Ensaio sobre a obra de Antonio Sobral por ocasião de sua exposição Força Latente na galeria DConcept, São Paulo. Tomo o itinerário feito pelo artista de carro pela América Latina, em preparação para a exposição, como metáfora para sua nova produção artística. Enquanto especulo sobre a real função da viagem, entre busca e fuga, questiono meu próprio método de análise, que confunde voluntariamente vida e obra.    


Fonte > Publicação independente, 2014




1        Da primeira vez que conversei com Antonio sobre sua nova exposição em São Paulo, no início de março, ele encontrava-se em um vilarejo perdido na fronteira da Bolívia, e cujo nome, se é que me foi dito, não recordo. Sua permanência prolongada naquele pueblito era acidental: ele tentava há mais de um mês, sem sucesso, reaver o seu veículo, apreendido pela Alfândega daquele país, em razão de uma documentação supostamente incompleta. Faltava-lhe — assim lhe diziam todos os dias na delegacia local —, o importante Formulario Aduanero 294.  

2        Em 1857, Charles Baudelaire compila finalmente seus poemas e convida o leitor “— Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!” a trocar o tédio da vida parisiense pela promessa de encantos luxuriosos em terras distantes: “Minha doce irmã, / Pensa na manhã / Em que iremos, numa viagem, / Amar a valer, / Amar e morrer / No país que é a tua imagem! / Os sóis orvalhados / Desses céus nublados / Para mim guardam o encanto / Misterioso e cruel / Desse olhar infiel / Brilhando através do pranto”.

3        Não saberia precisar por onde Antonio passou nos últimos meses, desde que deixou sua casa em Berlim, em meados de agosto do ano passado: lembro vagamente de uma menção, feita por Skype, a uma estadia em alguma região litorânea da França, e outra no interior de Portugal; depois disso só tornaríamos a nos falar quando de sua chegada ao Brasil, onde nos encontramos para nossa residência anual em São José do Vale do Rio Preto. Tendo nos cruzado casualmente em Buenos Aires neste último mês de abril, pergunto-lhe por onde tem andado, e ele me responde: “Brasil, Uruguai, Bolívia, vou para onde conheço gente, e fico em cada lugar um bom tempo; tento viajar barato”.

4        Longe de mim a pretensão de afirmar “tel arbre, tel fruit", como fez o crítico Sainte-Beuve ao longo do século XIX, estabelecendo uma suposta continuidade natural entre o autor e suas obras: “Eu já não tenho senão um único prazer, eu analiso, eu arborizo, eu sou um naturalista dos espíritos. — O que eu gostaria de constituir, é a história literária natural”. É de se supor que uma viagem como esta deva impor condições de trabalho e predisposições perceptivas, para dizer o mínimo, atípicas ao viajante, mas nenhuma destas determinações contextuais poderá jamais explicar a obra que se produziu aí. — O que eu gostaria de constituir então, se me fosse permitido fazer um pastiche desse crítico tão desacreditado pela tradição, seria uma espécie de história artística comparada. Esta deveria poder apontar, não apenas para o fato de que a viagem convida à prática do desenho (preferencia pelos pequenos formatos e materiais leves, talvez uma maior atenção à variação da paisagem), mas que a própria ideia de viagem tem algo a ver com a lógica do desenho (ambos entendidos como exercícios de variação e desapego).

5        Numa palavra, que as linhas de fuga que se traçam sobre um papel, por mais febris e inconscientes, podem sempre ser também as de um itinerário sobre um mapa.

6        Sair das cidades. Sob a égide do pintor inglês John Constable, um grupo de jovens artistas, reunido mais tarde sob o nome questionável de Escola de Barbizon, se dedica ao estudo da paisagem no interior da França. No mesmo ano da publicação das Flores do Mal, Jean-François Millet, um dos fundadores da colônia, pinta aquela que viria a ser considerada a sua obra-prima, Les glaneuses. Talvez por não encontrar aí nem sinal daquela “paz e rigor, / Luxo, beleza e langor” de suas próprias fantasias de evasão, o mesmo Baudelaire escreva em sua crítica do Salão de 1859: “[os camponeses de Millet] são seres pedantes que possuem uma alta opinião de si mesmos. Eles exibem uma maneira de embrutecimento pesada e fatal que me dá a vontade de odiá-los”.

