Resenha crítica por José Bento Ferreira da instalação Nota de repúdio apresentada no Ateliê 397,
São Paulo, de 22.07 a 19.09.22
São Paulo, de 22.07 a 19.09.22
Fonte > site exposição Dizer Não
+ Obras > Nota de repúdio, 2021
O Brasil ultrapassou a marca de 500 mil mortos por covid-19
um mês antes da inauguração da exposição Dizer Não. Mais de 300 mil pessoas
morreram somente no 1º semestre de 2021, conforme dados do Conselho Nacional de
Secretários de Saúde. Desde junho de 2020, o governo federal deixara de
informar o total de mortes e casos da pandemia de coronavírus. Medidas
protetivas, a apresentação de comprovantes de vacinação e amplos salões
arejados permitiram uma primeira visita a exposições de arte em muito tempo. A
fruição compartilhada de obras de arte adquiriu sentidos mais intensos depois
das longas privações.
No segundo andar de uma antiga fábrica na Barra Funda, diante de amplas janelas, 240 folhas de sulfite apresentavam a expressão manuscrita ultimi barbarorum, “os mais bárbaros dos bárbaros”. Ao se aproximar desse trabalho de Daniel Jablonski, o espectador percebia que as folhas, laudas ou páginas, típicas das eras da datilografia e da impressão por computador, preteridas pelo colonialismo digital, continham notas de repúdio emitidas e assinadas por diversas entidades da sociedade civil contra desmandos do presidente eleito em 2018 e seus correligionários, distribuídas ao longo do tempo, em protesto contra “o tratamento preconceituoso de Jair Bolsonaro contra o povo nordestino” (19/07/2019), “o ataque racista e genocida” contra os povos indígenas proferido pelo presidente no Plenário da Assembleia Geral das Nações Unidas (24/09/2019), “as declarações desrespeitosas e grosseiras proferidas pelo presidente” contra uma jornalista (20/02/2020), o vídeo enviado por ele “convocando uma manifestação contra os Poderes Legislativo e Judiciário” (28/02/2020), “a Medida Provisória que permite ao Ministro da Educação, Abraham Weintraub, escolher reitores temporários das universidades federais durante o período da pandemia” (10/06/2020), “a taxação e oneração de livros” (13/08/2020), “a revogação de cerca de cem portarias sobre Saúde Mental ameaçando diversos programas e serviços” (08/12/2020), “a declaração feita pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, na qual se refere aos concursos como ‘aparelhamento do Estado’” (13/05/2021) entre muitos outros episódios sinistros desses anos de desgoverno.
No centro da coletânea, o artista reproduziu a gravura de Roelant Roghman que circulou em 1672 e provavelmente inspirou ou foi inspirada pela pintura de Jan de Baen, Os cadáveres dos irmãos De Witt, atualmente no Rijksmuseum. Uma débil chama ilumina os corpos mutilados dos estadistas holandeses, pendurados em uma estrutura vertical de madeira em meio a uma paisagem natural noturna. A composição lembra as pinturas de Rembrandt, A lição de anatomia (1632), pelo modo como retrata os corpos eviscerados, e Boi esfolado (1655), por sua posição, como animais no matadouro. O rosto desfigurado de um deles se vê sob certa penumbra diante do cadáver de um cãozinho. Líderes da República Holandesa e opositores da Casa de Orange, Johan e Cornelis foram responsabilizados por reveses na guerra contra a França. Eles foram fuzilados pela guarda cívica de Haia e seus corpos foram dilacerados pela massa enfurecida, que ingeriu seus fígados e distribuiu retalhos de suas roupas pelas ruas. De acordo com uma anedota, o filósofo Baruch de Espinosa teria sido contido por seu senhorio ao tentar erguer um cartaz com a expressão em latim “ultimi barbarorum” ante uma igreja, em protesto contra os bárbaros assassinatos. Mais bárbaro seria “o aparelho monárquico e eclesiástico da superstição”, que “reproduz e amplifica” um “temor natural de cada indivíduo”, tornando-o um “fenômeno de massa”, conforme comentário do professor Étienne Balibar ao prefácio do Tratado Teológico-Político (1677).
