 escrevendo. O ambicioso ensaio que resulta, contendo uma prévia de sua nova ontologia inspirada na pintura moderna, lê-se também como um diário do que ele viu e viveu naqueles meses na casa de campo: descrições detalhadas do que suscitou sua reflexão, a partir do que se deu a ver, tão logo seus olhos se dirigiram, por exemplo, para o “anteparo de ciprestes onde brinca a trama dos reflexos” sobra a água da piscina de azulejos vista “através dessas distorções, dessas zebruras do sol”(18). Lançando mão de uma escrita claramente poética, visando a confusão de todas as relações clássicas entre visão e fala, Merleau-Ponty parece reencontrar em si mesmo o ideal da fenomenologia perdido pelo imobilismo satisfeito da academia parisiense: “de volta às coisas elas mesmas”, dizia seu mestre Husserl. Mas ele parece também reencontrar na figura do próprio Cézanne, conjugando intimamente uma vida e um trabalho “difíceis”, um espelho privilegiado para as suas próprias aspirações, medos e incertezas.
Deixo que outro filósofo francês, François Lyotard, deduza o óbvio: “Merleau-Ponty certamente não teria sido um grande comentador de Cézanne se a ‘dúvida de Cézanne’ não fosse a sua própria”(19). Um tal comentário intrigou-me desde o início da pesquisa do mestrado em filosofia que defendi em Paris, acerca da noção de “pensée en peinture” em Merleau-Ponty. Não era este o meu tema, mas encontrava por toda parte esse bizarro padrão de identificação pessoal dos autores com Cézanne: Merleau-Ponty, Matisse, Rilke, e até mesmo meu orientador da época, grande autoridade em fenomenologia na Sorbonne; todos haviam decidido deixar a metrópole em algum ponto de suas vidas a fim de trabalhar mais ou menos isolados no interior do país, repetindo o gesto paradigmático do pintor no século 19. Esta era a questão que nunca pude responder com meu instrumental fenomenológico: porque gostar de Cézanne não implicava tanto em tentar simular o seu estilo pictórico, senão seu estilo de vida? A resposta, como não podia deixar de ser, encontrei-a também em um sofisticado jogo de espelhos, no qual eu mesmo me vi preso, projetando-me sobre outra figura não menos excêntrica que as anteriores: Bruno Haas. Assim se chamava um dos meus professores da época, com o qual estabeleci um contato que ia além da cordialidade francesa. Foi com ele que aprendi a olhar os quadros de Cézanne de forma realmente detida, em visitas regulares à Orangerie. Às vezes, detidas até demais: certa feita, passamos mais de duas horas frente a única uma pintura de pequenas dimensões, que hoje sintomaticamente, não recordo mais — talvez o Rochedo vermelho (1895) ou No parque de Chateau Noir(1898-1900). Foi também com ele que comecei a suspeitar, não tanto da corrente da fenomenologia em si (isso já vinha acontecendo antes), mas de Merleau-Ponty em particular, a quem ele acusava, humoristicamente, de ser “un gentil garçon” ou “un petit-bourgeois”. Nesta mesma linha de raciocínio “para-acadêmica”, recordo tê-lo divertido ainda um dia com a confirmação de suas suspeitas: o aluguel daquela propriedade do Tholonet deveria ter lhe saído uma verdadeira fortuna, visto que piscinas de azulejos ainda eram itens raros nas casas de campo francesas na década de 1960.
Vindo de uma pequena cidade da Suíça, e com poucas publicações disponíveis em francês ou inglês, Haas era um estrangeiro em todos os sentidos da palavra naquela instituição de elite parisiense, e lhe coube ensinar os cursos que mais ninguém queria: assisti com ele meu primeiro curso sobre a obra de Jacques Lacan e outro sobre a de Joseph Beuys (embora afirmasse ser especialista de Hegel e Kandinsky). Seja como for, de alguma maneira ele conseguiu ministrar por alguns poucos semestres — e eu tive a sorte de assistir — um curso sobre o que ele chamava de “Situações icônicas”. Neste, ele se propunha a analisar, através do método da “análise funcional” difundido por ele mesmo e por seu irmão músico, Bernhard Haas, as diferentes configurações do “fenômeno imagem”, tal qual este se apresentava ao longo da história, dos vitrais da Idade média até a arte conceitual norte-americana. Tão enciclopédicas quanto inconclusivas, suas aulas misturavam considerações sobre história da arte, história das técnicas, teoria da visão e das cores, sempre de acordo com o paradigma epistemológico de cada época estudada. Coincidência ou não, ele parecia estar de acordo com Merleau-Ponty sobre o fato de que “nessa história, que espera ainda ser escrita, Cézanne aparece como um interlocutor particularmente interessante”(20). E o melhor: à título excepcional, sua análise da “situação icônica” na qual a obra de Cézanne se instalava havia sido redigida em uma língua à qual eu tinha acesso: o francês. Este texto, também produzido por ocasião de um colóquio em Aix-en-Provence, não se limitava a mostrar como os efeitos que Merleau-Ponty registra funcionam em termos puramente pictóricos; ele demonstrava também que o fascínio do filósofo pelo olho de Cézanne é uma função direta desse tipo de pintura. Pena ter levado ainda três ou quatro anos para conseguir entender o que eu pude apenas ler naquela época.
E aqui estamos, disse ao público, no meio desta fala. Anos depois de entregar à banca minha dissertação, que tentava (sem todavia encontrar os elementos certos para isso) apontar para a anacronia em Merleau-Ponty que consistia em fundar a sua “filosofia de hoje”(21) no início da década de 1960 com base em um paradigma estético do século 19. Comecei notando que havia algo na pintura que escolhi que impedia uma análise direta. E que, por isso, iria tomar um longo desvio para chegar ao que havia nela de mais central. Pois bem, tratei de esclarecer então, não se tratava nem de uma metáfora nem de uma figura retórica. A necessidade do desvio, por um método “indireto” para se chegar ao cerne da questão, encontrava sua origem na estrutura mesma das obras de maturidade Cézanne, as quais, segundo Haas, articulam dois planos aparentemente contraditórios.
De fato, grande parte de seus comentadores parece alternar-se (conscientemente ou não) na descrição, seja de um certo “distanciamento” por um excesso de rigor na composição de suas telas, seja, ao contrário, de uma certa “intimidade” na forma do transbordamento do visível pelas cores. Com Merleau-Ponty não é diferente. Ao descrever, por exemplo, O Lago de Annecy (1896), ele primeiro afirma: “a paisagem é sem vento, a água [...] sem movimento, os objetos transidos parecem hesitantes como na origem da terra. É um mundo sem familiaridade, no qual não estamos bem, que impede toda efusão humana”(22). Para tão logo declarar que a intenção do pintor era, pelo contrário, a de “pintar o mundo, convertê-lo inteiramente em espetáculo, fazer ver como ele nostoca”(23). Restaria explicar como essas duas posições podem ser não apenas simplesmente compatíveis, mas perfeitamente complementares — se não já soubéssemos a resposta. Trata-se, para Merleau-Ponty, do mesmo paradoxo segundo o qual nossa familiaridade com o mundo não está dada de início, mas precisa ser sempre reencontrada. Trata-se, antes dele, para o próprio Husserl, da própria fenomenologia entendida como essa ciência do sujeito, na qual a “origem” das coisas não coincide nunca com o “início” de nossa experiência: porque a percepção se vive desde sempre “de dentro”, é preciso em determinado momento pôr nossos hábitos entre parênteses para fazer o mundo reaparecer em sua origem, isso é, “na frente” de nossos olhos. Por isso, quando o filósofo francês escreve: “A pintura de Cézanne suspende esses hábitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual o homem se instala”; ele se vê imediatamente obrigado a acrescentar: “Mas somente um homem, justamente, é capaz dessa visão que vai até as raízes, aquém da humanidade constituída”(24).
Mas há também algo de impreciso nesta sua afirmação: pois não é tanto na pintura de Cézanne que se deixa perceber esse ideal “suspenção do juízo”, senão no próprio corpo do pintor. “Toda técnica é técnica do corpo”(25), lemos em O olho e o espírito. De modo que não pelo acúmulo de matéria sobre uma tela mas somente por uma renúncia exercida sobre sua própria vida ao longo dos anos — o desapego voluntário de seu gosto, de seu estilo, de sua própria identidade — que se pode alcançar essa comunhão mais profunda e, todavia mais simples, com o mundo natural: “O artista [...] não se contenta em ser um animal cultivado, ele assume a cultura desde seu começo e funda-a novamente, fala como o primeiro homem falou e pinta como se jamais houvessem pintado”(26). O trabalho do pintor não é outro que o dessa visão “que desce até as raízes” das coisas; e esta é a razão profunda pela qual sua “técnica” do corpo — assim como a do filósofo — não pode nunca se dar por adquirida: nunca uma descrição terá esgotado a riqueza de um fenômeno; é preciso pintar de novo e de novo a montanha. Ideal de um trabalho de ascese cotidiano que o mesmo poeta Rilke, com sua maneira certamente mais afetada de colocar as coisas, terá resumido de maneira não menos exemplar: “Ah”, ele suspira, “nós contamos os anos e fazemos divisões aqui e ali, parando e começando e hesitando [...] e nós só temos, no fundo, de existir, mas com simplicidade, com insistência, como a Terra existe, dando seu consentimento às estações...”(27).
O argumento de Haas — se é que entendi algo deste texto tão curto quanto enigmático — diz todo o contrário, e poderia ser resumido em uma só frase: não é o pintor quem opera esse trabalho, é a própria pintura. E ela o faz não apenas sobre o pintor, mas sobre qualquer um que se poste diante dela. Esta inversão seria o ponto nodal da teoria das “situações icônicas”, nas quais não se trata apenas de saber o que se dá a ver em tal imagem, mas quem é esse sujeito que vê o que lhe é mostrado. Pois a pintura, em suas palavras, “permite talvez colocar essa questão; ela o permite na medida em que me situa, que me dá um lugar, que me dá um ser”(28). Se toda obra participa do plano do imaginário, nem todas o fazem da mesma maneira; as estruturas que articulam o ali do quadro ao aí do espectador são variáveis historicamente. Trata-se de saber, através do método da análise funcional da imagem, em cada caso, quem ou o quê sou eu quando estou diante de tal imagem?
