Entrevista com o artista Antonio Sobral por ocasião de sua exposição Arrebentação na galeria DConcept, São Paulo. Falamos sobre a possibilidade (ou impossibilidade) de se conciliar uma expressão individual com outras formas de manifestação coletivas, indo do meio da arte contemporânea dos anos 2010 às vanguardas históricas de um século atrás, passando ainda pelos ideais utópicos dos movimentos contraculturais dos anos 1960 e 70.

Fonte > Publicação independente, 2012





Estamos sentados, Antonio e eu, à mesa de jantar da Fazenda São João, no interior do estado do Rio de Janeiro, a apenas 15 dias da abertura de “Arrebentação”. Não resisto em dar início a esta entrevista com uma epígrafe cuja força reside, creio, no enlace de um insight histórico da ordem da clarividência e de um tom de desprezo da ordem da histeria clínica:

“É suficiente que retenham de tudo isto [...] que a arte de fato deixou de ser individual, mesmo quando o artista revela-se um irremediável individualista, pelo simples fato de podermos acompanhar, negligenciando os indivíduos [...], uma vasta reflexão que não se vale do intermédio dos homens senão de forma passageira”.

É de Louis Aragon, escritor surrealista, então no auge de seus vinte e poucos anos, gritando aos quatro ventos o que seria o essencial de sua teoria estética: ‘artistas de salão, jornalistas e críticos de arte, de tudo que escrevi, retenham apenas isso: a arte é coletiva!’ Para além da provocação possível, penso tratar-se de um bom início de conversa com um jovem artista brasileiro preparando sua ‘individual’. Antonio sorri. Conhecemo-nos há muitos anos. Ligo meu gravador de bolso, e começamos.


(Está gravando)




Daniel Jablonski        Há quase um século, Antonio, a tarefa de toda uma geração de jovens escritores e artistas de vanguarda não era encarada (unicamente) sob o prisma da autopromoção pessoal, mas da solidificação do aspecto fundamentalmente coletivo da criação. Mais tarde, nos dias difíceis que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, outro surrealista, recém aportado em Nova York, apontaria ainda para a necessidade da criação de um ‘mito coletivo’...

Tem algo de verdadeiramente triste e de belo nessa declaração, de um entusiasmo já deslocado para o seu contexto histórico. Arriscaria mesmo dizer que, de todos os que posso imaginar, a segunda metade dos anos 1940 nos Estados Unidos me parece o pior cenário possível para um tal delírio de coletividade. O fim dessas vanguardas era tão somente uma questão de tempo. A minha primeira pergunta é então a seguinte: o que te parece restar desta visão de mundo hoje, isso é, no início dessa nossa década de 2010?

Antonio Sobral        O tipo de arte que me interessa hoje parte talvez do princípio do fim de tudo isso: das ideologias, e até mesmo da intertextualidade, esse chavão da pós-modernidade. Nestes trabalhos, todas essas coisas são pressupostas, é claro, mas não funcionam como finalidades em si. Ao contrário, estamos de certa forma reinventando conceitos... [hesita]modernistas... ou não necessariamente modernistas... Essa talvez ainda não seja a palavra. Te dou um exemplo concreto: uma coisa que acho muito forte hoje é a tentativa de reviver a ideia de ‘utopia’. Houve toda essa coisa do ‘fim da utopia’, mas acredito que ela cumpra, sim, um papel muito importante hoje. Há inclusive toda uma geração de artistas — da qual acredito fazer parte —, que tenta encontrar um espaço que seja... [e completa, rápido] onde há crença, onde se crê numa transformação, onde se crê numa efetividade. O que seria, eventualmente, uma arte mais ‘política’.



DJ        Interessante o uso da palavra num contexto tão distinto daquele onde, nos anos 1960 e 70, floresceu a ideia de um engajamento político militante sem meias palavras, sem metáforas, digamos então... ‘literal’.

AS        Discordo. É fato que boa parte da militância política de esquerda era, por principio, objetiva e fria, mas nem tudo o que é ‘político’ resumia-se à militância, ou toda a militância era ‘antipoética’. A ideologia hippie, por exemplo, é politica no que ela questiona valores e relações sociais… Ser abertamente diferente da norma, tanto apontando para a normatização quanto buscando novas formas de organização social, é em si uma forma de se fazer política. E a poesia poderia ser considerada a razão mística desse movimento.