Jablonski e sua equipe, integrada por Natália Marchiori, que compilou os documentos, e Gui Menga, que reconstituiu a caligrafia do filósofo, não exaltam as notas de repúdio como instrumentos de resistência. Elas compõem um panorama da atualidade percebida através dos meios de comunicação, próprio a um artista atento à política das imagens, autor de trabalhos produzidos a partir de referências cinematográficas ou de derivas por cabines de fotografia automática. Tal panorama é análogo ao de Diário, de Fernando Burjato, também integrante de Dizer Não, com retratos do ex-presidente dos EUA Donald Trump, do biólogo Átila Iamarino, do músico Caetano Veloso, das jornalistas Flávia Oliveira e Natuza Nery, entre outros personagens, por vezes com fones para o trabalho remoto. Essas figuras invadiram o imaginário de quem, por imposição do distanciamento social, não tinha outra opção senão vê-las. Os “36 desenhos em caneta permanente sobre papel” tampouco exaltam as pessoas retratadas, mas pelos traços, planos e cores, diluem seus motivos, assim como Manet, em Execução do Imperador Maximiliano (1868), desmistifica a legitimidade do monarca títere e denuncia a intervenção francesa no México por meio da planaridade, da luminosidade e do alheamento de todos, inclusive os executados.
O que Burjato obtém pelo desenho, Jablonski o faz por meio do deslocamento e da montagem. Por isso é apropriado que os dois trabalhos tenham sido expostos em andares diferentes: sua proximidade seria redundante. As obras do térreo eram pontuadas por Ar, em que o músico Cuca Ferreira utiliza um saxofone para imitar o som da respiração ofegante. A asfixia remete às mortes por covid-19, em especial à crise do sistema de saúde de Manaus em janeiro de 2021, pela qual o governo federal teria responsabilidade direta segundo a Comissão Parlamentar de Inquérito instalada para apurar “ações e omissões” no enfrentamento da pandemia. Ar também proporciona uma alusão ao assassinato de George Floyd nos EUA em maio de 2020, que desencadeou levantes antirracistas em diversas partes do mundo, valendo-se do trágico clamor “I can´t breathe” (não consigo respirar) como divisa. Lamentavelmente, a sentença ressoaria ainda para João Alberto Silveira Freitas, morto por asfixia ao ser espancado por seguranças de um supermercado na véspera do dia da Consciência Negra daquele ano, assim como para os nove jovens frequentadores do baile funk, mortos sob custódia policial em Paraisópolis ao final de 2019, também por asfixia. No andar de cima, por sua vez, o que se ouvia durante a observação de cada trabalho era a “performance experimental” em que Juçara Marçal improvisa sobre cantos e pontos, acompanhada pelo instrumentista Décio 7, em nítido contraste de sonoridades do canto livre com o estrangulamento.
As notas de repúdio não mapeiam os principais desmandos do bolsonarismo, mas suas estratégias diversionistas, as cortinas de fumaça que favoreceram a implementação de medidas típicas do Estado suicidário. A atmosfera bárbara de apoio à violência necropolítica foi fabricada em grande parte por meio de ações realizadas no campo das mídias digitais, que são frutos da sofisticação tecnológica e, portanto, da “civilização”. Tal atmosfera seria equivalente à “superstição” conforme Espinosa, que, segundo a explicação de Balibar, reproduz e amplifica o medo. O trabalho de Daniel Jablonski na exposição Dizer Não revela que a política brasileira foi capturada por um dispositivo que funciona exatamente como o “aparelho monárquico e religioso” denunciado pelo autor do Tratado como mais bárbaro do que as pessoas que atuam em seu nome, “homens que lutam pela escravidão como se fosse a sua liberdade” e que “formam o mundo do negativo” no qual viveu o filósofo, conforme o comentário de Gilles Deleuze sobre sua reação ao assassinato dos irmãos De Witt. E o faz utilizando esses mesmos meios, ao buscar os documentos, reproduzir a gravura, usar manuscritos de Espinosa para digitalizar uma frase que ele pode nunca ter escrito e, por fim, imprimir todas as folhas de tal modo que esta caligrafia, improvável precursora seiscentista da agitprop, uma vez sobreposta às notas de repúdio como uma pichação, apreenda o que há de mais traumático nesse tempo.