Nesta longa história, diz ele, a obra de Cézanne apresentaria algo de singular em relação a épocas passadas: o fato de marcar o aparecimento do “lugar estrutural” da imagem enquanto imagem. O “ser-imagem” dessa pintura não coincide apenas com a sua definição tautológica (toda pintura é uma imagem e não a própria coisa), mas surge como algo visível, dando-se a ver como um “evento pictórico” autônomo. Em outras palavras, frente a uma tela de Cézanne, nos deparamos com indícios claros de que estamos diante de uma imagem. Ai, o espectador já não é mais capaz de situar-se no espaço como se estivesse “realmente” diante do que está representado; ele não pode mais representar-se, por exemplo, como podendo “tocar” as coisas, ou ir imaginariamente ao encontro do que lhe é apresentado no fundo do quadro (o que, diga-se entre parênteses, era um efeito desejado em outras “situações icônicas”; basta pensar nas famosas descrições que Diderot oferece da pintura do século 18 em seus “Salões”). Convergimos então com Merleau-Ponty neste ponto: as coisas não estão em Cézanne como poderiam ser encontradas em nosso cotidiano. Elas parecem frias, rígidas, totalmente inalcançáveis. De fato, tudo se passa como se nossa visão natural das coisas tivesse sido “suspensa”, como se ela se apagasse subitamente. No entanto, diz Haas, “há algo a ser visto nesse efeito de apagamento da visão. A visão se apaga para deixar ver outra coisa no lugar do que está aí. Essa outra coisa é a imagem”. E ele conclui com um aforisma de uma simplicidade desconcertante: “Quando vejo uma coisa distinta do que está ai, vejo uma imagem”(29). É como se perdêssemos com Cézanne o poder de ver as coisas por nós mesmos, de ir até elas por nossos próprios meios, mas víssemos agora o aquilo que foi visto por outro, como se fossemos subitamente postos no lugar da visão de um outro. Como se nossa própria experiência do mundo nos fosse primeiro recusada, para ser tão logo substituída por uma imagem: não o lago de Annecy tal qual eu o veria se estivesse realmente lá, mas a visão do lago pintado, tal como visto por outro. Mas quem? Cézanne? Seguramente, mas não só.
Uma rápida comparação com um quadro de Camille Pissarro, pintor mais velho e iniciador de Cézanne na pintura ao ar livre pode ajudar neste ponto. Eles pintam no mesmo dia a Vista da Casa dos Mathurins, Pontoise e a Paisagem em Pontoise (O Campo dos Mathurins), a partir de uma pequena elevação do terreno. (Cézanne passará ainda dois anos fazendo retoques ao que Pissarro terá feito em poucos dias, mas isso é apenas anedótico). Todas as características “estruturais” da pintura de Cézanne já aparecem aqui, em 1875, com nitidez: ele utiliza um verde mais intenso do que o de Pissarro, que por sua vez, conta com muito mais variedade de cores: amarelos, cores de terra, azuis e ocres. Esta paleta reduzida se traduzirá em uma composição marcada por volumes e densidades, espessura da matéria, contrastes e definições claras; mais uma vez, em oposição a Pissarro, que conta com transições, passagens, e interferências cromáticas mais sutis. Narrativamente também a pintura de Cézanne mostra sua marca negativa: toda a ideia de circulação, de movimento, sublinhando o comprimento do muro e introduzindo o ritmo da vida humana, foi eliminada a fim de marcar a oposição radical entre as duas seções do quadro. No entanto, é sobre um ponto em específico dessa comparação que gostaria de insistir: comentou-se muitas vezes que Cézanne costumava posicionar naquela época seu cavalete atrás do de Pissarro, para poder observar não somente o motivo em comum mas também seu mestre em ação. Entretanto, a sensação é que a versão de Cézanne está muito mais próxima do motivo. Ora, isso se deve justamente à eliminação do primeiro plano que, em Pissarro, é significativamente essa pequena elevação que nos convida à travessia imaginária do espaço pictórico. Ao barrar o acesso do espectador por meio da eliminação do apoio para seus pés, Cézanne suspende sua presença física, e a substitui por outro tipo de presença, fantasmática, a de um “olho” que testemunha, estático, a reaproximação dos objetos e planos mais longínquos projetando-se vertiginosamente em sua direção.
Desta comparação se desprendem dois pontos importantes: em primeiro lugar, uma descrição que dá conta daquela passagem fenomenológica da “distância” para a “intimidade” em termos puramente pictóricos: o que teve de ser negado para o que o visível pudesse “nos tocar” não foram os hábitos do pintor, mas o primeiro plano da pintura, isso é, o apoio para os pés do espectador. Em todo rigor, podemos dizer que, na pintura de Cézanne, já não somos mais nós que vamos até lá (fisicamente), é o lá que vem até nós (visualmente), como um súbito fenômeno luminoso, aparecendo de uma só vez, como pura visibilidade. De onde deduz-se o segundo ponto: a transmutação da corporeidade do espectador a um único “olho de carne” (é um termo técnico) que recebe o mundo visto. Não é “o estofo do mundo”(30)(é um termo técnico) que estabelece esse continuumda natureza com meu corpo “vidente e visível” mas, uma vez mais, a própria pintura: é esse mundo que parece bruscamente retornar como imagem que reduz o espectador a uma posição de “êxtase”, atingindo-o em cheio sua mobilidade física, fazendo-o assumir essa posição de receptividade fundamental que é própria ao “olho”. E isso vale até mesmo para o próprio Cézanne. Pois o pintor não está vendo o motivo ele mesmo, mas também uma imagem: o motivo visto por Pissarro. No sentido forte da expressão, a visão de Cézanne é a do próprio Pissarro.
É finalmente o surgimento do mundo como “imagem”, isso é, como aquilo que foi visto por um outro, que aparece em Ponte de Maincy de maneira exemplar. (Estamos agora no coração de nossa análise). A tela tem a fatura tão cerrada que temos a impressão que é sobre ela que as pedras da ponte estão se escorando. Falta novamente o primeiro plano, e assim como em Annecy, o elemento aquoso é intransponível à pé pelo espectador. Somos obrigados a deter-nos e analisar a cena de longe; e não me parece de todo inadequado — ponderei junto ao público — nesta sequência infernal de substituições, que o restante dessa descrição seja a feita pelo próprio Haas. A ponte que domina a cena, diz ele em seu artigo, conecta uma floresta escura a uma construção pouco determinada, quase esboçada; e o ponto preciso onde a ponte se junta à terra está firmemente “barrado” pelos troncos de árvore que atravessam a superfície da tela. “Ai”, nota ele, “o espaço se torna especialmente fugaz, ver mesmo incerto. É nesse lugar que o cinza se mostra no céu, um cinza onde não há mais nada para ver, cinza de apagamento. A visão que se apaga é propriamente cega”(31). É o surgimento dessa cor especifica, primeiro no céu por entre as árvores e logo rebatida no espelho d’água na parte inferior esquerda da tela, que marca o lugar do desaparecimento de nossa visão(distância) e do reaparecimento da imagemcomo tal (intimidade).
Ora, mas por que o cinza? Basta lembrar rapidamente que, no século 19, esta não é uma cor como as outras. Ela é considerada uma espécie de base neutra, estritamente incolor, a partir da qual é possível medir a transição dos tons, do mais claro ao mais escuro — o que se formalizará na teoria das cores da época sob o nome de “escala unidimensional dos cinzas”. Em paralelo à criação dessa escala, vemos surgir também a Escola de Barbizon ainda na primeira metade do século, cujos membros inauguram o que convencionou-se chamar de “pintura de valores”. Dedicados ao gênero menor da paisagem, e pintando diretamente ao ar livre, esses pintores auto-exilados no campo vão atribuir uma importância crucial à descrição dos efeitos luminosos sobre seus motivos. Estas duas ocorrências estão interligadas. A noção mesma de “valor”, diz Haas, citando por sua vez Félix Braquemond, indica essa “intensidade da claridade, abstração feita de toda ideia de cor [...] e indica o que vale uma cor, uma nuance, um tom, uma tinta, medidas na escala graduada entre o branco e o preto”(32). Em uma palavra: o cinza não denota uma cor específica, mas marca a intensidade da luz, que é incolor.
Por isso, também em relação à seus antecessores imediatos, algo de radicalmente novo se produz na pintura de Cézanne. Emerge agora na superfície mesma da tela, por entre as cores, algo que não é da ordem da cor, uma mancha cinza, como se nos fosse revelado um fragmento do “fundo” da pintura. Não estamos aludindo aqui à sua estratégia de criar “reservas” na pintura, deixando partes das telas literalmente crua (o que acontece sobretudo em suas aquarelas tardias), mas da inscrição intencional de algo que não deveria ser visto: um ponto cego, um lugar visível que se apaga. Ora, é precisamente a partir do surgimento disruptivo desse “plano de apagamento” da visão, que é representado pela cor cinza, que todas as outras cores se revelarão em seguida ao espectador em sua pintura. Tanto a mancha amarelada que se nota logo acima da ponte no centro da imagem, como o ponto branco refletido na água, são exemplos da intensidade luminosa dessa nova visibilidade cromática restaurada após o apagamento cinza. E, por isso, diz Haas, são melhores apreciados quando vistos não diretamente, mas de relance, dando assim o efeito do que Merleau-Ponty descreveu tão bem como essa “vibração das aparências que é o berço das coisas”(33).
