Critical essay by Nathalia Lavigne for the
exhibition (Still) Brazil, at Paço das Artes,
São Paulo, 30.04.18
São Paulo, 30.04.18
+ Exhibitions > (Still) Brazil, 2018
Já não é mera fantasia (ópio do povo cuja verdadeira função está em outro lugar), já não é simples fuga (de um mundo definido principalmente por objetivos e estruturas mais concretos), já não é passatempo de elites (portanto, irrelevante para as vidas da gente comum), já não é mera contemplação (irrelevante para novas formas de desejo e de subjetividade), a imaginação tornou-se um campo organizado de práticas sociais, uma maneira de trabalhar (tanto no sentido do labor como no de prática culturalmente organizada) e uma forma de negociação entre sedes de ação (indivíduos) e campos de possibilidade
globalmente definidos.
Arjun Appadurai, Modernity at Large: Cultural
Dimensions of Globalization, 1996.
O papel da imagem é quase sempre tão central na propagação de imaginários que é difícil pensar em processos que não sejam movidos por essa lógica. Na
construção de uma ideia de nação, imagens são essenciais: seja como estratégia
para reforçar uma unidade interna; para a criação de discursos de dominação,
como ocorreu na colonização do Novo Mundo; ou na formação de uma identidade
cultural que simplifique algumas características, mesmo sem propósitos tão
definidos, para facilitar um reconhecimento entre outras culturas.
O Brasil, desde sempre, serviu de matéria-prima para todo tipo de imaginário, alguns deles percorrendo toda a sua história: o lugar do exótico e da natureza exuberante; do corpo como objeto de desejo; do homem primitivo e irracional. Ou, em versões mais recentes: terra da luta livre e da depilação; do churrasco e do tráfico de crianças; da tríade máxima samba-carnaval-futebol. Se a primeira combinação já nasce a partir dos relatos de viajantes europeus ainda no século 16 – e a imagem de índios nus descrita em seus primeiros textos determinou muitas dessas impressões – os últimos foram difundidos, em grande parte, pela indústria do cinema, maior propagador de imaginários do século 20.
Em Still Brazil, Daniel Jablonski parte dessa combinação para destrinchar as exaustivas e desconexas representações do país em outras culturas por meio de obras cinematográficas de ficção. Antes de mais nada, convém explicar a metodologia aplicada pelo artista. Partindo de um buscador de roteiros de filmes(1), ele procurou pela palavra “Brazil” e suas variações até chegar a um resultado inicial na casa dos milhares. Os longas-metragens que de fato tinham alguma relação com o país foram eliminados, restando somente aqueles nos quais a referência se limitava a menções irrelevantes para suas tramas – um conjunto de quase 900 filmes.
Em uma grande instalação, com 200 impressões de cenas desses filmes no exato momento em que a palavra “Brazil” é dita, são revelados dois processos desestabilizadores. A começar pela ausência de imagens do referente principal – não há um único fragmento em que o país de fato apareça. Ao mesmo tempo, a força do imaginário é incontestável a ponto de sua representação visual se tornar dispensável. Não é preciso ver para imaginar o Brasil como o lugar do exílio na mata selvagem (“in the Brazilian rain forest for a year”); do libidinoso (“Brazilian Whores in Vegas; Looks like that won an award”) ou da depilação (“Oh. Fully shaven, Brazilian”); da viagem sem volta (“gets a one way ticket back to Brazil!”), como revelam as legendas de alguns desses stills. De tão disseminadas, essas imagens já parecem existir de antemão. Não precisam ser vistas, explicadas ou mesmo fazer sentido no contexto dos filmes, apenas cumprem um papel no imaginário coletivo.
Um segundo processo em jogo é a desarticulação da narrativa, outro elemento central do cinema. Se isso já ocorre aqui pela eliminação do movimento, transformando as sequências de imagens em fotografias estáticas novamente, uma estratégia similar acontece por toda a exposição. Os elementos que compõem uma trama cinematográfica são desmembrados em cada um dos trabalhos: havia os stills, já mencionados, mas também encontramos uma longa ficha técnica, contendo uma lista e informações de cada longa-metragem e a marcação temporal do momento em que a palavra ‘Brazil’ aparece; além da trilha sonora, com 80 versões estrangeiras de Aquarela do Brasil (1939), de Ary Barroso, e o cancioneiro da música em versão inglesa lançada pela Disney.
Mesmo no único trabalho em vídeo presente na mostra há também um cancelamento do fluxo narrativo pela eliminação da trama, áudio e personagens. O que vemos é uma edição em loop com trechos de Terra em Transe (1967) e Macunaíma(1969) ao lado de Os mercenários (2010), de Sylvester Stallone –, este último, uma cena um tanto surreal em que se explode o prédio da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde também foram filmados os dois outros clássicos do cinema brasileiro. A escolha por aproximar os três filmes tendo em comum o mesmo cenário reforça um aspecto presente desde sempre no imaginário sobre o Brasil no contexto global – a ideia de um país decorativo, sem relevância(2).