No segundo andar de uma antiga fábrica na Barra Funda, diante de amplas janelas, 240 folhas de sulfite apresentavam a expressão manuscrita ultimi barbarorum, “os mais bárbaros dos bárbaros”. Ao se aproximar desse trabalho de Daniel Jablonski, o espectador percebia que as folhas, laudas ou páginas, típicas das eras da datilografia e da impressão por computador, preteridas pelo colonialismo digital, continham notas de repúdio emitidas e assinadas por diversas entidades da sociedade civil contra desmandos do presidente eleito em 2018 e seus correligionários, distribuídas ao longo do tempo, em protesto contra “o tratamento preconceituoso de Jair Bolsonaro contra o povo nordestino” (19/07/2019), “o ataque racista e genocida” contra os povos indígenas proferido pelo presidente no Plenário da Assembleia Geral das Nações Unidas (24/09/2019), “as declarações desrespeitosas e grosseiras proferidas pelo presidente” contra uma jornalista (20/02/2020), o vídeo enviado por ele “convocando uma manifestação contra os Poderes Legislativo e Judiciário” (28/02/2020), “a Medida Provisória que permite ao Ministro da Educação, Abraham Weintraub, escolher reitores temporários das universidades federais durante o período da pandemia” (10/06/2020), “a taxação e oneração de livros” (13/08/2020), “a revogação de cerca de cem portarias sobre Saúde Mental ameaçando diversos programas e serviços” (08/12/2020), “a declaração feita pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, na qual se refere aos concursos como ‘aparelhamento do Estado’” (13/05/2021) entre muitos outros episódios sinistros desses anos de desgoverno.
No centro da coletânea, o artista reproduziu a gravura de Roelant Roghman que circulou em 1672 e provavelmente inspirou ou foi inspirada pela pintura de Jan de Baen, Os cadáveres dos irmãos De Witt, atualmente no Rijksmuseum. Uma débil chama ilumina os corpos mutilados dos estadistas holandeses, pendurados em uma estrutura vertical de madeira em meio a uma paisagem natural noturna. A composição lembra as pinturas de Rembrandt, A lição de anatomia (1632), pelo modo como retrata os corpos eviscerados, e Boi esfolado (1655), por sua posição, como animais no matadouro. O rosto desfigurado de um deles se vê sob certa penumbra diante do cadáver de um cãozinho. Líderes da República Holandesa e opositores da Casa de Orange, Johan e Cornelis foram responsabilizados por reveses na guerra contra a França. Eles foram fuzilados pela guarda cívica de Haia e seus corpos foram dilacerados pela massa enfurecida, que ingeriu seus fígados e distribuiu retalhos de suas roupas pelas ruas. De acordo com uma anedota, o filósofo Baruch de Espinosa teria sido contido por seu senhorio ao tentar erguer um cartaz com a expressão em latim “ultimi barbarorum” ante uma igreja, em protesto contra os bárbaros assassinatos. Mais bárbaro seria “o aparelho monárquico e eclesiástico da superstição”, que “reproduz e amplifica” um “temor natural de cada indivíduo”, tornando-o um “fenômeno de massa”, conforme comentário do professor Étienne Balibar ao prefácio do Tratado Teológico-Político (1677).