Esta convergência é o contrário de uma confirmação da leitura de Merleau-Ponty. Ela aponta, antes, para uma solidariedade (impensada) da própria fenomenologia em relação à “situação icônica” inaugurada por Cézanne na segunda metade do século 19. As descrições de Merleau-Ponty não são acertadas porque ele teria, por assim dizer, um bom olho, mas porque ele, e o próprio Husserl antes dele, estão exatamente onde Cézanne os colocou: no lugar do olho de um outro. É este tipo específico de pintura que está operando esta redução do “espírito” a um único “olho”. E o que é mais importante: a um olho neutro, impessoal, anônimo. Pois uma imagem é, por definição, aquilo que foi visto por outro olho que não o meu. Assim, quando Merleau-Ponty vê algo especial em Cézanne, quando ele vê a si própria em Cézanne, ele não se engana: ele está, na realidade, reconduzindo a própria fenomenologia àquele que é o seu próprio ponto cego. Este ponto paradoxal em que essa filosofia em primeira pessoa, baseada na descrição da experiência do sujeito enquanto sujeito, reencontra sua origem: a visão de uma imagem, que é sempre na terceira pessoa. Como nos lembra Haas, “o visto pelo outro e o que eu vejo, relatado, são idênticos. O visto em si mesmo não tem um sujeito: mas ele é isso em relação à que todo sujeito se situará, o que está diante do sujeito”(34).
Ora, que seja o cinza a realizar essa “redução” da visão à imagem não é mera coincidência. Pois ele representa não apenas o ponto de referência de todo cromatismo no século 19, mas encarna também esse “brilho [...] do metal fundido”(35)de que parece estar inteiramente revestida a cidade moderna. Como diz Manlio Brusantin em sua Historia das cores: “A era industrial contemporânea gostaria de apresentar-se com o brilho do metal ou das tintas metálicas: este revestimento parece ser a consciência resplandecente do progresso, o qual a produção vai rapidamente privar de seu verniz”(36). Essa tonalidade cinza dominante (e decadente) não se encontra apenas nas grandes estruturas metálicas da engenharia moderna, como as estações de trem. Ela está em toda parte: da aplicação de novos solventes que retiram as cores originais de outros materiais, até a proliferação de materiais de construção sem uma cor definida, tais como o betume; passando pela coloração involuntária que adquirem os edifícios e objetos em contato com a poluição diária produzida pelo maquinário industrial — igualmente cinza. Quando Cézanne decide “deixar Paris” de uma vez por todas em 1895, toda a vida na metrópole se constrói a partir da oposição entre o negrume das casacas da burguesia e a brancura higiênica de seus lençóis e apartamentos. Sair da cidade significava, já para os impressionistas antes dele, não apenas abandonar a corrupção da vida industrial ou os ditames da Academia, mas sobretudo fugir desse sufocante cinza urbano e reencontrar a riqueza da paleta campestre. Cézanne, diremos então, vai neste sentido também mais longe do que seus colegas: não para Barbizon, Fontainebleau ou Giverny, há algumas horas de Paris por trem, mas de volta à sua cidade natal no sul da França, Aix-en-Provence. Mas ele leva consigo o essencial: o cinza.
Pois esta é, acima de tudo, a cor das chapas da arte fotográfica nascente naquele mesmo momento, a nova superfície de inscrição das imagens tais quais vistas por esse outro radical que é a máquina. O próprio Merleau-Ponty reconhecia a presença de algo “profundamente inumano” em suas pinturas, e atribuía isso ao esforço do pintor em ir mais longe do que qualquer outro humano no trabalho da percepção: “Por isso”, ele pondera, “seus personagens são estranhos e como que vistos por um ser de outra espécie”(37). Ora, já não necessitamos de Lyotard para concluir uma vez mais o óbvio sobre a questão: esse caráter “inumano” não é apenas o sinal desse esforço excepcional de Cézanne, mas de que há algo trabalhando ai além do homem. Automaticamente, poderíamos dizer. Pois, se há algo cuja definição mesma é, não apenas funcionar independente de nós, mas também ver o que ninguém viu, esse algo é a máquina, e em especial, a máquina fotográfica.
A associação da pintura do século 19 com a fotografia, desde a Escola de Barbizon até Degas, passando pelo Impressionismo, já não tem hoje nada de escandalosa. É claro, autores como Merleau-Ponty vão continuar a opor frontalmente uma prática à outra, ignorando assim as experiências radicais tanto das vanguardas dos anos 1910-20 como as que lhe eram contemporâneas, nos anos 1950. Mas sabemos por outras fontes que tais distinções, como arte e indústria, orgânico e mecânico, consciência e alienação, ainda que importantes para certos sistemas filosóficos, não resistem a um exame mais detido. É o que sugere a crítica e historiadora da arte Rosalind Krauss, tomando o exemplo da obra de Monet:
Pensamos no impressionismo como uma arte da cor. Mas ele não o foi em seu início. Antes de 1874, Monet era um pintor tonal que estruturava suas paisagens pelo jogo dos contrastes entre brancos e pretos. Que ele tenha pintado dessa maneira indica bem o papel essencial desempenhado pela fotografia: a imagem fotográfica e as ‘verdades’ que ela registrava formaram as visões de Monet sobre os problemas internos da natureza e da arte(38).
O nascimento do Impressionismo na década 1870 seria assim uma reação possível ao que havia sido antes identificado por Louis Daguerre como sendo a “escrita da própria natureza” por meio da luz (foto-grafia). Monet apontaria assim, com suas atmosferas altamente subjetivas, para uma direção outra que a fotografia na captação da natureza, mas ainda assim inteiramente dependente desta. Se as cores são o domínio da pintura no Impressionismo é, em primeiro lugar, porque a luz (incolor) é do domínio da fotografia (em tons de cinza). Dinâmica que aparece ainda mais clara em Cézanne, na mesma década, com o surgimento na superfície da tela deste cinza fotográfico subjacente à imagem. Por isso, quando Brusantin afirma que “o cinza é a imobilidade sem esperança”(39), é preciso ir além do mero psicologismo associativo das cores: este plano cinza que se interpõem na sua pintura, como um véu entre o espectador e o visível, é o análogo funcional da placa do daguerreotipo que desaparece em favor do desenho em preto e branco que surge quando a imagem é revelada. A “imobilidade” introduzida por este plano é precisamente o efeito de “suspenção” mortificadora operada pelo obturador do aparelho, o qual captura do Real não apenas o Espaço, mas o próprio Tempo. É talvez o que o próprio Cézanne quisesse dizer, no fundo, com sua frase tão citada por Gasquet (e Merleau-Ponty): “Há um minuto do mundo que passa, é preciso pintá-lo em sua realidade”(40).
Ao deixar transparecer em sua pintura o plano de inscrição das imagens do mundo industrial, Cézanne está nos apresentando, não aquilo que ele mesmo viu, mas aquilo que ninguém viu. Se pudesse extrair algo do tempo e do espaço e mostra-la como ela é em si mesma. Ao tentá-lo, ao emular com sua pintura o funcionamento do obturador de uma máquina fotográfica, ele termina por reduzir seu próprio olho ao olho de um outro. Não ao olho de “carne” desse artista selvagem de que sonha o filósofo de férias no campo, mas a esse olho radicalmente anônimo da câmera, intercambiável como os indivíduos na massa das grandes cidades. Por isso, Merleau-Ponty, Rilke, Matisse, e mesmo meu orientador da época; todos querem ser Cézanne, e o próprio Cézanne parece querer ser outro. Quem? Pissarro? Sim, mas não só. Não importa quem se postar diante dessas pinturas, sempre se transformará em outro. Terá de abandonar seu corpo e seu nome próprio.
Ora, diremos, esse trabalho de abandono não é de uma ascese religiosa, mas de uma alienação industrial: Cézanne não trabalha como um mártir, mas como uma máquina. O que não deixa de ser algo irônico, é verdade, para um artista que tão claramente rejeitava os valores do mundo industrial e repetiu até o fim a necessidade de pintar “segundo a natureza”. Ele passa os últimos anos de sua vida em seu pequeno ateliê em uma estrada isolada de Aix, não apenas longe de todos, mas também longe de si mesmo, alienando-se de sua subjetividade individual, trabalhando como uma máquina para tornar-se esse Outro radical. Ele é, neste sentido, não apenas um trabalhador da pintura, um camponês, mas um verdadeiro proletário, submetendo-se às regras inflexíveis de seu dispositivo mecânico. Então mais nada a seu redor parece realmente importar: ele já não recebe mais visitas, e exclui a todos com a mesma veemência. (Até mesmo juridicamente: em 1902 ele escreve uma nova versão de seu testamento excluindo sua esposa Hortense do seu espólio). Talvez por isso, em seus últimos dias, sentindo seu corpo sucumbir ao que terá sido uma vida de trabalho verdadeiramente inumano, não lhe reste senão escrever a seu filho Paul, adotando a maneira de outra máquina da época, o telégrafo: “Sistema nervoso muito enfraquecido, só a pintura a óleo pode me sustentar. É preciso continuar. Tenho que realizar, pois, segundo a natureza”(41).