Me interesso muito pelos filmes do Pasolini, onde ele desenvolve o que poderia ser chamado de "política-poética". Em Salò, ou 120 dias de Sodoma, ele trata o nazismo como perversão individual, tirando-o assim da esfera de utopia coletiva: a dominação é vista como delírio, prazer sádico, e nunca está ao simples serviço do ‘nacional-socialismo’. Pasolini busca ir além da militância, no que ele se interessa mais pelo estado de espírito que motiva uma ideologia do que pela ideologia em si.

Um engajamento bem diferente destas duas décadas (este sim ‘sem meias palavras’), que tem me interessado atualmente é a arte feminista, que discute a formação da identidade feminina num universo machista (transportem-se para os anos 60, meninos, e isto fará ainda mais sentido!), propondo a transformação imediata desta realidade opressora. A maior parte do que vem à cabeça neste meio são trabalhos de colagem, vídeo e sobretudo performance. Me parece que não tem nada mais poético do que partir da experiência do próprio corpo para se discutir um mecanismo de dominação social. Penso em artistas como a Orlan (dos anos 60), a Valie Export, a Marina Abramovic…

Acredito que muitas contestações tiveram resultados efetivos, embora a imagem da contestação tenha sido incorporada pelo marketing das indústrias corporativas para o benefício do próprio capitalismo, e também para que o indivíduo torne-se um exilado politicamente na condição de mero ‘consumidor’. O que nos traz o desafio de novas militâncias e reflexões políticas, sejam elas materialistas ou espirituais, mais ou menos poéticas e utópicas.



DJ        Sim, nossos pais foram grandes poetas, sem sombra de dúvidas.

(Risos).

DJ        Mas agora falando sério, o seu comentário vem ao encontro à pergunta que ia te fazer na sequencia. Gostaria de saber então como você enxerga o lugar do seu próprio trabalho, não apenas numa eventual sucessão de correntes estéticas, mas nesse contexto político ampliado, de militâncias materiais ou espirituais...

AS        ‘Contexto político ampliado’ ainda me parece um pouco vago. Você pode reformular a coisa de maneira mais precisa?



DJ        Posso sim, desculpe, são muitos anos de filosofia. A pessoa pega um gosto pela generalidade. A pergunta é esta: em que contexto ou canal cultural você busca inserir a sua própria produção?

AS        Não sei se tenho o embasamento teórico para definir o que seria ‘o contexto’, mas posso falar de exemplos concretos nos quais bem ou mal procurei me inserir nos últimos anos...

Em geral, o que me interessa em arte, e onde procuro me inserir, é onde há autonomia, a do produzir independente de circuitos com lógicas que não dizem respeito à criatividade e à finalidade da criatividade em si. Nesse sentido, acho muito importante os espaços ditos ‘artist-run’, o que vem a ser um espaço para a produção e exibição de arte, e / ou para vivências, discussões, trocas… Aí está a questão, vê? Num lugar destes você já começa a repensar a função do espaço, porque não se trata de uma galeria [...]. É um espaço feito pelo artista, [hesita]para o... [hesita ainda, e completa]...acaba sendo um pouco para o artista, mas não acho que o mundo acabe aí. Por outro lado, há sim, uma certa desilusão, com o mercado, a política. Funciona, no fundo, assim: o sujeito pensa, ‘eu estou fazendo o que acho que é certo, e se você se interessar será bem-vindo...’. Tem isso do `bem-vindo`, das portas abertas, que é super importante no modelo ‘artist-run-space’, mas ninguém ali tem nem o tempo, nem a energia, nem o dinheiro, para fazer com que aquilo ganhe especial projeção na mídia ou traga algum retorno financeiro. É uma energia muito grande que se empregaria com isso e que está sendo empregada em experimentação, que é uma coisa sempre inconclusiva, sem relação intrínseca ao produto. Que está sendo transformada em formas de vivência, o que por si só é uma forma de experimentação.



DJ        E qual a sua vivência nesse tipo de espaço?