7        Factual ou alegórica, fuga ou aventura, realista ou romântica, por carro, por trem, ou sem sair de seu próprio quarto, muitas são as formas de se viajar, e tantas são as formas de se representar as novas paisagens que desfilam ante os olhos. Penso nesse novo corpo de trabalhos de Antonio, antes de tudo, como uma espécie de sketch book, de diário visual dessa viagem ainda em curso. E numa certa ideia primitiva do desenho, não apenas como suporte material, mas também como fontedesse registro. Pois, se há algo que possa unir essas obras, ainda que de uma maneira lateral, ou oblíqua, este seria o gesto, ora violento, ora tranquilo, sempre repetido, porém sempre renovado, da caneta atacando o caderno.

8        “Eu estou intencionalmente desenhando sem pensar em nada, me disse Antonio em São José, é um processo muito custoso”. O que interpreto hoje como: estou tentando escapar das convenções do desenho, ignorando as fronteiras entre processos, temas e formatos. Indeterminação que sinto como uma dificuldade na escrita deste texto: pois nenhum dos gêneros com os quais costuma-se classificar obras bidimensionais, como ‘retrato’, ‘composição’, ‘painel histórico’, ‘paisagem’, ‘construção’, ‘natureza morta’, parece se aplicar aqui. Diante destas manchas de cor histéricas, destas linhas tensas disparando em todas as direções, destas formas bastardas sem origem nem destino, seria pouco dizer destes desenhos que são, por exemplo, ‘abstratos’. Seria quase nada.

9        Na rubrica Documentação do Veículo, Carteira de Motorista e Equipamento do guia da Argentina que encontro na minha cozinha, lê-se o seguinte: “A maioria dos países da América do Sul, incluindo Argentina, Chile, Uruguai e Brasil, dispensaram o trabalhoso Carnet de Passages en Douanes, o qual demandava o depósito de uma importante caução para a importação do veículo”. E a rubrica termina com o aviso: “Atenção: a polícia presta muita atenção na documentação de veículos — a tarjeta verde para os veículos argentinos, a autorização da Alfândega para os estrangeiros. Veículos sem documentação podem ser apreendidos no local”.

10        Noto que o Estado Plurinacional da Bolívia não se encontra na lista dos países que se empenharam em reduzir a burocracia recentemente, e concluo que ter chegado até aquele ponto, aquele posto do controle de fronteiras, tendo viajado por tanto tempo sem a documentação adequada, já constitui um mérito em si.  

11        Penso reconhecer por detrás dessa operação de Antonio, tanto em seus desenhos quanto em suas colagens, uma estratégia comum: a tentativa de redução progressiva da imagem a um ponto primeiro de indistinção, no qual ainda não está decidido se a linha nascente é símbolo ou ícone, se mostra algo ou diz algo, e as manchas de cor, por sua vez, não parecem ter se destacado ainda de um plano de existência quase embrionário. Há certamente algo de infantil aí; mas não é exatamente fácil dizer nem o quê nem onde. Pois esta dimensão não está manifesta onde mais se espera, isto é, na superfície dessas imagens riscadas a canetas Pilot, nanquim e lápis de cor, nem sequer nas justaposições dessas formas e padrões incompossíveis. Essa infantilidade à que alude Antonio, não parece ser tanto a idade do homem senão a da própria terra — construção poética que tomamos aqui emprestada na esperança de tornar mais palpável essa espécie de espontaneidade primeira com a qual a natureza parece ter um dia fabricado suas enigmáticas criações.