Nesse lugar de substituições fotográficas, minhas leituras de Cézanne se confundiram com as de Haas até um ponto de total indistinção. Não saberia mais precisar ao certo quem disse o quê. Seria mesmo de se estranhar se eu, Daniel, pudesse me extrair desse jogo de espelhos tão bem amarrado. Em retrospecto, dou-me conta de que minha saída algo intempestiva da academia, após o termino do mestrado, foi também dirigido por uma busca por tornar-me outro; e que, não obstante minhas reticências em relação à Merleau-Ponty, continuo a reportar-me intimamente a essas “experiências cezanianas” pelas quais Rilke passava em 1907. Por isso ele vai ao Salon d’Automne todos os dias, também como um autômato, e relata por cartas à sua mulher a sua própria transformação pessoal diante daqueles quadros: “Eu caminhava ao redor e via, mas não via a natureza, e sim a história que ela me inspirava. [...] Por isso, por Cézanne ter tanto a ver comigo agora, noto como me tornei diferente. Estou no caminho de me tornar um trabalhador, em um longo caminho talvez, e provavelmente só nas primeiras milhas...”(42). O que Rilke viu em Cézanne é o que ainda hoje procuramos desesperadamente: alguém que, em um mundo dominado por máquinas, conseguiu criar as regras de seu próprio jogo. Por isso, Cézanne é essencialmente distinto dos operários das usinas, ou ainda dos pintores das Academias de Paris que reproduzem cegamente seus mestres: o pintor provençal responde unicamente às exigências de uma máquina cujas regras ele mesmo inventou. A sua alienação é a sua consciênciae vice versa, ele é o seu patrão explorador e o seu empregado explorado. É porque, apesar de perceber claramente o que há de risível nesta ideia de trabalhar como uma maquina, sigo a frustrar-me como Rilke quando este lamenta: “Ainda estamos longe de poder trabalhar tanto”(43). É porque, para tomar mais um exemplo oportuno, passei todos os meus dias em São Paulo sem sair de casa, trabalhando obsessivamente em um texto que tem por tema a obsessão do trabalho.
Se me for permitida uma última projeção especular à guisa de conclusão — disse então ao público — talvez escolhesse estar por um minuto na pele da escultora Clara Westhoff, a mulher de Rilke. Após viverem um período juntos em Paris, e terem aí uma filha, Rainer inicia uma viagem que durará 5 anos; quando ele finalmente retorna à Paris, para terminar sua monografia sobre Auguste Rodin, Clara já havia retornado a seu país natal. Ela passaria ainda mais 10 meses vivendo na Alemanha a ausência que lhe foi imposta pelo marido, que queria estender sua estadia em Paris para viver suas “experiências cézanianas”. A renda de Clara, como aprendemos indiretamente pela troca de cartas, não lhe permite pagar-se uma visitar ao poeta, e quase não lhe chega para pagar o aluguel do ateliê e a educação de sua filha. De sua própria prática artística, nem uma única palavra é dita. Rainer também não lhe fará nenhuma visita durante todo esse tempo. Tudo o que ela receberá do orgulhoso autor do poema O solitário, são essas famosas e infames cartas sobre Cézanne. É com profunda pesar que eu, que já vivi muitos anos sozinho, em relações feitas de distâncias inventadas, me reconheço aqui mais uma vez no gesto egoísta e cego de Rainer, quando esse diz a Clara: “Queria lhe contar tudo isso; tem ligação com muita coisa em torno de nós, mesmo conosco, em centenas de pontos [...] Fique em paz... amanhã falo novamente de mim. Mas você vai saber que também fiz isso hoje”(44).
Se querer ser como Cézanne é cômico, para aqueles que estão à sua volta, tudo isto deve soar simplesmente trágico. Sinto muito, senhora Cézanne.
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I
Há algo no interior da pintura que escolhi, comecei dizendo ao público, que parece repelir frontalmente todas as minhas tentativas de análise. Algo de inóspito no interior d’A ponte Maincy, de 1879, algo de uma solidez aterradora, quase instransponível. Arrisco por isso, acrescentei, tomar um longo desvio, o qual me levará, se minhas suspeitas se mostrarem corretas, ao que há de mais central nesta obra.
Começo pelo fim: apenas um ano após a morte do pintor Paul Cézanne na casa que lhe servia de ateliê nas imediações de Aix-en-Provence, seu marchand Ambroise Vollard organiza a primeira retrospectiva pública de sua obra no Salon d’Automnede Paris. O intervalo 1906 -1907 marca uma passagem meteórica: de uma situação de relativo anonimato perante o grande público, o artista provençal é içado ao mais alto ranking da pintura europeia. Outras exposições de sua obra já haviam sido organizadas em Paris, pelo próprio Vollard, em 1895 e 1899, mas é esta mostra, em particular, que permitirá aos habitantes da capital tomar contato direto com esta obra singular, tão diferente da precocemente envelhecida corrente do neoimpressionismo no fim do século 19. Assim, por exemplo, o poeta Rainer Maria Rilke relatará, em uma das missivas enviadas à sua esposa na Alemanha que constituem o volume Cartas sobre Cézanne: “Ontem fomos lá [mais uma vez]. Cézanne não nos deixou ver mais nada. Noto cada vez mais a importância do que acontece aqui”(1). Mas ele notará também, com uma ironia que trai seu desejo de distinção social, que essa tomada de consciência parece estar ocorrendo simultaneamente à sua volta: “E lá fora as pessoas dizem: ‘Cézanne’, os senhores em Paris escrevem seu nome com ênfase, orgulhosos por estarem bem informados”(2). É claro, alguns dos grandes pintores modernos já conheciam seu nome: é o caso notadamente de Gauguin e Van Gogh desde 1880, por intermédio de Pissarro, e também dos nabis desde pelo menos 1890. Mas é apenas no início do século 20 que a comunidade artística parisiense sofre o impacto de seu trabalho, em um momento disruptivo que Alfred H. Barr, historiador e futuro fundador do MoMA de Nova York, cunhou de “Cézanne ou a crise de 1907-1908”(3). Esta crise terá afetado diretamente, diz ele, não somente ao grupo dos fauves: Matisse, Derain, Dufy, Vlaminck, mas também, por exemplo, à Georges Braque, que passa sem transição do Fauvismo ao Cubismo e junta-se assim à Picasso, que havia terminado de pintar, ainda no ano de 1907, o quadro-limite Les Demoiselles D’Avignon.
Embora seja relativamente fácil perceber a extensão da crise instaurada pela obra de Cézanne na arte moderna, não é tão simples compreender porque ela não dá origem a uma “escola” propriamente dita. Ou, para ir direto ao ponto, porque nenhuma das grandes obras que devem à Cézanne sua existência parece se inserir em uma continuidade estética com ela? O exemplo da trajetória de Matisse é aqui especialmente instrutivo: o mesmo Barr fala dele em 1951 como um “cézanista prematuro”, por haver identificado antes de seus pares (e sobretudo antes de Picasso) a importância da obra de Cézanne, mas aponta também para a “direção pós-cezaniana”(4) que toma sua própria obra já em 1907. Como nos lembram seus biógrafos, Matisse adquire do próprio Vollard em 1899 o pequeno quadro de Cézanne intitulado Três Banhistas(1879-1882), por aproximadamente 1600 francos, quase a metade de sua renda anual. Mais tarde, ao recordar seus dias de estudante de arte, o artista consagrado justificaria seu investimento (ele penhorou um anel de esmeralda de sua mulher, Amélie) dizendo: “Nos trinta e sete anos que fiquei com esse quadro, vim a conhecê-lo razoavelmente bem, ainda que sem esgotá-lo [...]. Ele me proporcionou apoio moral em momentos críticos de minha trajetória como artista; dele extraí a minha fé e a minha perseverança”(5). Dele, Matisse extraiu também o tema de base para toda uma série de desenhos privilegiando o tema do “nu de costas”, produzidos ao fim de seu período fauve, justamente entre 1906 e 1907. Fantasma iconográfico que continuará a reaparecer ao longo de toda sua obra, das mais diversas formas e até seus últimos recortes e papeis colados nos anos 1940 e 1950. Contudo, não é exatamente no universo das formas que a lição de Cézanne parece ter fixado suas raízes em Matisse. Esta se revela, mais profundamente, no próprio corpo do pintor, como uma postura inicial dúbia frente ao quadro, a qual lhe engendra, em seguida, uma confiança “moral” inabalável em seu sucesso: “Nos momentos de dúvida”, recorda ele, “em que ainda estava me procurando, espantado por minhas descobertas, eu sabia que Cézanne não estava enganado”(6). E espelhando-se claramente em sua imagem refletida nas Três banhistas, Matisse acrescenta: “Que ninguém se espante que Cézanne tenha tão longamente meditado e hesitado. De minha parte, a cada vez que me encontrava diante de minha tela, me parecia que era a primeira vez que pintava. Havia tantas possibilidades para Cézanne que, antes de tudo, ele precisava colocar em ordem em o cérebro”(7).
Cézanne parece estar aí para Matisse não quando este termina a sua tela, mas quando começa, isto é, sempre que voltar a postar-se, independente de sua experiência acumulada ao longo dos anos, frente a uma tela virgem. Cézanne parece representar, assim, mais uma postura do que uma receita, mais uma forma de disciplina do que um resultado específico. E, a julgar pelas reiteradas declarações de impotência do pintor provençal, mais uma perspectiva de fracasso do que de sucesso. Assim, toda a questão se resumiria a entender como é possível que o mais essencial de sua lição tenha sido precisamente a sua dúvida. Ou ainda, o que Matisse queria dizer quando declarava: “se Cézanne estava certo, então eu estou certo”(8).
II
Isso não é pouco, recordo haver dito à plateia. O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, para tomar um exemplo que me é caro, construiu toda a sua teoria da arte sobre essa questão. E quiçá todo seu pensamento, para além da referência óbvia (e correta) à fenomenologia de seu mestre Edmund Husserl. Hipótese que talvez explique a persistência deste pintor como modelo exemplar, desde o artigo a Dúvida de Cézanne de 1943 (publicado ao fim da 2a Guerra, em 1945), até o longo ensaio de estética destinado a ilustrar as profundas transformações pelas quais passava a sua filosofia, O olho e o espírito (1960).
