Ensaio crítico por Fábio Zuker sobre a exposição O sono louco: quem vigia o vigia?, exibida na Galeria Casamata, Rio de Janeiro, 15.06.14


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Berlim, 15/06/2014          



                Dani,

                Escrever sobre Mad Sleep é para mim um desafio. Proponho abaixo alguns comentários bem livres a respeito do seu trabalho, e questões que ele me levantou, embora não possa simplesmente ignorar o fato de que enquanto você realizava o experimento que se encontra na origem desse trabalho, eu estava acampado em um pequeno colchão empoeirado, na sua sala. E do que você estava vivendo naqueles dias.

                Você passava por um momento em que tinha que tomar uma decisão pessoal (romper ou não o relacionamento de anos com a sua namorada de então, que morava no exterior), com uma série de implicações profissionais (fazia sentido toda essa energia e empenho nesses trabalhos artísticos, construção de portfólio e mudança de profissão?). O dia era passado ao redor de dúvidas e de questionamentos extremamente subjetivos – de ambas as partes, aliás. No que diz respeito às suas inquietações, não me parece que possam ser desarticuladas do procedimento de auto-interrogação que você realizou em Mad Sleep.

                Entre algumas leituras que me vieram a mente quando discutíamos o seu trabalho, estava o texto do historiador britânico E. P. Thompson, “Time, Work-Discipline, and Industrial Capitalism”, sobre a incorporação do relógio na lógica de controle da jornada de trabalho e de instituição do modo de produção capitalista. Ele cita, em determinado momento, um ultra-liberal britânico do século XVIII: ''Machinery means discipline in industrial operations. If a steam-engine had started every Monday morning at six o'clock, the workers would have been disciplined to the habit of regular and continuous industry (... ) I have noticed, too, that machinery seems to lead to habits of calculation''.

                O relógio como um instrumento a serviço de uma certa regularização, normalização da vida. A clareza dessa formulação parece um bom caminho para poder pensar algumas questões levantadas por esse seu trabalho.

                Mad Sleep parece fazer sentido naquilo que você costuma dizer ser o seu interesse pela forma narrativa do mito (e não por sua iconografia, como você bem ressalta) em diversas áreas de conhecimento entre o final do século XIX e primeira metade do século XX: na literatura (com os surrealistas), na antropologia (com Lévi-Strauss), na política (com os regimes fascistas) e, no ponto que aqui é focalizado, no discurso psicanalítico (com Freud).

                O ponto relevante é que você não está restrito à uma arqueologia da noção de mito na modernidade dos últimos 150 anos, mas tenta pensar o desdobramento dessas estruturas narrativas hoje, e como elas seguem articulando o individual e coletivo. Isso tudo, seguramente, faz muito sentido para pensar dois de seus trabalhos, como O último instantâneo da inteligentsia europeia (2010) e Astrologicamente Incompatível (2012), e acho que também faz sentido para o Mad Sleep.

                Um ponto sobre o qual você tanto fala e que me parece relevante também nesse trabalho, diz respeito ao modo como você veem articulando experiência e expressão no modo de lidar com esses circuitos narrativos: de um lado, experimentar a teoria, e não apenas entendê-la (o ''eu, Daniel'' do discurso); de outro, uma maneira de expressar-se de um ponto de vista que vá para além do seu próprio (o ''ele, Daniel''). Assim, as alterações propostas nesses circuitos narrativos levam, obrigatoriamente, a uma alteração em sua própria identidade – e é aqui que a articulação entre reflexão subjetiva e teórica encontra o seu provisório ponto de chegada.

                Mas afinal, como isso funcionaria exatamente em Mad Sleep? Acredito que essa articulação entre o Daniel que resolve testar uma teoria e o Daniel ao qual um certo circuito narrativo (nesse caso o psicanalítico) se refere voltam a se encontrar na sua proposta de ''se autodiagnosticar como portador de um transtorno de sono ainda desconhecido (que consiste na incapacidade crônica de levantar-se na hora desejada)''.

