Critical review by Laura Cosendey for the
exhibition The Mad Sleep – Who watches the Watchman? at Casamata
Gallery, published as part of the text series "Fichário", 31.08.14
Source > Casamata Binder
+ Exhibitions > The Mad Sleep, 2014
Porque nunca conseguia acordar no
horário, Daniel Jablonski começou a se perguntar se haveria uma causa que o
impedia de levantar na hora devida. O problema de Daniel se formaliza a partir
de seu autodiagnóstico: deve se tratar de algum tipo de doença ou distúrbio,
por não se enquadrar no padrão da sociedade. Ele se propôs então a fazer um
estudo sobre esta condição que vivia, na tentativa de entender o que acontecia
até finalmente conseguir despertar. A casamata apresenta esta pesquisa sobre “O
sono louco”, que Daniel realizou entre 04 de agosto e 04 de setembro de 2013.
Junto a todos os despertadores que o artista usou durante esse período, os
resultados dessa experiência encontram-se sistematizados em um gráfico, que
permite analisar as variações entre o horário para o qual havia programado o
despertador na noite anterior e a hora em que ele realmente acordou.
Transitando entre loucura e controle científico, Daniel estabelece critérios
rigorosos para um estudo ficcional.
Mas como vigiar o próprio sono, se Daniel é o sujeito que observa e o objeto de seu próprio estudo? Como assumir os dois papeis nessa experiência e garantir que é possível estar simultaneamente (e entre) os estados consciente e inconsciente? Despertadores, em sua qualidade de relógio, contabilizam a passagem do tempo. Mas esses instrumentos não são suficientes para marcar um momento específico — o instante em que Daniel de fato acordou. Por isso, o recurso ao relógio de ponto de vigia noturno. As engrenagens de sua mecânica interna estão ligadas a uma bobina, na qual é registrada a hora exata quando o dispositivo é acionado. Apesar de não ser mais um objeto comum nos dias de hoje, tal mecanismo era amplamente utilizado num passado nem tão distante assim.
O mundo industrial desenvolveu formas vigilância para controlar e garantir seu funcionamento, para isso, fazia uso de instrumentos mecânicos. Foi nesse contexto, da virada do século XVIII para o século XIX, que a ideia de tempo que vivemos hoje começou a ser construída. Relógios eram até então artefatos extremamente valiosos, um luxo de príncipes e de uma burguesia que enriquecia, objetos de uso pessoal. Quando a vida do trabalho exigiu que todos seguissem este mesmo parâmetro de tempo, foram instalados os primeiros relógios públicos em praças, igrejas e fábricas.
Organizar o tempo em horas, minutos e segundos é parte de uma construção social de temporalidade. Pensar que agora são 10h no Rio de Janeiro e 15h em Paris é uma expansão dessa medida comum, para regular de forma afinada uma logística global. O acordo internacional que estabeleceu Greenwich como o meridiano central, em 1884, permitiu o cálculo de uma “distância comum” ao tempo. O tempo do relógio rege nossos dias ainda hoje. Esta, porém, não é (nem foi) a única forma de organizar a passagem do tempo. As divisões de tempo estabelecidas pelo cristianismo, o divinum officium, orientavam o dia nos mosteiros medievais de acordo com as liturgias. Ao todo, as horas canônicas consistiam em oito preces diurnas e três noturnas. Eram praticadas diariamente no século IX e durante a Baixa Idade Média, mas ainda é possível encontrar espaços religiosos que conservam esta vida regrada.
O costume, se visto de forma mais ampla, é ainda mais antigo. A religiosidade judaica, em sua tradição, designa três grupos de oração: shaharit, minchá e arvit, a serem recitadas pela manhã, à tarde e ao anoitecer, respectivamente. Nesses exemplos, o aspecto quantitativo do tempo parece se mesclar a uma dimensão simbólica. A cultura grega, de forma diferente, estabeleceu termos distintos para lidar com as naturezas que o tempo poderia assumir. O tempo quantitativo da vida dos homens, linear e sequencial, (cronos), o tempo dos deuses (aevum) e o tempo existencial (kairós), um momento oportuno, indeterminado, em que algo pode acontecer — Daniel acordar, talvez.
Se há algo de ahistórico no tempo, são as tentativas de regulamentá-lo e vivê-lo, criando critérios diversos para organizar a experiência diária. O tempo social não é falso, temos que nos adaptar a ele em diversas dimensões da vida, especialmente nas demandas do mundo do trabalho. É uma medida que orienta — por escolha ou não — as formas como vemos o mundo e nele agimos.