O título Still Brazil é outro fator que reitera a permanência de alguns desses status, em contraposição à propagada noção do Brasil como o “país do futuro”, difundida nos anos 1950. Mas a obra que melhor sintetiza uma certa temporalidade congelada permeando a exposição é a fotografia da cena final de Brazil, o filme (1985), ficção científica de Terry Gilliam cuja trama tampouco trata do país. A única referência é a música de Ary Barroso na versão em inglês – releitura que inverte o samba exaltação de “Meu Brasil, brasileiro” para a visão de um estrangeiro sobre um lugar fantasioso e inalcançável. Na imagem escolhida pelo artista, o protagonista aparece na mesma situação: preso em uma cadeira, delirando, imagina ter escapado para esse não-lugar que só ele vê, enquanto murmura partes da música – “Return, I will, to old Brazil”, com a última frase vista na legenda antes dos créditos finais. Involuntariamente, o trecho da canção de Ary Barroso em inglês soa como uma boa definição para o Brasil de hoje. No lugar do futuro, o retorno ao passado é o que parece cada vez mais presente.
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1 O site QuoDB | The movie quotes database, disponível em:
http://www.quodb.com
O Brasil, desde sempre, serviu de matéria-prima para todo tipo de imaginário, alguns deles percorrendo toda a sua história: o lugar do exótico e da natureza exuberante; do corpo como objeto de desejo; do homem primitivo e irracional. Ou, em versões mais recentes: terra da luta livre e da depilação; do churrasco e do tráfico de crianças; da tríade máxima samba-carnaval-futebol. Se a primeira combinação já nasce a partir dos relatos de viajantes europeus ainda no século 16 – e a imagem de índios nus descrita em seus primeiros textos determinou muitas dessas impressões – os últimos foram difundidos, em grande parte, pela indústria do cinema, maior propagador de imaginários do século 20.
Em Still Brazil, Daniel Jablonski parte dessa combinação para destrinchar as exaustivas e desconexas representações do país em outras culturas por meio de obras cinematográficas de ficção. Antes de mais nada, convém explicar a metodologia aplicada pelo artista. Partindo de um buscador de roteiros de filmes(1), ele procurou pela palavra “Brazil” e suas variações até chegar a um resultado inicial na casa dos milhares. Os longas-metragens que de fato tinham alguma relação com o país foram eliminados, restando somente aqueles nos quais a referência se limitava a menções irrelevantes para suas tramas – um conjunto de quase 900 filmes.
Em uma grande instalação, com 200 impressões de cenas desses filmes no exato momento em que a palavra “Brazil” é dita, são revelados dois processos desestabilizadores. A começar pela ausência de imagens do referente principal – não há um único fragmento em que o país de fato apareça. Ao mesmo tempo, a força do imaginário é incontestável a ponto de sua representação visual se tornar dispensável. Não é preciso ver para imaginar o Brasil como o lugar do exílio na mata selvagem (“in the Brazilian rain forest for a year”); do libidinoso (“Brazilian Whores in Vegas; Looks like that won an award”) ou da depilação (“Oh. Fully shaven, Brazilian”); da viagem sem volta (“gets a one way ticket back to Brazil!”), como revelam as legendas de alguns desses stills. De tão disseminadas, essas imagens já parecem existir de antemão. Não precisam ser vistas, explicadas ou mesmo fazer sentido no contexto dos filmes, apenas cumprem um papel no imaginário coletivo.
Um segundo processo em jogo é a desarticulação da narrativa, outro elemento central do cinema. Se isso já ocorre aqui pela eliminação do movimento, transformando as sequências de imagens em fotografias estáticas novamente, uma estratégia similar acontece por toda a exposição. Os elementos que compõem uma trama cinematográfica são desmembrados em cada um dos trabalhos: havia os stills, já mencionados, mas também encontramos uma longa ficha técnica, contendo uma lista e informações de cada longa-metragem e a marcação temporal do momento em que a palavra ‘Brazil’ aparece; além da trilha sonora, com 80 versões estrangeiras de Aquarela do Brasil (1939), de Ary Barroso, e o cancioneiro da música em versão inglesa lançada pela Disney.
Mesmo no único trabalho em vídeo presente na mostra há também um cancelamento do fluxo narrativo pela eliminação da trama, áudio e personagens. O que vemos é uma edição em loop com trechos de Terra em Transe (1967) e Macunaíma(1969) ao lado de Os mercenários (2010), de Sylvester Stallone –, este último, uma cena um tanto surreal em que se explode o prédio da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde também foram filmados os dois outros clássicos do cinema brasileiro. A escolha por aproximar os três filmes tendo em comum o mesmo cenário reforça um aspecto presente desde sempre no imaginário sobre o Brasil no contexto global – a ideia de um país decorativo, sem relevância(2).
O título Still Brazil é outro fator que reitera a permanência de alguns desses status, em contraposição à propagada noção do Brasil como o “país do futuro”, difundida nos anos 1950. Mas a obra que melhor sintetiza uma certa temporalidade congelada permeando a exposição é a fotografia da cena final de Brazil, o filme (1985), ficção científica de Terry Gilliam cuja trama tampouco trata do país. A única referência é a música de Ary Barroso na versão em inglês – releitura que inverte o samba exaltação de “Meu Brasil, brasileiro” para a visão de um estrangeiro sobre um lugar fantasioso e inalcançável. Na imagem escolhida pelo artista, o protagonista aparece na mesma situação: preso em uma cadeira, delirando, imagina ter escapado para esse não-lugar que só ele vê, enquanto murmura partes da música – “Return, I will, to old Brazil”, com a última frase vista na legenda antes dos créditos finais. Involuntariamente, o trecho da canção de Ary Barroso em inglês soa como uma boa definição para o Brasil de hoje. No lugar do futuro, o retorno ao passado é o que parece cada vez mais presente.