É bem verdade que, como a grande maioria dos filósofos interessados em processos estéticos, Merleau-Ponty faz um uso bastante aproximativo das obras de arte propriamente ditas. Mas é compreensível, pois ele afirma estar menos interessado em objetos ou artefatos culturais, do que no ato mesmo da criação: isso é, na série de imprevisíveis “metamorfoses” ou “transmutações” (são termos técnicos) que se estabelecem entre o mundo e a tela na gênese de uma obra de arte. E este “sistema de equivalências” (é um termo técnico) instaurado pelo movimento do corpo do pintor no espaço encontra seu respaldo, por sua vez, na teoria fenomenológica do “corpo próprio” e na noção de “carne” (são também termos técnicos). Não cabe entrar aqui em detalhes sobre a origem desses termos e conceitos em Husserl, nem sobre sua transformação na dita virada “ontológica” do pensamento tardio de Merleau-Ponty. Basta, por ora, dizer que a atividade do artista é, para esse último, o melhor exemplo de uma das intuições centrais da fenomenologia — o ideal da suspenção do juízo — e Cézanne, com sua decisão de levar até as últimas consequências as exigências de uma obra laboriosa, a ilustração perfeita do que deveria fazer um filósofo. “Suspender o juízo” significa deixar de lado, pôr entre parêneses, ainda que por um minuto, todo o sistema natural de convicções, hábitos e crenças que temos sobre o mundo. Isto, não para negar as certezas do senso comum ou pôr a existência do mundo em xeque, mas como nos explica Merleau-Ponty no clássico Prefácio à Fenomenologia da Percepção, porque “para ver o mundo e apreendê-lo como paradoxo, é preciso romper nossa familiaridade com ele”(9). Em suma, interromper o fluxo perceptivo de nossa vida cotidiana, não significa afundar-nos na cegueira de nossos próprios pensamentos, mas tomar uma distância que nos permita ver as coisas tais como elas são em sua origem, reencontrar o frescor do olhar infantil que vê tudo como se fosse a primeira vez. Ora, esse exercício é, por definição, sem fim:
O filósofo [...] é alguém que perpetuamente começa. Isso significa que ele não considera como adquirido nada do que os homens ou os cientistas acreditam saber. Isso também significa que a filosofia não deve considerar-se a si mesma como adquirida naquilo que ela pôde dizer de verdadeiro, que ela é uma experiência renovada de seu próprio começo, que toda ela consiste em descrever este começo e, enfim, que a reflexão radical é consciência de sua própria dependência em relação a uma vida irrefletida que é sua situação inicial, constante e final(10).
Fenomenologia: a filosofia entendida como uma arte da descrição, sempre renovada, do grau zero da experiência. Não é de se espantar que Cézanne tenha interessado tanto à Merleau-Ponty: ele representa, de fato, o protótipo do homem comum que decide um belo dia abandonar todas as comodidades de sua vida de pequeno-burguês, sua família, seus amigos e colegas, e dedicar-se a um jogo secreto consistindo na descrição obsessiva de paisagens rurais do sul da França. Longe de ver aí uma “fuga do mundo humano, a alienação de sua humanidade”(11), Merleau-Ponty enxerga na decisão individual do pintor, sustentada dia após dia durante anos, o mesmo compromisso radical do filósofo em relação a essa verdade primeira, a qual só pode ser alcançada através de um corte na experiência. É na figura de um trabalhador da pintura — humilde e paciente, porém excepcionalmente obstinado — que o filósofo concebe seu par perfeito nas artes visuais: “O próprio pintor é um homem que trabalha e reencontra todas as manhãs a mesma interrogação na figura das coisas, o mesmo apelo ao qual nunca terminou nunca de responder”(12). Mas esse homem comum, sujeito ao fracasso, se mostra também excepcional, pois o encara de frente. Cézanne, mais uma vez é o modelo: justamente porque é um pintor desprovido, não de talento, mas deste “gênio” infalível celebrado pelos escritores românticos alemães, que ele pode ter tantas dúvidas, que pode hesitar diariamente quanto aos rumos de seu trabalho: “Em nove de cada dez dias”, escreve Merleau-Ponty, “ele vê a seu redor somente a miséria de sua vida empírica e de suas tentativas frustradas...”(13). Mas aqui está o twist do argumento pois, para que algo possa acontecer um desses dez dias é preciso trabalhar todos eles, e assim, a insolvente sensação de impotência de Cézanne será convertida no selo que comprova uma vida de ruminação resoluta do mundo visível. Por isso, caberia dizer: para Merleau-Ponty, a hesitação do pintor frente ao visível é o seu método de trabalho, e a sua dúvida em relação ao progresso de sua obra, a prova de que ele permaneceu fiel às regras do jogo.
É com orgulho que ele oferece ao leitor de seu artigo de 1945, um trecho das correspondências de Cézanne — bastante triste, em verdade — onde este confessa a Émile Bernard que continuava a duvidar da pertinência de seu trabalho. Apesar de, como nos informa suas cartas, ter encontrado um relativo reconhecimento de seus colegas impressionistas, ter sido louvado por jovens teóricos da arte, e ver seus quadros serem vendidos em Paris por valores recorde para colecionadores estrangeiros. Esta é do dia 21 de setembro de 1906 e lê-se assim: “Encontro-me num tal estado de perturbações cerebrais, numa perturbação tão grande que temo, a qualquer momento, que minha frágil razão me abandone [...]. Parece-me que sigo melhor e que penso com exatidão na orientação de meus estudos. Chegarei à meta tão buscada e há tanto tempo perseguida?”(14). Ele morreria no dia 23 de outubro do mesmo ano, e sua última carta enviada pede pressa a um fornecedor que ainda não lhe havia entregue uma tinta.
III
Ora, que a última palavra de um filósofo como este seja sobre “arte e, especialmente a pintura”(15), já não é surpreendente. Afinal, a exigência fenomenológica da “descrição” do visível terá marcado profundamente sua trajetória intelectual. Mas isso não é tudo: pois, para escrever essa última palavra sobre a pintura, Merleau-Ponty decide também deixar a capital, seu local de trabalho, suas leituras, seus debates com os colegas de profissão. É claro, são as férias escolares na França, e até mesmo os filósofos merecem descansar ao sol. Mas há aqui também uma tragédia à espreita: ele morreria de um ataque do coração fulminante, alguns poucos meses após seu retorno, deixando entre parênteses a redação daquela que seria considerada, apesar de seu inacabamento, sua obra-prima filosófica: O visível e o invisível (1964).Além disso, são bem conhecidas suas críticas da época à “historicidade de morte(16)” dos Museus e à visitas das obras iluminado pela “luz fraca dos interiores”(17)dos apartamentos parisienses. Por isso, não seria abusivo supor que tenha lhe parecido lógico, para compreender esta verdadeira profundidade da pintura, ter sob os seus próprios olhos esse horizonte do pintor ao trabalho: a montanha marcada pelo olhos de Cézanne. O que sabemos ao certo é que ele aluga uma casa de pintor na localidade rural de Le Tholonet, perto de Aix-en-Provence e passa aí todo o verão de 1960 escrevendo. O ambicioso ensaio que resulta, contendo uma prévia de sua nova ontologia inspirada na pintura moderna, lê-se também como um diário do que ele viu e viveu naqueles meses na casa de campo: descrições detalhadas do que suscitou sua reflexão, a partir do que se deu a ver, tão logo seus olhos se dirigiram, por exemplo, para o “anteparo de ciprestes onde brinca a trama dos reflexos” sobra a água da piscina de azulejos vista “através dessas distorções, dessas zebruras do sol”(18). Lançando mão de uma escrita claramente poética, visando a confusão de todas as relações clássicas entre visão e fala, Merleau-Ponty parece reencontrar em si mesmo o ideal da fenomenologia perdido pelo imobilismo satisfeito da academia parisiense: “de volta às coisas elas mesmas”, dizia seu mestre Husserl. Mas ele parece também reencontrar na figura do próprio Cézanne, conjugando intimamente uma vida e um trabalho “difíceis”, um espelho privilegiado para as suas próprias aspirações, medos e incertezas.
Deixo que outro filósofo francês, François Lyotard, deduza o óbvio: “Merleau-Ponty certamente não teria sido um grande comentador de Cézanne se a ‘dúvida de Cézanne’ não fosse a sua própria”(19). Um tal comentário intrigou-me desde o início da pesquisa do mestrado em filosofia que defendi em Paris, acerca da noção de “pensée en peinture” em Merleau-Ponty. Não era este o meu tema, mas encontrava por toda parte esse bizarro padrão de identificação pessoal dos autores com Cézanne: Merleau-Ponty, Matisse, Rilke, e até mesmo meu orientador da época, grande autoridade em fenomenologia na Sorbonne; todos haviam decidido deixar a metrópole em algum ponto de suas vidas a fim de trabalhar mais ou menos isolados no interior do país, repetindo o gesto paradigmático do pintor no século 19. Esta era a questão que nunca pude responder com meu instrumental fenomenológico: porque gostar de Cézanne não implicava tanto em tentar simular o seu estilo pictórico, senão seu estilo de vida? A resposta, como não podia deixar de ser, encontrei-a também em um sofisticado jogo de espelhos, no qual eu mesmo me vi preso, projetando-me sobre outra figura não menos excêntrica que as anteriores: Bruno Haas. Assim se chamava um dos meus professores da época, com o qual estabeleci um contato que ia além da cordialidade francesa. Foi com ele que aprendi a olhar os quadros de Cézanne de forma realmente detida, em visitas regulares à Orangerie. Às vezes, detidas até demais: certa feita, passamos mais de duas horas frente a única uma pintura de pequenas dimensões, que hoje sintomaticamente, não recordo mais — talvez o Rochedo vermelho (1895) ou No parque de Chateau Noir(1898-1900). Foi também com ele que comecei a suspeitar, não tanto da corrente da fenomenologia em si (isso já vinha acontecendo antes), mas de Merleau-Ponty em particular, a quem ele acusava, humoristicamente, de ser “un gentil garçon” ou “un petit-bourgeois”. Nesta mesma linha de raciocínio “para-acadêmica”, recordo tê-lo divertido ainda um dia com a confirmação de suas suspeitas: o aluguel daquela propriedade do Tholonet deveria ter lhe saído uma verdadeira fortuna, visto que piscinas de azulejos ainda eram itens raros nas casas de campo francesas na década de 1960.