O “ter que acordar” não pertence tão somente à lógica produtivista. O que varia são os critérios que determinam um horário, uma norma que leva em conta tarefas que devem ser executadas. Há algum padrão nos horários de Daniel? Parece haver uma lógica própria para tal, algo entre a psicologia dos sonhos e um temperamento particular de Daniel, diversa a um acordo comum da sociedade em geral. Não parece uma loucura para quem vê os indícios da experiência: um estudo rigorosamente controlado, com metodologia quase científica, gráficos, calendários, diários de anotação e bibliografia. Uma obsessão, talvez. O instigante no projeto “O sono louco” é permitir um estranhamento diante do que vivemos todos os dias, ao vermos o artista submeter-se ao aparato de uma cultura impregnada em nosso cotidiano, enquanto tenta adentrar no que acontece num estado de inconsciência. Por mais que não se trate de questionar este mundo de convenções, pois nele vivemos, poder ver de fora permite reconhecer limites nessas perspectivas.
Mas como vigiar o próprio sono, se Daniel é o sujeito que observa e o objeto de seu próprio estudo? Como assumir os dois papeis nessa experiência e garantir que é possível estar simultaneamente (e entre) os estados consciente e inconsciente? Despertadores, em sua qualidade de relógio, contabilizam a passagem do tempo. Mas esses instrumentos não são suficientes para marcar um momento específico — o instante em que Daniel de fato acordou. Por isso, o recurso ao relógio de ponto de vigia noturno. As engrenagens de sua mecânica interna estão ligadas a uma bobina, na qual é registrada a hora exata quando o dispositivo é acionado. Apesar de não ser mais um objeto comum nos dias de hoje, tal mecanismo era amplamente utilizado num passado nem tão distante assim.
O mundo industrial desenvolveu formas vigilância para controlar e garantir seu funcionamento, para isso, fazia uso de instrumentos mecânicos. Foi nesse contexto, da virada do século XVIII para o século XIX, que a ideia de tempo que vivemos hoje começou a ser construída. Relógios eram até então artefatos extremamente valiosos, um luxo de príncipes e de uma burguesia que enriquecia, objetos de uso pessoal. Quando a vida do trabalho exigiu que todos seguissem este mesmo parâmetro de tempo, foram instalados os primeiros relógios públicos em praças, igrejas e fábricas.
Organizar o tempo em horas, minutos e segundos é parte de uma construção social de temporalidade. Pensar que agora são 10h no Rio de Janeiro e 15h em Paris é uma expansão dessa medida comum, para regular de forma afinada uma logística global. O acordo internacional que estabeleceu Greenwich como o meridiano central, em 1884, permitiu o cálculo de uma “distância comum” ao tempo. O tempo do relógio rege nossos dias ainda hoje. Esta, porém, não é (nem foi) a única forma de organizar a passagem do tempo. As divisões de tempo estabelecidas pelo cristianismo, o divinum officium, orientavam o dia nos mosteiros medievais de acordo com as liturgias. Ao todo, as horas canônicas consistiam em oito preces diurnas e três noturnas. Eram praticadas diariamente no século IX e durante a Baixa Idade Média, mas ainda é possível encontrar espaços religiosos que conservam esta vida regrada.
O costume, se visto de forma mais ampla, é ainda mais antigo. A religiosidade judaica, em sua tradição, designa três grupos de oração: shaharit, minchá e arvit, a serem recitadas pela manhã, à tarde e ao anoitecer, respectivamente. Nesses exemplos, o aspecto quantitativo do tempo parece se mesclar a uma dimensão simbólica. A cultura grega, de forma diferente, estabeleceu termos distintos para lidar com as naturezas que o tempo poderia assumir. O tempo quantitativo da vida dos homens, linear e sequencial, (cronos), o tempo dos deuses (aevum) e o tempo existencial (kairós), um momento oportuno, indeterminado, em que algo pode acontecer — Daniel acordar, talvez.
Se há algo de ahistórico no tempo, são as tentativas de regulamentá-lo e vivê-lo, criando critérios diversos para organizar a experiência diária. O tempo social não é falso, temos que nos adaptar a ele em diversas dimensões da vida, especialmente nas demandas do mundo do trabalho. É uma medida que orienta — por escolha ou não — as formas como vemos o mundo e nele agimos.
O “ter que acordar” não pertence tão somente à lógica produtivista. O que varia são os critérios que determinam um horário, uma norma que leva em conta tarefas que devem ser executadas. Há algum padrão nos horários de Daniel? Parece haver uma lógica própria para tal, algo entre a psicologia dos sonhos e um temperamento particular de Daniel, diversa a um acordo comum da sociedade em geral. Não parece uma loucura para quem vê os indícios da experiência: um estudo rigorosamente controlado, com metodologia quase científica, gráficos, calendários, diários de anotação e bibliografia. Uma obsessão, talvez. O instigante no projeto “O sono louco” é permitir um estranhamento diante do que vivemos todos os dias, ao vermos o artista submeter-se ao aparato de uma cultura impregnada em nosso cotidiano, enquanto tenta adentrar no que acontece num estado de inconsciência. Por mais que não se trate de questionar este mundo de convenções, pois nele vivemos, poder ver de fora permite reconhecer limites nessas perspectivas.