                O caminho escolhido para entender essa sua patologia é um teste, um experimento especulativo: ''Dormindo cada noite junto a um antigo relógio de ponto portátil – dispositivo utilizado no século XIX para assegurar que os vigilantes realizassem as suas rondas noturnas em fábricas e armazéns – obtive exatamente os intervalos de tempo que separam a hora em que deveria levantar-me e a hora em que realmente me levantei. Estes resultados foram registrados em um relógio de tempo e pequenos rolos de papel''.

                E aqui voltamos a questão dos relógios, desses 31 relógios utilizados nesse seu experimento e tentativa de autodiagnosticar-se – e que me parece mais uma tentativa de autoentendimento, antes de tudo. Se você me permite, gostaria de fazer uma pequena digressão a respeito desses relógios, pois acho que eles permitem articular de outro modo esse problema que você levanta a respeito das narrativas mitológicas, de articulação do subjetivo com a experiência coletiva. Em um sentido muito próximo ao que diz Borges, aliás, em sua Historia de la Eternidad: "otras dificultades propone el tiempo. Una, acaso la mayor, la de sincronizar el tiempo individual de cada persona con el tiempo general de las matemáticas (..) Si el tiempo es un proceso mental, Cómo pueden compartir miles de hombres, o aun dos hombres distintos?''.

                Esses relógios são instrumentos de mensuração como outros. Mas diferente de outros, apesar de compartilharem suas propostas racionalizadoras, o seu incessante caminhar através de um tempo linear, permitem atribuir um sentido singular ao passar do tempo, e que tem algo a ver com o momento de popularização dos relógios.

                Relógios tornam-se populares concomitantemente ao surgimento da palavra progresso. Conceber a passagem do tempo de maneira linear pressupõe uma temporalidade vazia de significados, reduzida ao espaço sobre o qual o tempo pode correr de maneira automática, mecânica, livre, homogênea. Tempo aberto a ser transformado pelo homem. O tempo dos relógios passa a dominar de maneira crescente a sociedade capitalista a partir do século XIX, um tempo uniformizador - nesse sentido oposto ao tempo dos calendários (carregados de significados qualitativos), como ressalta Walter Benjamin, autor que você tanto lê.

                A grande questão que emerge – e que no meu ponto de vista é o ponto forte de seu trabalho – é investigar uma experiência subjetiva diante da uniformização do tempo. E o que parece ser ainda mais intrigante é que justamente aí, nesse olhar para si mesmo tal como você se propõe, parece fazer emergir um questionamento de ordem política onde menos se esperava.

                Isso faz algum sentido? Vou tentar me explicar. Os relógios seriam então, historicamente, propulsores de um tempo uniformizador a serviço do estabelecimento da nova forma de produção. Na ascensão da ordem de produção capitalista, todo um sistema moral foi criado para impedir práticas sociais prejudicais a essa nova concepção de trabalho. Trata-se, como defende Foucault em A Sociedade Punitiva, da conversão do tempo de vida em tempo de trabalho. Ou seja, quando tempo converte-se em dinheiro (Time is money, afirmaria Benjamin Franklin), hábitos sociais incongruentes com a lógica do trabalho e da acumulação deveriam ser constrangidas: vícios morais como bebedeiras, festas, vagabundagem (e por que não dizer sonolência?) são os principais alvos desse sistema moralizador que se desdobra, muitas vezes, no sistema penal.

                O relógio tem um papel preponderante na criação da previsibilidade urgida por esse sistema. Como afirma Thompson: ''Indeed, a general diffusion of clocks and watches is occurring (as one would expect) at the exact moment when the industrial revolution demanded a greater synchronization of labour''. Ele converte-se, também, em um mecanismo disputado, como você mostra no trecho do filme do Fritz Lang, M - o Vampiro de Dusselford: visto como instrumento a partir do qual patrões poderiam regular a prática do trabalho e a morosidade, seria uma peça central nas engrenagens necessário as à ascensão do capitalismo. Daí a resistência por parte dos trabalhadores, e que muitas vezes concentravam no relógio o enfoque de suas lutas (a obra de Marx é repleta de exemplos). E não por acaso, me parece, você utiliza justamente os relógios de ponto para seu experimento.