Vindo de uma pequena cidade da Suíça, e com poucas publicações disponíveis em francês ou inglês, Haas era um estrangeiro em todos os sentidos da palavra naquela instituição de elite parisiense, e lhe coube ensinar os cursos que mais ninguém queria: assisti com ele meu primeiro curso sobre a obra de Jacques Lacan e outro sobre a de Joseph Beuys (embora afirmasse ser especialista de Hegel e Kandinsky). Seja como for, de alguma maneira ele conseguiu ministrar por alguns poucos semestres — e eu tive a sorte de assistir — um curso sobre o que ele chamava de “Situações icônicas”. Neste, ele se propunha a analisar, através do método da “análise funcional” difundido por ele mesmo e por seu irmão músico, Bernhard Haas, as diferentes configurações do “fenômeno imagem”, tal qual este se apresentava ao longo da história, dos vitrais da Idade média até a arte conceitual norte-americana. Tão enciclopédicas quanto inconclusivas, suas aulas misturavam considerações sobre história da arte, história das técnicas, teoria da visão e das cores, sempre de acordo com o paradigma epistemológico de cada época estudada. Coincidência ou não, ele parecia estar de acordo com Merleau-Ponty sobre o fato de que “nessa história, que espera ainda ser escrita, Cézanne aparece como um interlocutor particularmente interessante”(20). E o melhor: à título excepcional, sua análise da “situação icônica” na qual a obra de Cézanne se instalava havia sido redigida em uma língua à qual eu tinha acesso: o francês. Este texto, também produzido por ocasião de um colóquio em Aix-en-Provence, não se limitava a mostrar como os efeitos que Merleau-Ponty registra funcionam em termos puramente pictóricos; ele demonstrava também que o fascínio do filósofo pelo olho de Cézanne é uma função direta desse tipo de pintura. Pena ter levado ainda três ou quatro anos para conseguir entender o que eu pude apenas ler naquela época.
IV
E aqui estamos, disse ao público, no meio desta fala. Anos depois de entregar à banca minha dissertação, que tentava (sem todavia encontrar os elementos certos para isso) apontar para a anacronia em Merleau-Ponty que consistia em fundar a sua “filosofia de hoje”(21) no início da década de 1960 com base em um paradigma estético do século 19. Comecei notando que havia algo na pintura que escolhi que impedia uma análise direta. E que, por isso, iria tomar um longo desvio para chegar ao que havia nela de mais central. Pois bem, tratei de esclarecer então, não se tratava nem de uma metáfora nem de uma figura retórica. A necessidade do desvio, por um método “indireto” para se chegar ao cerne da questão, encontrava sua origem na estrutura mesma das obras de maturidade Cézanne, as quais, segundo Haas, articulam dois planos aparentemente contraditórios.
De fato, grande parte de seus comentadores parece alternar-se (conscientemente ou não) na descrição, seja de um certo “distanciamento” por um excesso de rigor na composição de suas telas, seja, ao contrário, de uma certa “intimidade” na forma do transbordamento do visível pelas cores. Com Merleau-Ponty não é diferente. Ao descrever, por exemplo, O Lago de Annecy (1896), ele primeiro afirma: “a paisagem é sem vento, a água [...] sem movimento, os objetos transidos parecem hesitantes como na origem da terra. É um mundo sem familiaridade, no qual não estamos bem, que impede toda efusão humana”(22). Para tão logo declarar que a intenção do pintor era, pelo contrário, a de “pintar o mundo, convertê-lo inteiramente em espetáculo, fazer ver como ele nostoca”(23). Restaria explicar como essas duas posições podem ser não apenas simplesmente compatíveis, mas perfeitamente complementares — se não já soubéssemos a resposta. Trata-se, para Merleau-Ponty, do mesmo paradoxo segundo o qual nossa familiaridade com o mundo não está dada de início, mas precisa ser sempre reencontrada. Trata-se, antes dele, para o próprio Husserl, da própria fenomenologia entendida como essa ciência do sujeito, na qual a “origem” das coisas não coincide nunca com o “início” de nossa experiência: porque a percepção se vive desde sempre “de dentro”, é preciso em determinado momento pôr nossos hábitos entre parênteses para fazer o mundo reaparecer em sua origem, isso é, “na frente” de nossos olhos. Por isso, quando o filósofo francês escreve: “A pintura de Cézanne suspende esses hábitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual o homem se instala”; ele se vê imediatamente obrigado a acrescentar: “Mas somente um homem, justamente, é capaz dessa visão que vai até as raízes, aquém da humanidade constituída”(24).
Mas há também algo de impreciso nesta sua afirmação: pois não é tanto na pintura de Cézanne que se deixa perceber esse ideal “suspenção do juízo”, senão no próprio corpo do pintor. “Toda técnica é técnica do corpo”(25), lemos em O olho e o espírito. De modo que não pelo acúmulo de matéria sobre uma tela mas somente por uma renúncia exercida sobre sua própria vida ao longo dos anos — o desapego voluntário de seu gosto, de seu estilo, de sua própria identidade — que se pode alcançar essa comunhão mais profunda e, todavia mais simples, com o mundo natural: “O artista [...] não se contenta em ser um animal cultivado, ele assume a cultura desde seu começo e funda-a novamente, fala como o primeiro homem falou e pinta como se jamais houvessem pintado”(26). O trabalho do pintor não é outro que o dessa visão “que desce até as raízes” das coisas; e esta é a razão profunda pela qual sua “técnica” do corpo — assim como a do filósofo — não pode nunca se dar por adquirida: nunca uma descrição terá esgotado a riqueza de um fenômeno; é preciso pintar de novo e de novo a montanha. Ideal de um trabalho de ascese cotidiano que o mesmo poeta Rilke, com sua maneira certamente mais afetada de colocar as coisas, terá resumido de maneira não menos exemplar: “Ah”, ele suspira, “nós contamos os anos e fazemos divisões aqui e ali, parando e começando e hesitando [...] e nós só temos, no fundo, de existir, mas com simplicidade, com insistência, como a Terra existe, dando seu consentimento às estações...”(27).
O argumento de Haas — se é que entendi algo deste texto tão curto quanto enigmático — diz todo o contrário, e poderia ser resumido em uma só frase: não é o pintor quem opera esse trabalho, é a própria pintura. E ela o faz não apenas sobre o pintor, mas sobre qualquer um que se poste diante dela. Esta inversão seria o ponto nodal da teoria das “situações icônicas”, nas quais não se trata apenas de saber o que se dá a ver em tal imagem, mas quem é esse sujeito que vê o que lhe é mostrado. Pois a pintura, em suas palavras, “permite talvez colocar essa questão; ela o permite na medida em que me situa, que me dá um lugar, que me dá um ser”(28). Se toda obra participa do plano do imaginário, nem todas o fazem da mesma maneira; as estruturas que articulam o ali do quadro ao aí do espectador são variáveis historicamente. Trata-se de saber, através do método da análise funcional da imagem, em cada caso, quem ou o quê sou eu quando estou diante de tal imagem?
Nesta longa história, diz ele, a obra de Cézanne apresentaria algo de singular em relação a épocas passadas: o fato de marcar o aparecimento do “lugar estrutural” da imagem enquanto imagem. O “ser-imagem” dessa pintura não coincide apenas com a sua definição tautológica (toda pintura é uma imagem e não a própria coisa), mas surge como algo visível, dando-se a ver como um “evento pictórico” autônomo. Em outras palavras, frente a uma tela de Cézanne, nos deparamos com indícios claros de que estamos diante de uma imagem. Ai, o espectador já não é mais capaz de situar-se no espaço como se estivesse “realmente” diante do que está representado; ele não pode mais representar-se, por exemplo, como podendo “tocar” as coisas, ou ir imaginariamente ao encontro do que lhe é apresentado no fundo do quadro (o que, diga-se entre parênteses, era um efeito desejado em outras “situações icônicas”; basta pensar nas famosas descrições que Diderot oferece da pintura do século 18 em seus “Salões”). Convergimos então com Merleau-Ponty neste ponto: as coisas não estão em Cézanne como poderiam ser encontradas em nosso cotidiano. Elas parecem frias, rígidas, totalmente inalcançáveis. De fato, tudo se passa como se nossa visão natural das coisas tivesse sido “suspensa”, como se ela se apagasse subitamente. No entanto, diz Haas, “há algo a ser visto nesse efeito de apagamento da visão. A visão se apaga para deixar ver outra coisa no lugar do que está aí. Essa outra coisa é a imagem”. E ele conclui com um aforisma de uma simplicidade desconcertante: “Quando vejo uma coisa distinta do que está ai, vejo uma imagem”(29). É como se perdêssemos com Cézanne o poder de ver as coisas por nós mesmos, de ir até elas por nossos próprios meios, mas víssemos agora o aquilo que foi visto por outro, como se fossemos subitamente postos no lugar da visão de um outro. Como se nossa própria experiência do mundo nos fosse primeiro recusada, para ser tão logo substituída por uma imagem: não o lago de Annecy tal qual eu o veria se estivesse realmente lá, mas a visão do lago pintado, tal como visto por outro. Mas quem? Cézanne? Seguramente, mas não só.