Jablonski e sua equipe, integrada por Natália Marchiori, que compilou os documentos, e Gui Menga, que reconstituiu a caligrafia do filósofo, não exaltam as notas de repúdio como instrumentos de resistência. Elas compõem um panorama da atualidade percebida através dos meios de comunicação, próprio a um artista atento à política das imagens, autor de trabalhos produzidos a partir de referências cinematográficas ou de derivas por cabines de fotografia automática. Tal panorama é análogo ao de Diário, de Fernando Burjato, também integrante de Dizer Não, com retratos do ex-presidente dos EUA Donald Trump, do biólogo Átila Iamarino, do músico Caetano Veloso, das jornalistas Flávia Oliveira e Natuza Nery, entre outros personagens, por vezes com fones para o trabalho remoto. Essas figuras invadiram o imaginário de quem, por imposição do distanciamento social, não tinha outra opção senão vê-las. Os “36 desenhos em caneta permanente sobre papel” tampouco exaltam as pessoas retratadas, mas pelos traços, planos e cores, diluem seus motivos, assim como Manet, em Execução do Imperador Maximiliano (1868), desmistifica a legitimidade do monarca títere e denuncia a intervenção francesa no México por meio da planaridade, da luminosidade e do alheamento de todos, inclusive os executados.
O que Burjato obtém pelo desenho, Jablonski o faz por meio do deslocamento e da montagem. Por isso é apropriado que os dois trabalhos tenham sido expostos em andares diferentes: sua proximidade seria redundante. As obras do térreo eram pontuadas por Ar, em que o músico Cuca Ferreira utiliza um saxofone para imitar o som da respiração ofegante. A asfixia remete às mortes por covid-19, em especial à crise do sistema de saúde de Manaus em janeiro de 2021, pela qual o governo federal teria responsabilidade direta segundo a Comissão Parlamentar de Inquérito instalada para apurar “ações e omissões” no enfrentamento da pandemia. Ar também proporciona uma alusão ao assassinato de George Floyd nos EUA em maio de 2020, que desencadeou levantes antirracistas em diversas partes do mundo, valendo-se do trágico clamor “I can´t breathe” (não consigo respirar) como divisa. Lamentavelmente, a sentença ressoaria ainda para João Alberto Silveira Freitas, morto por asfixia ao ser espancado por seguranças de um supermercado na véspera do dia da Consciência Negra daquele ano, assim como para os nove jovens frequentadores do baile funk, mortos sob custódia policial em Paraisópolis ao final de 2019, também por asfixia. No andar de cima, por sua vez, o que se ouvia durante a observação de cada trabalho era a “performance experimental” em que Juçara Marçal improvisa sobre cantos e pontos, acompanhada pelo instrumentista Décio 7, em nítido contraste de sonoridades do canto livre com o estrangulamento.
As notas de repúdio não mapeiam os principais desmandos do bolsonarismo, mas suas estratégias diversionistas, as cortinas de fumaça que favoreceram a implementação de medidas típicas do Estado suicidário. A atmosfera bárbara de apoio à violência necropolítica foi fabricada em grande parte por meio de ações realizadas no campo das mídias digitais, que são frutos da sofisticação tecnológica e, portanto, da “civilização”. Tal atmosfera seria equivalente à “superstição” conforme Espinosa, que, segundo a explicação de Balibar, reproduz e amplifica o medo. O trabalho de Daniel Jablonski na exposição Dizer Não revela que a política brasileira foi capturada por um dispositivo que funciona exatamente como o “aparelho monárquico e religioso” denunciado pelo autor do Tratado como mais bárbaro do que as pessoas que atuam em seu nome, “homens que lutam pela escravidão como se fosse a sua liberdade” e que “formam o mundo do negativo” no qual viveu o filósofo, conforme o comentário de Gilles Deleuze sobre sua reação ao assassinato dos irmãos De Witt. E o faz utilizando esses mesmos meios, ao buscar os documentos, reproduzir a gravura, usar manuscritos de Espinosa para digitalizar uma frase que ele pode nunca ter escrito e, por fim, imprimir todas as folhas de tal modo que esta caligrafia, improvável precursora seiscentista da agitprop, uma vez sobreposta às notas de repúdio como uma pichação, apreenda o que há de mais traumático nesse tempo.