12        Ou que talvez complique-nos ainda mais as coisas.

13        Não nos arrisquemos, pois, em um mergulho precipitado em metafísicas que não dominamos. Pois não se trata de pensar ou definir o mundo, senão de compreender o que se passa aqui sob o nome de “desenho”. E é ainda de desenho que trata este novo corpo de trabalho, mesmo quando estamos factualmente diante de uma colagem ou de uma fotografia. Ainda que reclamem para si uma leitura completamente diversa, colagens como Abismo, Espirais Paralelas, ou ainda Virtual, funcionam aqui como desenhos. Ou como “desenhos expandidos”, nas palavras de Antonio, “no que formalmente são variações acerca do desenho entendido como expressão primeira”. E sentimos, de fato, uma distância em relação àquele universo regido pelo ideal da “colagem”, no qual ele vinha trabalhando há algum tempo. É significativo, em todo caso, que um dos poucos objetos identificáveis — e nomeados — aqui, as formações rochosas em Pedras Carnaval, estejam distorcidas. Ou, em todo caso, menos nítidas do que em suas colagens anteriores. Pois é uma outra ideia de natureza que se apresenta agora. Justo por não representarem nada de imediatamente reconhecível, é que me surpreendo pensando em alguns elementos da fauna ou da flora. Mas não em suas formas conhecidas, pois é como se víssemos agora as coisas em seus mais ínfimos detalhes: não mais pedras ou folhas, florestas, mas, talvez, nervuras, fungos, bactérias, descargas elétricas ou massa cinzenta — coisas tão materiais ou físicas quanto mesas ou cadeiras, mas que nos parecem tão estranhas que necessitamos de palavras em latim para nomeá-las.

14        Não surpreende, assim, que a maioria destas obras careça de título. Prova por contradição: quando há títulos, estes parecem muito pouco aderentes. Se soam “corretos”, é porque são apenas alusivos. Quando, por outro lado, se querem mais precisos, parecem algo redundantes. 

15        Não estariam os vários cadernos e livros de artista que Antonio vem editando nos últimos anos mais próximos disto que vem sendo chamado agora de Força Latente? Por sua lógica de visualização, impondo ao leitor um tempo que não o da pintura, que não o da escultura, estas publicações já não anunciariam talvez uma partida simbólica, um primeiro desprendimento do meio da arte contemporânea, feito mais de pontos do que de caminhos?

16        Antonio diz querer apresentar ao público “mundos sem chão firme, que causem estranhamento e fascinação”, e suponho que o clichê não esteja longe daqui, mas não posso deixar de imaginar um mundo visto através da janela de um veículo em movimento. Estes novos desenhos, colagens e fotografias, como condutores de uma certa energia, devem funcionar para além dos limites físicos do quadro, diz ele ainda, “como se estivesse congelada aí uma certa sensação de presença, uma lembrança de como é estar vivo”. E penso então naquele momento de euforia em que se projeta o corpo pela janela do carro apenas para fazer parte daquele movimento.

17        As Flores do mal se encerram com um longo poema intitulado “A viagem”. Nele, a visão profundamente ambígua do tema, já presente em “Convite à viagem”, se torna evidente. Saber amargo o que se pode obter na viagem! / O mundo, hoje pequeno e quase sem remédio, / Hoje, ontem, amanhã, nos faz ver nossa imagem: / Sempre um oásis de horror num deserto de tédio!”. Entre a curiosidade daquele que ficou (“O que pudestes ver enfim?”) e a decepção daquele que partiu (“E não obstante tanta amargura pressagia, / Por vezes como aqui vimos tédio fatal”.) o poeta imprime a toda viagem o ritmo de uma oscilação inevitável: “É preciso partir? Ficar? Queres ficar, pois fica: / Parte, se for preciso”.