Uma rápida comparação com um quadro de Camille Pissarro, pintor mais velho e iniciador de Cézanne na pintura ao ar livre pode ajudar neste ponto. Eles pintam no mesmo dia a Vista da Casa dos Mathurins, Pontoise e a Paisagem em Pontoise (O Campo dos Mathurins), a partir de uma pequena elevação do terreno. (Cézanne passará ainda dois anos fazendo retoques ao que Pissarro terá feito em poucos dias, mas isso é apenas anedótico). Todas as características “estruturais” da pintura de Cézanne já aparecem aqui, em 1875, com nitidez: ele utiliza um verde mais intenso do que o de Pissarro, que por sua vez, conta com muito mais variedade de cores: amarelos, cores de terra, azuis e ocres. Esta paleta reduzida se traduzirá em uma composição marcada por volumes e densidades, espessura da matéria, contrastes e definições claras; mais uma vez, em oposição a Pissarro, que conta com transições, passagens, e interferências cromáticas mais sutis. Narrativamente também a pintura de Cézanne mostra sua marca negativa: toda a ideia de circulação, de movimento, sublinhando o comprimento do muro e introduzindo o ritmo da vida humana, foi eliminada a fim de marcar a oposição radical entre as duas seções do quadro. No entanto, é sobre um ponto em específico dessa comparação que gostaria de insistir: comentou-se muitas vezes que Cézanne costumava posicionar naquela época seu cavalete atrás do de Pissarro, para poder observar não somente o motivo em comum mas também seu mestre em ação. Entretanto, a sensação é que a versão de Cézanne está muito mais próxima do motivo. Ora, isso se deve justamente à eliminação do primeiro plano que, em Pissarro, é significativamente essa pequena elevação que nos convida à travessia imaginária do espaço pictórico. Ao barrar o acesso do espectador por meio da eliminação do apoio para seus pés, Cézanne suspende sua presença física, e a substitui por outro tipo de presença, fantasmática, a de um “olho” que testemunha, estático, a reaproximação dos objetos e planos mais longínquos projetando-se vertiginosamente em sua direção.
Desta comparação se desprendem dois pontos importantes: em primeiro lugar, uma descrição que dá conta daquela passagem fenomenológica da “distância” para a “intimidade” em termos puramente pictóricos: o que teve de ser negado para o que o visível pudesse “nos tocar” não foram os hábitos do pintor, mas o primeiro plano da pintura, isso é, o apoio para os pés do espectador. Em todo rigor, podemos dizer que, na pintura de Cézanne, já não somos mais nós que vamos até lá (fisicamente), é o lá que vem até nós (visualmente), como um súbito fenômeno luminoso, aparecendo de uma só vez, como pura visibilidade. De onde deduz-se o segundo ponto: a transmutação da corporeidade do espectador a um único “olho de carne” (é um termo técnico) que recebe o mundo visto. Não é “o estofo do mundo”(30)(é um termo técnico) que estabelece esse continuumda natureza com meu corpo “vidente e visível” mas, uma vez mais, a própria pintura: é esse mundo que parece bruscamente retornar como imagem que reduz o espectador a uma posição de “êxtase”, atingindo-o em cheio sua mobilidade física, fazendo-o assumir essa posição de receptividade fundamental que é própria ao “olho”. E isso vale até mesmo para o próprio Cézanne. Pois o pintor não está vendo o motivo ele mesmo, mas também uma imagem: o motivo visto por Pissarro. No sentido forte da expressão, a visão de Cézanne é a do próprio Pissarro.
V
É finalmente o surgimento do mundo como “imagem”, isso é, como aquilo que foi visto por um outro, que aparece em Ponte de Maincy de maneira exemplar. (Estamos agora no coração de nossa análise). A tela tem a fatura tão cerrada que temos a impressão que é sobre ela que as pedras da ponte estão se escorando. Falta novamente o primeiro plano, e assim como em Annecy, o elemento aquoso é intransponível à pé pelo espectador. Somos obrigados a deter-nos e analisar a cena de longe; e não me parece de todo inadequado — ponderei junto ao público — nesta sequência infernal de substituições, que o restante dessa descrição seja a feita pelo próprio Haas. A ponte que domina a cena, diz ele em seu artigo, conecta uma floresta escura a uma construção pouco determinada, quase esboçada; e o ponto preciso onde a ponte se junta à terra está firmemente “barrado” pelos troncos de árvore que atravessam a superfície da tela. “Ai”, nota ele, “o espaço se torna especialmente fugaz, ver mesmo incerto. É nesse lugar que o cinza se mostra no céu, um cinza onde não há mais nada para ver, cinza de apagamento. A visão que se apaga é propriamente cega”(31). É o surgimento dessa cor especifica, primeiro no céu por entre as árvores e logo rebatida no espelho d’água na parte inferior esquerda da tela, que marca o lugar do desaparecimento de nossa visão(distância) e do reaparecimento da imagemcomo tal (intimidade).
Ora, mas por que o cinza? Basta lembrar rapidamente que, no século 19, esta não é uma cor como as outras. Ela é considerada uma espécie de base neutra, estritamente incolor, a partir da qual é possível medir a transição dos tons, do mais claro ao mais escuro — o que se formalizará na teoria das cores da época sob o nome de “escala unidimensional dos cinzas”. Em paralelo à criação dessa escala, vemos surgir também a Escola de Barbizon ainda na primeira metade do século, cujos membros inauguram o que convencionou-se chamar de “pintura de valores”. Dedicados ao gênero menor da paisagem, e pintando diretamente ao ar livre, esses pintores auto-exilados no campo vão atribuir uma importância crucial à descrição dos efeitos luminosos sobre seus motivos. Estas duas ocorrências estão interligadas. A noção mesma de “valor”, diz Haas, citando por sua vez Félix Braquemond, indica essa “intensidade da claridade, abstração feita de toda ideia de cor [...] e indica o que vale uma cor, uma nuance, um tom, uma tinta, medidas na escala graduada entre o branco e o preto”(32). Em uma palavra: o cinza não denota uma cor específica, mas marca a intensidade da luz, que é incolor.
Por isso, também em relação à seus antecessores imediatos, algo de radicalmente novo se produz na pintura de Cézanne. Emerge agora na superfície mesma da tela, por entre as cores, algo que não é da ordem da cor, uma mancha cinza, como se nos fosse revelado um fragmento do “fundo” da pintura. Não estamos aludindo aqui à sua estratégia de criar “reservas” na pintura, deixando partes das telas literalmente crua (o que acontece sobretudo em suas aquarelas tardias), mas da inscrição intencional de algo que não deveria ser visto: um ponto cego, um lugar visível que se apaga. Ora, é precisamente a partir do surgimento disruptivo desse “plano de apagamento” da visão, que é representado pela cor cinza, que todas as outras cores se revelarão em seguida ao espectador em sua pintura. Tanto a mancha amarelada que se nota logo acima da ponte no centro da imagem, como o ponto branco refletido na água, são exemplos da intensidade luminosa dessa nova visibilidade cromática restaurada após o apagamento cinza. E, por isso, diz Haas, são melhores apreciados quando vistos não diretamente, mas de relance, dando assim o efeito do que Merleau-Ponty descreveu tão bem como essa “vibração das aparências que é o berço das coisas”(33).
Esta convergência é o contrário de uma confirmação da leitura de Merleau-Ponty. Ela aponta, antes, para uma solidariedade (impensada) da própria fenomenologia em relação à “situação icônica” inaugurada por Cézanne na segunda metade do século 19. As descrições de Merleau-Ponty não são acertadas porque ele teria, por assim dizer, um bom olho, mas porque ele, e o próprio Husserl antes dele, estão exatamente onde Cézanne os colocou: no lugar do olho de um outro. É este tipo específico de pintura que está operando esta redução do “espírito” a um único “olho”. E o que é mais importante: a um olho neutro, impessoal, anônimo. Pois uma imagem é, por definição, aquilo que foi visto por outro olho que não o meu. Assim, quando Merleau-Ponty vê algo especial em Cézanne, quando ele vê a si própria em Cézanne, ele não se engana: ele está, na realidade, reconduzindo a própria fenomenologia àquele que é o seu próprio ponto cego. Este ponto paradoxal em que essa filosofia em primeira pessoa, baseada na descrição da experiência do sujeito enquanto sujeito, reencontra sua origem: a visão de uma imagem, que é sempre na terceira pessoa. Como nos lembra Haas, “o visto pelo outro e o que eu vejo, relatado, são idênticos. O visto em si mesmo não tem um sujeito: mas ele é isso em relação à que todo sujeito se situará, o que está diante do sujeito”(34).
Ora, que seja o cinza a realizar essa “redução” da visão à imagem não é mera coincidência. Pois ele representa não apenas o ponto de referência de todo cromatismo no século 19, mas encarna também esse “brilho [...] do metal fundido”(35)de que parece estar inteiramente revestida a cidade moderna. Como diz Manlio Brusantin em sua Historia das cores: “A era industrial contemporânea gostaria de apresentar-se com o brilho do metal ou das tintas metálicas: este revestimento parece ser a consciência resplandecente do progresso, o qual a produção vai rapidamente privar de seu verniz”(36). Essa tonalidade cinza dominante (e decadente) não se encontra apenas nas grandes estruturas metálicas da engenharia moderna, como as estações de trem. Ela está em toda parte: da aplicação de novos solventes que retiram as cores originais de outros materiais, até a proliferação de materiais de construção sem uma cor definida, tais como o betume; passando pela coloração involuntária que adquirem os edifícios e objetos em contato com a poluição diária produzida pelo maquinário industrial — igualmente cinza. Quando Cézanne decide “deixar Paris” de uma vez por todas em 1895, toda a vida na metrópole se constrói a partir da oposição entre o negrume das casacas da burguesia e a brancura higiênica de seus lençóis e apartamentos. Sair da cidade significava, já para os impressionistas antes dele, não apenas abandonar a corrupção da vida industrial ou os ditames da Academia, mas sobretudo fugir desse sufocante cinza urbano e reencontrar a riqueza da paleta campestre. Cézanne, diremos então, vai neste sentido também mais longe do que seus colegas: não para Barbizon, Fontainebleau ou Giverny, há algumas horas de Paris por trem, mas de volta à sua cidade natal no sul da França, Aix-en-Provence. Mas ele leva consigo o essencial: o cinza.