                Isso tudo, claro, estou pensando no período de ascensão do capitalismo e que perdura, poderíamos dizer, até o fim de seu período fabril/industrial. Mas não consigo deixar de ver o seu trabalho aludindo a essa problemática. A sua intuição inicial de que ''existe algo de errado com o meu sono'' toca então no ponto central desse sistema: como as pessoas reagem, do ponto subjetivo, à homogeneização desse tempo, à vivência do tempo como quantitativamente acumulável?

                É aqui que entra a sua apropriação de outro discurso narrativo capaz de articular experiências coletivas e subjetivas, o da psicanálise – tal como você afirmou na apresentação pública que fez do projeto, naquele congresso na PUC-RJ, no final de 2013.

                Mas talvez usando-a contra ela mesma, sabotando-a. A psicanálise, forma privilegiada de atribuir um sentido aos traumas tal como vivenciados nas experiências modernas, foi exatamente criticada – sobretudo nos círculos teóricos franceses da década de 70 – pelos seus modelos de normatividade. Não se trata de dizer que a prática narrativa da psicanálise é, ela mesma, uma forma de dominação – não tenho nem conhecimentos suficientes para defender isso, nem acho que seja o ponto. Mas de pensar que que tipo de relações de poder se insere nessa relação de saber estabelecida pela prática psicanalítica, e que efeitos pode ter dentro de um sistema de produção que pressupõe uma certa normalidade e previsibilidade para funcionar.

                Assim, o Daniel que testa a teoria (''eu, Daniel'') encontra-se com o Daniel sobre o qual se pode formular algo para além da sua subjetividade (''ele, Daniel''), valendo-se livremente do repertório da psicanálise para pensar – de maneira quase absurda – uma patologia sobre si mesmo. Nesse sentido, o sistema psicanalítico é de certa forma questionado – por uma atitude que, muito curiosamente, lembra os textos do próprio Freud, de reflexões sobre si mesmo, e que muito diferem da institucionalização da psicanálise pelos freudistas.

                Na conclusão que você chega a respeito de seu próprio distúrbio, você embaralha os termos e separações existentes: “The psychic disorder I suffer from: I am this employer, witch is also a child at night. The whole problem here is: the “guardian” has also fallen asleep and no one is actually watching my own sleep. And, unfortunately, I live by myself, and no one is there to wake me up. If this is true, a clear desire of going back to my childhood would here explicit, not only because every dream is a fulfillment of a repressed desire, because every dreamer is a child; but because I would evacuate, at night, the ‘attention’ that is so characteristic of myself during the day. I would, then, let go at night all my adult responsibilities; basically, because I would be still waiting for someone else — say, my parents — to wake me up. This would also explain why I have always hated school: it was just because it was too early. And the same could be said for my academic maturing, which only happened quite late. Seen from this perspective, the whole point of this experiment would be to reinforce the consciousness’ function of ‘attention’ during the night, by taking both the roles of the employer/child and the employee/watchman.''

                Psicanálise ou o sistema de trabalho não são preexistentes aos sujeitos que deles participam, estruturas reificadas dominando indivíduos: são processos dinâmicos, que só existem no ponto em que as tensões lhes constituem. E é essa enquete pessoal sobre si mesmo, essa preocupação sobre si, que me parece voltar ao tema das micro-modificações propostas por dentro desses processos. E é no fato delas serem pequenas e despretensiosas que talvez resida o ponto mais interessante. Não se trata de propor modificações grandiosas em sistemas que nos seriam alheios, mas de dentro, como peças que lhes são constitutivas, inserir pequenas e infinitesimais modificações em seus funcionamentos. Abri-los para outros possíveis, para além dos já estabelecidos.

                Bom, essas foram algumas coisas que o seu trabalho me fez pensar. Espero que façam algum sentido para o que você tem pensado, e que você possa se apropriar delas, de algum modo, para suas pesquisas.

                Um grande abraço - da primavera berlinense,
               
                Fábio