AS        Umas das coisas que acho mais bacanas em Berlin — e da minha vida por lá —, é a abundância de espaços ‘artist-run’, todos com propostas diferentes. É um ambiente muito rico em trocas. Tem muita gente que está pensando, experimentando, e diferentes grupos que, no fim das contas, tem uma autonomia total, sem qualquer pressão institucional. No circuito de São Paulo, por exemplo, tem poucas galerias e um mercado relativamente forte. Um artista independente em São Paulo fica sempre na borda do mainstream, enquanto em Berlin ele não tem sequer essa possibilidade, uma vez que este é completamente fechado em si. O mainstream de lá não quer saber de mais ninguém e as pessoas tampouco querem saber dele! Isso tem duas facetas. A primeira é obvia: pouca gente passa de um lado pro outro e isso é ruim para todo mundo. Mas isso cria por outro lado uma sensação de liberdade muito grande no meio independente, ajudando assim a diminuir uma certa carga de ansiedade relativa à produção. Energia essa que é então transferida para uma esfera de construção, a qual se poderia chamar talvez de ‘utópica’ — embora seja perfeitamente concreta. Ora, o simples fato de existirem no interior da comunidade artística, que é tão exclusivista, já serve de "exemplo"…



DJ        Como um modelo?

AS        Sim, como um modelo de um sistema que deu certo, não como um modelo de um sistema que tem que ser. Ela em si funciona como um modelo do que a sociedade pode ser: experimentação, colaboração, respeito, bom senso, etc.



DJ        Esse tipo de organização coletiva me remete a alguns momentos-chave da História da Arte recente em que artistas tentaram (com mais ou menos sucesso e / ou pudor) cortar a mediação entre o seu trabalho e o público. Penso, por exemplo, na recusa da figura do crítico de arte pelos artistas minimalistas e conceituais nos 1960, ou ainda na decisão mais recente de um Damien Hirst de pôr sua própria obra a leilão na Sotheby’s, contornando assim os seus galeristas e outros especuladores, e embolsando sozinho a módica quantia de 200 milhões de dólares. São exemplos muito distintos, mas que falam bastante da dificuldade do artista guardar algum controle sobre a sua obra, de lutar contra a alienação de seu ‘produto’ — sobretudo nos Estados Unidos.

AS        No entanto, se a alienação for a apropriação de seu produto por outra pessoa, então o exemplo do modelo ‘artist-run’ não funciona bem nessa genealogia. Nesse caso específico, o seu ‘produto’ deixa de ser tanto o seu produto para tornar-se o produto da comunidade — o que é o mais importante. É como se houvesse um pressuposto do que é a ética no interior desse grupo; tem esses valores, de respeito, experimentação, e muitos outros — não é exaustivo, não é uma carta de valores — mas existe uma ideia, um senso comum do que é legal. Se a minha produção é, digamos, de alguma forma antiética, ela não cabe ali, não tem porque eu estar neste círculo. Então há uma alienação no meu trabalho, porque ele está se submetendo a um espírito de um tempo, de um...  



DJ        Claro, ele tem de funcionar nesse modelo; você está se propondo a trabalhar com gente...

AS        Ele tem que funcionar nesse modelo, e tem que fazer sentido para as pessoas que estão vivendo dentro desses sistemas alternativos. Tem que poder dialogar com essas pessoas de forma direta, o que te obriga a abrir mão de certas coisas.

Uma coisa que é bem evidente no meu trabalho é a questão da precariedade, que vem de uma questão realmente política, não diretamente ligada a isso, mas ainda assim. Recentemente o efêmero tornou-se muito mais importante no meu trabalho. E não é apenas uma questão de escolha dos materiais. Por exemplo, quando faço instalações que são específicas para um espaço ou que por x ou y razões não vão durar muito, eu inviabilizo toda uma aceitação dentro do circuito comercial do meu trabalho — aliás, não é nem uma aceitação: ele é invendável e ponto. É claro, existem muitas formas de se vender e esse tipo de estratégia já foi assimilado pelo circuito, mas ainda há um valor simbólico no fato de aquilo não ter um valor concreto, real. 



DJ        Antonio, tenho aqui uma lista razoavelmente extensa com participações suas nos últimos três anos nesse tipo de inciativa coletiva, em diversas cidades, formatos e ocasiões. Você já chegou mesmo a organizar algumas exposições, tais como Péril en la demeure em Berlin, Em obras em São Paulo...