Pois esta é, acima de tudo, a cor das chapas da arte fotográfica nascente naquele mesmo momento, a nova superfície de inscrição das imagens tais quais vistas por esse outro radical que é a máquina. O próprio Merleau-Ponty reconhecia a presença de algo “profundamente inumano” em suas pinturas, e atribuía isso ao esforço do pintor em ir mais longe do que qualquer outro humano no trabalho da percepção: “Por isso”, ele pondera, “seus personagens são estranhos e como que vistos por um ser de outra espécie”(37). Ora, já não necessitamos de Lyotard para concluir uma vez mais o óbvio sobre a questão: esse caráter “inumano” não é apenas o sinal desse esforço excepcional de Cézanne, mas de que há algo trabalhando ai além do homem. Automaticamente, poderíamos dizer. Pois, se há algo cuja definição mesma é, não apenas funcionar independente de nós, mas também ver o que ninguém viu, esse algo é a máquina, e em especial, a máquina fotográfica.
A associação da pintura do século 19 com a fotografia, desde a Escola de Barbizon até Degas, passando pelo Impressionismo, já não tem hoje nada de escandalosa. É claro, autores como Merleau-Ponty vão continuar a opor frontalmente uma prática à outra, ignorando assim as experiências radicais tanto das vanguardas dos anos 1910-20 como as que lhe eram contemporâneas, nos anos 1950. Mas sabemos por outras fontes que tais distinções, como arte e indústria, orgânico e mecânico, consciência e alienação, ainda que importantes para certos sistemas filosóficos, não resistem a um exame mais detido. É o que sugere a crítica e historiadora da arte Rosalind Krauss, tomando o exemplo da obra de Monet:
Pensamos no impressionismo como uma arte da cor. Mas ele não o foi em seu início. Antes de 1874, Monet era um pintor tonal que estruturava suas paisagens pelo jogo dos contrastes entre brancos e pretos. Que ele tenha pintado dessa maneira indica bem o papel essencial desempenhado pela fotografia: a imagem fotográfica e as ‘verdades’ que ela registrava formaram as visões de Monet sobre os problemas internos da natureza e da arte(38).
O nascimento do Impressionismo na década 1870 seria assim uma reação possível ao que havia sido antes identificado por Louis Daguerre como sendo a “escrita da própria natureza” por meio da luz (foto-grafia). Monet apontaria assim, com suas atmosferas altamente subjetivas, para uma direção outra que a fotografia na captação da natureza, mas ainda assim inteiramente dependente desta. Se as cores são o domínio da pintura no Impressionismo é, em primeiro lugar, porque a luz (incolor) é do domínio da fotografia (em tons de cinza). Dinâmica que aparece ainda mais clara em Cézanne, na mesma década, com o surgimento na superfície da tela deste cinza fotográfico subjacente à imagem. Por isso, quando Brusantin afirma que “o cinza é a imobilidade sem esperança”(39), é preciso ir além do mero psicologismo associativo das cores: este plano cinza que se interpõem na sua pintura, como um véu entre o espectador e o visível, é o análogo funcional da placa do daguerreotipo que desaparece em favor do desenho em preto e branco que surge quando a imagem é revelada. A “imobilidade” introduzida por este plano é precisamente o efeito de “suspenção” mortificadora operada pelo obturador do aparelho, o qual captura do Real não apenas o Espaço, mas o próprio Tempo. É talvez o que o próprio Cézanne quisesse dizer, no fundo, com sua frase tão citada por Gasquet (e Merleau-Ponty): “Há um minuto do mundo que passa, é preciso pintá-lo em sua realidade”(40).
VI
Ao deixar transparecer em sua pintura o plano de inscrição das imagens do mundo industrial, Cézanne está nos apresentando, não aquilo que ele mesmo viu, mas aquilo que ninguém viu. Se pudesse extrair algo do tempo e do espaço e mostra-la como ela é em si mesma. Ao tentá-lo, ao emular com sua pintura o funcionamento do obturador de uma máquina fotográfica, ele termina por reduzir seu próprio olho ao olho de um outro. Não ao olho de “carne” desse artista selvagem de que sonha o filósofo de férias no campo, mas a esse olho radicalmente anônimo da câmera, intercambiável como os indivíduos na massa das grandes cidades. Por isso, Merleau-Ponty, Rilke, Matisse, e mesmo meu orientador da época; todos querem ser Cézanne, e o próprio Cézanne parece querer ser outro. Quem? Pissarro? Sim, mas não só. Não importa quem se postar diante dessas pinturas, sempre se transformará em outro. Terá de abandonar seu corpo e seu nome próprio.
Ora, diremos, esse trabalho de abandono não é de uma ascese religiosa, mas de uma alienação industrial: Cézanne não trabalha como um mártir, mas como uma máquina. O que não deixa de ser algo irônico, é verdade, para um artista que tão claramente rejeitava os valores do mundo industrial e repetiu até o fim a necessidade de pintar “segundo a natureza”. Ele passa os últimos anos de sua vida em seu pequeno ateliê em uma estrada isolada de Aix, não apenas longe de todos, mas também longe de si mesmo, alienando-se de sua subjetividade individual, trabalhando como uma máquina para tornar-se esse Outro radical. Ele é, neste sentido, não apenas um trabalhador da pintura, um camponês, mas um verdadeiro proletário, submetendo-se às regras inflexíveis de seu dispositivo mecânico. Então mais nada a seu redor parece realmente importar: ele já não recebe mais visitas, e exclui a todos com a mesma veemência. (Até mesmo juridicamente: em 1902 ele escreve uma nova versão de seu testamento excluindo sua esposa Hortense do seu espólio). Talvez por isso, em seus últimos dias, sentindo seu corpo sucumbir ao que terá sido uma vida de trabalho verdadeiramente inumano, não lhe reste senão escrever a seu filho Paul, adotando a maneira de outra máquina da época, o telégrafo: “Sistema nervoso muito enfraquecido, só a pintura a óleo pode me sustentar. É preciso continuar. Tenho que realizar, pois, segundo a natureza”(41).
Nesse lugar de substituições fotográficas, minhas leituras de Cézanne se confundiram com as de Haas até um ponto de total indistinção. Não saberia mais precisar ao certo quem disse o quê. Seria mesmo de se estranhar se eu, Daniel, pudesse me extrair desse jogo de espelhos tão bem amarrado. Em retrospecto, dou-me conta de que minha saída algo intempestiva da academia, após o termino do mestrado, foi também dirigido por uma busca por tornar-me outro; e que, não obstante minhas reticências em relação à Merleau-Ponty, continuo a reportar-me intimamente a essas “experiências cezanianas” pelas quais Rilke passava em 1907. Por isso ele vai ao Salon d’Automne todos os dias, também como um autômato, e relata por cartas à sua mulher a sua própria transformação pessoal diante daqueles quadros: “Eu caminhava ao redor e via, mas não via a natureza, e sim a história que ela me inspirava. [...] Por isso, por Cézanne ter tanto a ver comigo agora, noto como me tornei diferente. Estou no caminho de me tornar um trabalhador, em um longo caminho talvez, e provavelmente só nas primeiras milhas...”(42). O que Rilke viu em Cézanne é o que ainda hoje procuramos desesperadamente: alguém que, em um mundo dominado por máquinas, conseguiu criar as regras de seu próprio jogo. Por isso, Cézanne é essencialmente distinto dos operários das usinas, ou ainda dos pintores das Academias de Paris que reproduzem cegamente seus mestres: o pintor provençal responde unicamente às exigências de uma máquina cujas regras ele mesmo inventou. A sua alienação é a sua consciênciae vice versa, ele é o seu patrão explorador e o seu empregado explorado. É porque, apesar de perceber claramente o que há de risível nesta ideia de trabalhar como uma maquina, sigo a frustrar-me como Rilke quando este lamenta: “Ainda estamos longe de poder trabalhar tanto”(43). É porque, para tomar mais um exemplo oportuno, passei todos os meus dias em São Paulo sem sair de casa, trabalhando obsessivamente em um texto que tem por tema a obsessão do trabalho.
Se me for permitida uma última projeção especular à guisa de conclusão — disse então ao público — talvez escolhesse estar por um minuto na pele da escultora Clara Westhoff, a mulher de Rilke. Após viverem um período juntos em Paris, e terem aí uma filha, Rainer inicia uma viagem que durará 5 anos; quando ele finalmente retorna à Paris, para terminar sua monografia sobre Auguste Rodin, Clara já havia retornado a seu país natal. Ela passaria ainda mais 10 meses vivendo na Alemanha a ausência que lhe foi imposta pelo marido, que queria estender sua estadia em Paris para viver suas “experiências cézanianas”. A renda de Clara, como aprendemos indiretamente pela troca de cartas, não lhe permite pagar-se uma visitar ao poeta, e quase não lhe chega para pagar o aluguel do ateliê e a educação de sua filha. De sua própria prática artística, nem uma única palavra é dita. Rainer também não lhe fará nenhuma visita durante todo esse tempo. Tudo o que ela receberá do orgulhoso autor do poema O solitário, são essas famosas e infames cartas sobre Cézanne. É com profunda pesar que eu, que já vivi muitos anos sozinho, em relações feitas de distâncias inventadas, me reconheço aqui mais uma vez no gesto egoísta e cego de Rainer, quando esse diz a Clara: “Queria lhe contar tudo isso; tem ligação com muita coisa em torno de nós, mesmo conosco, em centenas de pontos [...] Fique em paz... amanhã falo novamente de mim. Mas você vai saber que também fiz isso hoje”(44).
Se querer ser como Cézanne é cômico, para aqueles que estão à sua volta, tudo isto deve soar simplesmente trágico. Sinto muito, senhora Cézanne.