18        Tenho ante os olhos a folha de caderno na qual fiz as primeiras notas para este texto, enquanto falava com Antonio por Skype. Ali se lê claramente o número “294”, seguido das palavras em espanhol ‘trámites aduaneros’. Não pude encontrar qualquer menção a tal formulário na internet, nem mesmo depois de percorrer cuidadosamente alguns documentos escaneados da Alfândega Boliviana, tais como a “Resolução de diretório n. RD 01-014-12 de 12/12/2012, que aprova o formulário único de saída e entrada de veículos no acordo boliviano – argentino e suas instruções de preenchimento”, ou ainda o imponente “Decreto supremo n. 28963 de 06-12-06, que aprova o regulamento da lei 3467 para a importação de veículos automotivos”. Neste último, sob o Artigo 7 (veículos sem documentação), item II, afirma-se: “Os proprietários de veículos sem documentação que não se beneficiarem de uma retratação eficiente, serão passíveis de sanções previstas no Código Tributário Boliviano, na Lei geral da Alfândega e a toda norma aplicável de caráter supletivo e submetidos a processo penal e administrativo, segundo o caso”.

19        O número 294 não correspondendo a nada, continuo sem saber qual documento lhe faltava. Muito provavelmente, ele também. Pergunto-lhe o que aconteceu com o carro, e ele me responde que, apesar de seus melhores esforços, ele será leiloado pela Bolívia. Tinha vindo para Buenos Aires de ônibus, passando alguns dias em Salta e Tucumán, levando 14 malas e sacolas. E seguiria finalmente de avião até São Paulo, para fazer a montagem da exposiçãoForça Latente.

20        Em um outro formulário intitulado “Perguntas Base”, enviado por sua assessoria de imprensa, Antonio escreve: “Outro aspecto importante nesta exposição, é que ela se quer popular: comunicativa (colorida) e simples (gestual)”. E recordo então um comentário feito rapidamente naquela primeira conversa, meses atrás, onde ele dizia estar feliz com o resultado de sua fuga do desenho, em direção às colagens e livros de artista, mas algo insatisfeito com as consequências institucionais, e que pensava nesta exposição como um possível retorno ao circuito da arte contemporânea. O que faria desta uma viagem de volta, e não mais uma ida, como o ponto final de um longo itinerário produtivo. Mas recordo também de um comentário contrário no minuto seguinte, onde se dava conta de que este retorno a um suporte mais “convencional” só poderia ser malsucedido, pois já não era mais capaz de desenhar como antes... A figuração estava barrada, o universo era agora de crise. Seus materiais provêm todos da dita “baixa cultura”, e são “mais facilmente identificados com o design gráfico do que às Belas Artes”. E a execução, trunfo máximo do pintor, “não carece aqui de virtuosismo, e sim de certa astúcia”.

21        Em uma nova versão do poema, ampliada, lançada na segunda edição do volume, em 1861, Baudelaire explicita o caráter metafórico de toda partida — até mesmo as reais — ao definir a vida mesma como uma viagem. Ó Morte, ó capitão! Deixemos este cais! / Este país é o tédio! Ah, soltemos a vela! / Se o firmamento e o mar são negrumes fatais / O nosso coração, se clarões se constelam! / Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta! / Tanto o cérebro nosso é de fogo incendido, / No abismo mergulhar, Inferno ou Céu, que importa? / Para o novo encontrar no mais desconhecido!”.

22        Quais são os limites da experiência? Serão tão facilmente localizáveis como estes postos de fronteira, onde algum suboficial de plantão exigirá por certo algum formulário desconhecido ou um suborno? Ou serão nebulosos como as fronteiras do afeto? Longe de mim afirmar "tel arbre, tel fruit", como o crítico desacreditado, enamorado das biografias, mas agora enquanto escrevo essas últimas linhas, tarde da noite em Buenos Aires, não posso deixar de pensar em minhas próprias desventuras amorosas, tão ligadas a viagens e distâncias nos últimos anos, e acrescentar: ainda bem que Antonio viajou acompanhado.