AS        Sabe, tenho um certo ranço com a palavra ‘exposição’...



DJ        E qual é esse mal-estar?

AS        O seu sentido literal me incomoda: a ideia de que você tem um objeto que quer mostrar, quando na verdade você está querendo criar uma situação de vivencia, de experiência. Para mim, a experiência é sempre o mais importante. Tanto eu não tenho uma base teórica muito boa, embora eu tenha certas noções de história da arte bastante precisas — é algo que me interessa muito —, sei que a curadoria é uma coisa do campo da teoria... teoricamente. [Risos]. É porque não me chamo de ‘curador’, ou o faça sempre com certa hesitação na voz... Mas na prática, estou sempre organizando... [pensa, e diz hesitante] eventos. Mas essa palavra é pior ainda. [Risos] Enfim, vá lá, eventos...



DJ        Talvez fosse o caso de se falar em encontros?

AS        Sim, é um nome possível.



DJ        Mas a minha pergunta ainda não era essa. A minha questão é que apesar de toda essa atividade, ainda tenho a impressão — e corrija-me se estiver errado — que ainda há alguma distância entre o seu discurso e a sua prática. Queria saber as suas razões para a sua intermitência com esse tipo de modelo... 

AS        Corrijo. É todo o contrário: acho que há uma regularidade bem notável nesse sentido na minha (curta) trajetória artística. Mais do que isso, seria um trabalho na minha vida.



DJ        E afora toda a carga simbólica da palavra, porque você não faz disso um trabalho?

AS        Agora eu estou, é justamente onde eu queria chegar. Estou montando com um pessoal jovem de São Paulo — a Ruli Emi Moretti, curadora independente, a Julia Ayerbe, pesquisadora em arte, o Rog Lacerda, filósofo e também curador independente, e a Flora Rebollo, artista plástica — algo que não tem o status de um ‘coletivo’, mas que está empenhado em montar um projeto de residência artística. Não é uma coisa perene, mas a ideia é nos reunirmos ao menos uma vez por ano para trabalhar com outros artistas e pesquisadores, durante um mês, aqui nesta mesma Fazenda São João[...].

Uma vez por ano é pouco? É, mas já é alguma coisa. Cada um de nós vive num lugar do mundo — temos pernas em Berlim, em São Paulo e Buenos Aires —, mas ainda assim e temos essa ideia de que a verdadeira experiência da troca se dá no contexto local. É uma geração de pessoas fundamentalmente móveis; se elas não podem se locomover, os amigos delas estão se locomovendo e estão sempre levando e trazendo muitas coisas. No entanto cada vez mais essa ideia de um ‘puro fluxo de informação’ tem me parecido abstrata e sobretudo pouco eficaz quando se trata de trabalhar mesmo. Organizar uma residência, você pode fazer à distância, mas a residência em si é uma experiência incontornável, um período em que vamos estar todos juntos.

Para dizer a verdade, nós nem sabemos o que vamos ser ou se vamos ser ou não, porque vamos experimentar esse formato pela primeira vez enquanto grupo esse ano... Fato é que nos identificamos de alguma maneira uns com o trabalho dos outros, apesar de sermos bastante diferentes, e que, em última instância, é relativamente aleatório que estejamos juntos nesse projeto...



DJ        A questão do ‘aleatório’ nessa lógica da amizade me intriga muito. Penso num recorte de uma outra entrevista em que você disse: ‘Me interesso também por alguns artistas da minha geração, e gosto de me deixar influenciar por eles, aprender técnicas diferentes etc... mas estes artistas têm trabalhos muito diferentes do meu, e diferentes entre si também. A individualidade de cada um é notável e explicita’. Como se dá o interesse pela diferença, a escolha dos afetos?

AS        Acho muito inspirador ver uma coisa com a qual me identifico de alguma forma, mas partindo de um estimulo que jamais teria vindo de mim. É bacana encontrar por acaso um trabalho numa mídia com um conceito bem diferente do meu, mas que me diz respeito, que fala comigo. Eventualmente isso pode mudar o meu próprio trabalho, mas não é necessário. Só de ter a vertigem dessa possibilidade já me entusiasma! Aliás meu trabalho funciona sempre a partir da ideia de entusiasmo. É a razão mesma pela qual faço o meu trabalho, é realmente um conceito-chave. Trata-se de um estado de exaltação, mas com um objeto definido. Pode ser uma questão política, revolucionária, no sentido em que se revoluciona alguma coisa, na forma de se fazer a política — que seja, uma política do diálogo, e não a Política com ‘p’ maiúsculo.



