Texto crítico pelo curador Bernardo Mosqueira para a exposição (Still) Brazil no Centro Cultural da Justiça Federal, Rio de Janeiro, em 25.07.18
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(...)
O nome é bem mais do que nome:
o além-da-coisa,
coisa livre de coisa, circulando.
E a terra, palavra espacial, tatuada
de sonhos,
cálculos.
Onde é Brasil?
Que verdura é amor?
Quando te condensas, atingindo
o ponto fora do tempo e da vida?
Que importa este lugar
se todo lugar
é ponto de ver e não de ser?
(...)
Carlos Drummond de Andrade
“A Palavra e a Terra”, em Lição de Coisas, 1962.
Durante
nossas vidas, nossos olhares passeiam, através das telas, pelas mais diversas
imagens em movimento. No universo do cinema de ficção, nos abrimos a outras
atmosferas, de luz e som, que nos oferecem novas possibilidades para o sentir.
Seja na prática coletiva da sala de projeção ou nos usos individuais de
aparelhos tecnológicos, os filmes nos permitem comungar de uma experiência
onírica e vivenciar outros movimentos para o pensamento. De quando em quando,
algo inusitado parece ocorrer: notamos, num susto, que o cinema parece ter
também nos visto. Ainda que, talvez, de forma breve e superficial, notamos
nossa própria imagem refletida no olhar da câmera do outro.
A obra-exposição Still Brazil, do artista carioca Daniel Jablonski, traz uma lista de mais de 870 ocasiões em que personagens ou narradores de filmes de ficção estrangeiros citam este país latino-americano e seus habitantes. Na grande maioria dos casos, a palavra "Brazil" surge em diálogos banais, com pouca ou nenhuma importância para a construção das narrativas. São alusões rápidas a este "outro lugar", que, nas falas, pode apenas denotar um ponto distante, idílico, de sublime beleza natural, com excitante liberdade sexual, território da irregularidade e da corrupção, entre outros clichês.
O título da exposição já carrega uma inversão de ponto de vista, funcionando quase como uma epígrafe. Ao notarmos o "z" (essa letra que é espelho do "s"), entendemos que o nome não é dito por uma voz brasileira, mas por um outro, o estrangeiro. Essa simples operação anuncia um curto-circuito ideológico, que nos oferece uma série de imagens-vestígios, antes praticamente imperceptíveis, nos quais identificamos condensadas relações de poder. Os encontros aparentemente banais com a palavra "Brazil", ao serem deslocados de seus contextos, ganham aqui uma intensidade que nos força a pensar o que antes era impensável: assinala a recorrência da vacuidade e do caráter estereotipado do signo "Brazil" nestes filmes, nos mostrando que o país desempenha uma posição alternativa, como um Outro do enunciador.
O Brasil com "S" é gigante, múltiplo, plural, mutante, condensado em diferentes intensidades, desequilibrado e, sobretudo, como toda nação, forjado a golpes de ficções. O Dom Casmurro de Machado, o Macunaíma de Oswald, a Joana de Clarice, (os outros de) o Policarpo de Dias Gomes e a Lindonéia de Gerchman/Veloso, entre outros, são alguns de nossos melhores espelhos – justamente por nos permitirem abraçar o desafio de desmanchar a ideia de uma unidade nacional definível e permanente para caminharmos, então, na direção dessa multiplicidade mutante e conflituosa de brasis. Ora, quando toda essa complexidade parece reduzida a uma referência quase imperceptível, o que a vacuidade e a estereotipia desses usos do termo “Brazil” dizem sobre as relações entre outras culturas e este país? O que dizem sobre o nosso tempo de globalização, hiperconexão e desterritorialização? O que essas disparidades impõem ao pensamento sobre nós mesmos e sobre eles?
O cinema e a arte podem ter um papel pedagógico importante. Eles nos mostram ser possível afrouxar o arco teso das tragédias e revelar a estrutura das farsas nacionais ao recusar esse modelo de subjetivação que reduz tudo a uma unidade simples. Ao abrir o pensamento para a aceitação das diferenças e da diferenciação contínuas, não apenas passamos a ser mais capazes de ver (e ver de mais de uma forma) como deixamos também de permanecer os mesmos e de pensar o mesmo sobre nós.
Orientada por esse movimento, a obra de Daniel Jablonski é cruzada por pesquisas e experiências poéticas conceituais sobre lugares, criando contracartografias, observando relações entre memórias e documentos, investigando nomes e apresentando interesse especial por elementos relacionados às ideias de viagem, deslocamento e encontro entre culturas. Certamente não é a produção de objetos o seu fazer fundamental: o momento principal se dá no processo de investigação, na construção das bases a partir das quais os resultados públicos-formais se desenvolverão. Estes variam a cada nova montagem, assim como varia o tom de uma conversa, de contexto para contexto. Sendo um artista fundamentalmente pesquisador e que se arrisca entre o documental e o imaginário, é nessa esfera da comunicação que se articula seu campo de investigação e criação.
Em Still Brazil, ao nos permitir olhar, ainda que indiretamente, para diferentes culturas e territórios, Daniel nos convida a pensar empaticamente sobre diversas formas de estar no mundo, a experimentar outros modos de dizer o Brasil. Ao mesmo tempo em que nos localiza, proporciona a experiência de nos libertarmos de nós mesmos, mostrando que somos e podemos ser ainda outros mais.
A obra-exposição Still Brazil, do artista carioca Daniel Jablonski, traz uma lista de mais de 870 ocasiões em que personagens ou narradores de filmes de ficção estrangeiros citam este país latino-americano e seus habitantes. Na grande maioria dos casos, a palavra "Brazil" surge em diálogos banais, com pouca ou nenhuma importância para a construção das narrativas. São alusões rápidas a este "outro lugar", que, nas falas, pode apenas denotar um ponto distante, idílico, de sublime beleza natural, com excitante liberdade sexual, território da irregularidade e da corrupção, entre outros clichês.
O título da exposição já carrega uma inversão de ponto de vista, funcionando quase como uma epígrafe. Ao notarmos o "z" (essa letra que é espelho do "s"), entendemos que o nome não é dito por uma voz brasileira, mas por um outro, o estrangeiro. Essa simples operação anuncia um curto-circuito ideológico, que nos oferece uma série de imagens-vestígios, antes praticamente imperceptíveis, nos quais identificamos condensadas relações de poder. Os encontros aparentemente banais com a palavra "Brazil", ao serem deslocados de seus contextos, ganham aqui uma intensidade que nos força a pensar o que antes era impensável: assinala a recorrência da vacuidade e do caráter estereotipado do signo "Brazil" nestes filmes, nos mostrando que o país desempenha uma posição alternativa, como um Outro do enunciador.
O Brasil com "S" é gigante, múltiplo, plural, mutante, condensado em diferentes intensidades, desequilibrado e, sobretudo, como toda nação, forjado a golpes de ficções. O Dom Casmurro de Machado, o Macunaíma de Oswald, a Joana de Clarice, (os outros de) o Policarpo de Dias Gomes e a Lindonéia de Gerchman/Veloso, entre outros, são alguns de nossos melhores espelhos – justamente por nos permitirem abraçar o desafio de desmanchar a ideia de uma unidade nacional definível e permanente para caminharmos, então, na direção dessa multiplicidade mutante e conflituosa de brasis. Ora, quando toda essa complexidade parece reduzida a uma referência quase imperceptível, o que a vacuidade e a estereotipia desses usos do termo “Brazil” dizem sobre as relações entre outras culturas e este país? O que dizem sobre o nosso tempo de globalização, hiperconexão e desterritorialização? O que essas disparidades impõem ao pensamento sobre nós mesmos e sobre eles?
O cinema e a arte podem ter um papel pedagógico importante. Eles nos mostram ser possível afrouxar o arco teso das tragédias e revelar a estrutura das farsas nacionais ao recusar esse modelo de subjetivação que reduz tudo a uma unidade simples. Ao abrir o pensamento para a aceitação das diferenças e da diferenciação contínuas, não apenas passamos a ser mais capazes de ver (e ver de mais de uma forma) como deixamos também de permanecer os mesmos e de pensar o mesmo sobre nós.
Orientada por esse movimento, a obra de Daniel Jablonski é cruzada por pesquisas e experiências poéticas conceituais sobre lugares, criando contracartografias, observando relações entre memórias e documentos, investigando nomes e apresentando interesse especial por elementos relacionados às ideias de viagem, deslocamento e encontro entre culturas. Certamente não é a produção de objetos o seu fazer fundamental: o momento principal se dá no processo de investigação, na construção das bases a partir das quais os resultados públicos-formais se desenvolverão. Estes variam a cada nova montagem, assim como varia o tom de uma conversa, de contexto para contexto. Sendo um artista fundamentalmente pesquisador e que se arrisca entre o documental e o imaginário, é nessa esfera da comunicação que se articula seu campo de investigação e criação.
Em Still Brazil, ao nos permitir olhar, ainda que indiretamente, para diferentes culturas e territórios, Daniel nos convida a pensar empaticamente sobre diversas formas de estar no mundo, a experimentar outros modos de dizer o Brasil. Ao mesmo tempo em que nos localiza, proporciona a experiência de nos libertarmos de nós mesmos, mostrando que somos e podemos ser ainda outros mais.