DJ        E você diria que esse entusiasmo se dá em todo o seu processo criativo ou que se concentra em algum momento específico do seu trabalho? Penso em particular nas suas colagens mais recentes, onde o caráter conceitual do trabalho é mais explícito, e a pesquisa de materiais — em brechós, em sebos e em bancas de jornais de várias cidades do mundo —, toma mais tempo do que a realização em si da obra...

AS        Essa é uma pergunta muita interessante. Acho que ele se encontra em vários níveis. Por um lado, ele está na minha vontade de colecionar, num instinto de colecionismo. Eu, por exemplo, me considero em esteta; tenho um fetiche por... [fala pausadamente] reproduções antigas de pedras preciosas e semipreciosas. Então eu procuro e procuro em dezenas de sebos, e quando encontro um livro que tem a textura, a cor, o objeto, o tamanho que eu quero, isso é muito entusiasmante. O fato de poder achar o que eu quero já é entusiasmo o suficiente para eu ir buscar. Eventualmente a coisa torna-se uma reflexão — que já é um outro tempo — ou um agenciamento de ideias onde o entusiasmo se torna o ‘tema’, o objeto a ser trabalhado conceitualmente. Tem a perversidade do colecionismo...  tem um momento de autoconsciência que é muito importante.



DJ        Mas é um colecionismo estranho, visto que você destrói os álbuns que adquire, não?

AS        Por isso mesmo, acredito estar fugindo da postura do colecionador que guarda obsessivamente seus objetos. A precariedade do trabalho joga aí. Antigamente eu comprava muitas revistas e livros antigos e ficava constrangido de recortá-los por gostar muito deles, hoje em dia não tenho o menor apego. A questão do colecionismo é também a questão da acumulação, que também é uma reflexão sobre o excesso de estímulos que tem no mundo em que vivemos hoje em dia. Todo mundo está juntando muita coisa, sempre, mas sem se dar conta do que aquilo significa, ou sequer por que o estão fazendo [...].

O que faço é uma espécie de trabalho histérico sobre o juntar, sabe? Uma espécie de foco exagerado no que seria então importante, a coisa certa, numa espécie de manifesto contra a ideia de acumulação aleatória. Dou uma importância muito grande ao fato da ‘escolha’: ‘eu escolhi juntar isso, e não aquilo outro’. E isso se relaciona com tudo, com a forma com a qual você se relaciona com o próximo, com seus amigos, com o seu corpo. Tudo são escolhas. É uma espécie de caminho da iluminação — não — é um trabalho de autoconsciência. De um lado dá-se vazão às pulsões, aos desejos, deixando-os acontecer em si porque eles estão aí, porque eles existem. Por outro lado, enquadra-se isso num contexto social e num contexto pessoal... onde... [hesita]operam na construção utópica os valores de que falávamos antes, e que determinam o bom senso nesse universo comunitário do ‘artist-run’.



DJ        É, não parece que o bom senso seja a coisa que, no mundo, está mais bem distribuída, como já se disse por aí. Antonio, eu tenho mais duas questões para fechar essa sessão da entrevista...

AS        Eu tenho uma também. 



DJ        Qual?

AS        [pausadamente] posso editar também essa entrevista quando você transcrever?



DJ        Pode. Está gravado.



Já é noite na Fazenda São João quando desligo o gravador. Antonio está de partida para São Paulo, eu volto para o Rio de Janeiro apenas no dia seguinte. Abraçamo-nos na cozinha, esperando que o próximo reencontro seja o mais breve possível, e subitamente estou novamente só com o meu caderno. Converso com a nova amiga Ruli Emi Moretti, enquanto penso uma vez mais na provocação de Aragon sobre o estatuto coletivo da arte de seu tempo. Penso então na necessidade da reversão de um tal paradigma: algo como ‘o artista revela-se um irremediável individualista, mesmo quando a arte de fato cessou de ser verdadeiramente individual’. Penso no Antonio. Ele não concordaria. Tanto melhor.